February 14, 2021

Primeiro Comando de Curitiba

 



Na segunda-feira 1º,
o ministro Ricar-
do Lewandowski,
do Supremo Tri-
bunal Federal, le-
vantou o sigilo de
uma ínfima parce-
la do material apreendido pela Polícia Fe-
deral na Operação Spoofing, que resultou
na prisão dos hackers Walter Delgatti Ne-
to e Thiago Eliezer. A dupla conseguiu in-
vadir os celulares do ex-juiz Sergio Moro
e do procurador Deltan Dallagnol, ex-co-
ordenador da força-tarefa da Lava Jato em
Curitiba, e extrair do aplicativo de mensa-
gens Telegram um gigantesco arquivo com
7 terabytes, espaço suficiente para arma-
zenar 1,75 milhão de fotos em alta resolu-
ção ou 45 milhões de páginas de documen-
tos, como arquivos em PDF ou de Word.


O site The Intercept Brasil teve aces-
so a parte dos arquivos, e desde junho de
2019 divulga comprometedoras conver-
sas da dupla, provas do conluio do ma-
gistrado com procuradores para conde-
nar Lula a qualquer custo. Por determi-
nação de Lewandowski, a Justiça Federal
de Brasília liberou à defesa do ex-presi-
dente o acesso a 740 gigabytes do arquivo,
10% do total. Até o momento, o perito ju-
dicial Cláudio Wagner só conseguiu ana-
lisar 74 gigabytes – ou seja, 1% do mate-
rial que estava em posse dos hackers. Es-
sa minúscula fração é, porém, suficiente
para comprovar a criminosa articulação
do consórcio curitibano.


Mais do que revelar a ilegal colaboração
entre o juiz e os procuradores, responsá-
veis pela acusação, as mensagens eviden-
ciam que Moro era o verdadeiro chefe da
força-tarefa da Lava Jato, sentindo-se à
vontade para ditar ordens e cobrar resul-
tados de Dallagnol. O procurador esme-
ra-se em agradar ao “chefe”. “Não é muito
tempo sem operação?”, pergunta o magis-
trado em 31 de agosto de 2016. “O proble-
ma é que as operações estão com as mes-
mas pessoas que estão com a denúncia do
Lula. Decidimos postergar tudo até sair
essa denúncia”, justifica o subordinado.

 Em 3 de fevereiro de 2017, Moro queixa-
-se do número elevado de testemunhas ar-
roladas por executivos da Odebrecht, que
haviam celebrado um acordo de delação.
“Podem ver com as defesas se não podem
desistir?”, pergunta. “Resolvemos sim”,
responde Dallagnol. “Falaremos com os
advogados para desistirem.” Você não leu
errado. O juiz pediu, e o procurador as-
sentiu em pedir a exclusão de testemu-
nhas apresentadas por delatores.


Há absurdos maiores. Em 23 de feve-
reiro de 2016, Moro perguntou aos pro-
curadores se eles tinham “uma denúncia
sólida o suficiente” contra Lula. Dallag-
nol então detalha o plano para relacionar
o ex-presidente aos desvios na Petrobras
e arremata: “Estamos trabalhando a co-
laboração de Pedro Corrêa, que dirá que
Lula sabia da arrecadação via PRC (Pau-
lo Roberto Costa) e marcaremos o depoi-
mento de PRC para um dia depois da nova
fase, para verificar a versão dele”. É a con-
fissão de algo que os defensores de réus

da Lava Jato alertam há tempos: as dela-
ções eram orientadas pelo Ministério Pú-
blico, os colaboradores diziam exatamen-
te aquilo que os procuradores desejavam.
Isso, ou Dallagnol tem um talento oculto
para a vidência ou a cartomancia, é capaz
de prever o que um delator vai lhe contar.


E sta última troca de mensagens não figu-

ra nas 50 páginas ue Levandowski tornou

públicas, mas em um levantamento preliminar

enviado aos advogados de Lula. O mate-

rial bruto inclui, ainda, um insólito diá-
logo ocorrido em 18 de outubro de 2016,
às vésperas da prisão do ex-deputado
Eduardo Cunha. Dallagnol pretendia en-
contrar-se com Moro para falar “sobre a
apreensão dos celulares”, mas também
menciona uma “reunião conjunta com
suíços e americanos para discutir e ne-
gociar porcentuais da divisão do dinhei-
ro”. Nas mensagens analisadas pelo peri-
to, existem referências a contatos com au-
toridades dos Estados Unidos. O juiz diz
que é preciso “colocar US attorneys (pro-
curadores norte-americanos) para traba-
lhar, pois até agora niente”. Dallagnol con-
corda: “Eles estão só sugando por enquan-
to. Hoje falei com eles sobre as contas lá da
Ode (Odebrecht) pra ver se fazem algo”.


Ao que tudo indica, trata-se de conver-
sas clandestinas. O Acordo de Assistência
Judiciária em Matéria Penal entre Brasil
e EUA, regulamentado pelo Decreto Nº
3.810, de 2001, prevê que a cooperação in-
ternacional seja mediada pelo Ministério 

da Justiça, no caso do Brasil, e pelo De-
partamento de Justiça, no caso dos EUA.


Além disso, todos os documentos recebi-
dos precisam ter um comprovante de en-
trega. Moro e Dallagnol passaram por ci-
ma do governo brasileiro. Em resposta à
defesa de Lula, que obteve um mandado
de segurança para ter acesso às informa-
ções compartilhadas, o Departamento de
Recuperação de Ativos e Cooperação Ju-
rídica Internacional, vinculado à pasta da
Justiça, informou que não encontrou re-
gistro de qualquer pedido de cooperação
de procuradores da Lava Jato com auto-
ridades norte-americanas. Dias depois,
Lewandowski determinou que a Correge-
doria do Ministério Público Federal apu-
re se houve, de fato, intercâmbio de infor-
mações que tenham sido omitidas aos ad-
vogados do ex-presidente.


A participação de Tio Sam na operação
não é exatamente novidade. Em 2018, o site
Consultor Jurídico havia revelado a coo-
peração informal de agentes do FBI com a
força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, fei-
to admitido com naturalidade por funcio-
nários do bureau de investigação dos EUA
durante um evento promovido pelo escri-
tório de advocacia CKR Law, de São Pau-
lo, em fevereiro daquele ano. Em julho de
2020, foi a vez de a Agência Pública reve-
lar o rastro deixado por investigadores do
FBI, entre eles a agente especial Leslie R.
Backschies, que depois de “colaborar” com
a Lava Jato virou chefe da Unidade de Cor-
rupção Internacional do FBI.


Evidentemente, os norte-americanos se
beneficiaram – e muito – com a Lava Ja-
to. Em setembro de 2018, a Petrobras fe-
chou um acordo de 853,2 milhões de dó-
lares (o equivalente a 3,6 bilhões reais,
em valores da época) para encerrar as in-
vestigações do Departamento de Justiça
e da Securities and Exchange Commis-
sion, nos EUA, e cobrir os prejuízos causa-
dos aos acionistas com os desvios na esta-
tal, ainda que ela tenha gerado lucros ex-
pressivos para todos. Além disso, a crise
política e institucional desencadeada pela
operação, do impeachment fraudulento de
Dilma Rousseff à eleição de Jair Bolsonaro,
minou qualquer possibilidade de o Brasil

afirmar-se como ator relevante na geopo-
lítica internacional. Com a sétima maior
economia do mundo até 2014, o País deve
despencar para a 13ª colocação em 2020,
projeta a consultoria britânica CEBR.


Na trama do golpe de 2016,
o consórcio de Curitiba
teve um papel crucial.
Primeiro, pela atua-
ção seletiva e parcial, ao
priorizar as investigações contra o PT e
promover uma caçada impiedosa a Lula.
No Telegram, os procuradores não dis-
farçam o desdém pelo réu. Costumam
referir-se ao ex-presidente como “9”, em
evidente alusão ao acidente de trabalho
que fez o ex-metalúrgico perder um dos
dedos. Ao longo de toda a investigação, a
turma diverte-se com memes maliciosos,
a exemplo de uma foto de Lula diante de
objetos presenteados por outros chefes de
Estado, acompanhado da legenda: “Tudo
furto do meu trabalho”.


Em 4 de março de 2016, quando o pe-
tista foi levado a depor coercitivamente no
Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, as
conversas nos chats dos procuradores fa-
riam inveja aos atuais grupos bolsonaris-
tas no WhatsApp. “O que mais tinha no sí-
tio era boné do MST... Eu pensei em botar
um nos patinhos e sair pedalando”, zom-
ba Januário Paludo, ao falar sobre as bus-
cas no sítio de Atibaia. “Kkkkkk Januário!
Quero saber da adega!”, responde Jerusa
Viecili, ávida por mais detalhes. O procura-
dor então conclui: “Sem dúvida, o sítio é do
Lula, porque a roupa de mulher era muito

brega. Decoração horrorosa. Muitos tipos
de aguardente. Vinhos de boa qualidade,
mas mal conservados”.


O mesmo desprezo – e rigor – não era
visto com outros suspeitos, como atestam
mensagens trocadas por Moro e Dallagnol
em 13 de abril de 2017. Dias antes, Emílio
Odebrecht relatou pagamentos, via caixa
2, para campanhas de Fernando Henrique
Cardoso, mas o juiz cobrou cautela neste
caso. Quis saber se os crimes atribuídos ao
tucano não estavam prescritos, e o procu-
rador esclareceu que as movimentações do
Ministério Público eram pró-forma, para
“passar recado de imparcialidade”. Ainda
assim, o magistrado não se deu por satis-
feito: “Acho questionável, pois melindra al-
guém cujo apoio é importante”.


Às vésperas da instalação da Comissão
do Impeachment na Câmara dos Deputa-
dos, Moro retirou o sigilo de uma conver-
sa entre Lula e Dilma, interceptada pela
Polícia Federal fora do período autoriza-
Polícia Federal fora do período autoriza-
do judicialmente. O fato não passou des-
percebido pela força-tarefa da Lava Jato.
No chat dos procuradores, Andrey Borges
de Mendonça manifestou preocupação
com a validade da prova. Um intenso de-
bate desenrola-se, até Dallagnol encerrar
a discussão: “No mundo jurídico, concor-
do com você, é relevante. Mas a questão
jurídica é filigrana, dentro do contexto
maior, que é político”.


No grampo ilegal, Dilma anunciava a
intenção de nomear Lula como ministro
da Casa Civil, última tentativa de estan-
car a rebelião da base aliada no Congresso.
A presidenta prometeu enviar o termo de
posse por meio de um intermediário, pa-
ra que o ex-presidente usasse o documen-
to “em caso de necessidade”. Embora fosse
um procedimento corriqueiro, os lavaja-
tistas difundiram a versão de que o objeti-
vo era evitar a iminente prisão do petista.
Ao cabo, Lula assumiu o posto no dia se-
guinte, 17 de março, em cerimônia no Pa-
lácio da Alvorada encerrada por volta das
10h40. Cerca de uma hora depois, o juiz fe-
deral Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara
do Distrito Federal, suspendeu a posse por
liminar. Outras decisões semelhantes fo-
ram tomadas por instâncias inferiores da
Justiça, e cassadas por tribunais federais,
até Gilmar Mendes, ministro do STF, sus-
pender de vez a nomeação.


Na ocasião, Mendes foi celebrado como
herói. “Dá-lhe Gilmar!”, festejou Jerusa.
Depois, à medida que o ministro do STF
passou a criticar os abusos da Lava Jato,
tornou-se alvo da fúria dos procurado-
res. Em 20 de fevereiro de 2016, quando o
Supremo retirou da pauta uma denúncia
contra Renan Calheiros, um dos procura-
dores viu na decisão a possível intervenção

de Lewandowski, embora a decisão tenha
sido tomada por Teori Zavascki, então re-
lator dos casos da Lava Jato na Corte. “Is-
so. Lewa é brother do Renan assim como
Gilmar é brother do Cunha... família boa...
tudo cosa nostra”, diz Dallagnol, em men-
sagem à qual CartaCapital teve acesso. De
lá para cá, a irritação apenas acentuou-
-se, e a troca de farpas tornou-se pública.
Agora, Mendes apresenta-se como um dos
mais exaltados opositores dos métodos la-
vajatistas. “Lula é digno de um julgamen-
to justo”, disse em recente entrevista ao
apresentador José Luiz Datena, da Band.
Nem parece o mesmo homem que chan-
celou um grampo ilegal, como viria a de-
cidir mais tarde Zavascki, falecido em um
desastre aéreo em 2017.


Em qualquer nação onde vigo-
re o Estado de Direito, basta-
ria a revelação de que o juiz
orientou os promotores pa-
ra que o processo fosse anu-
lado. No Brasil, bem... As cortes superiores
recorrem a subterfúgios para deixar as coi-
sas como estão. Na terça-feira 2, a 5ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça recusou-
-se a analisar as mensagens hackeadas ao
julgar um recurso de Lula. Félix Fischer,
relator do caso na Corte, argumentou que
os dados não foram periciados nem passa-
ram por contraditório. O magistrado pa-
rece desconsiderar o fato de que o mate-
rial foi entregue à defesa do ex-presidente
por decisão de um ministro do Supremo, e
boa parte das mensagens foi analisada por
um perito. Além disso, fica difícil esperar o
contraditório, quando Moro se diz acome-
tido de problemas de memória. “Não reco-
nheço a autenticidade das referidas mensa-
gens, pois como já afirmei anteriormente
não guardo mensagens de anos atrás”, de-
clarou em nota.


“O conteúdo desses diálogos é de es-
tarrecer qualquer estudante de Direito,
por demonstrar que valores essenciais da
democracia constitucional e de práticas
de qualquer sistema de Justiça do mun-
do civilizado não foram, nem de longe

observados”, escreve o advogado Pedro
Serrano, professor de Direito Constitu-
cional da PUC de São Paulo, à página 20.
O especialista critica, ainda, a contorcio-
nista tese ventilada na mídia de que a sus-
peição não poderia ser aplicada no caso do
sítio de Atibaia, uma vez que a sentença foi
proferida pela juíza Gabriela Hardt, embo-
ra Moro tenha atuado na instrução do pro-
cesso. “O que se pretende com isso é que,
caso se confirme a nulidade do processo
do tríplex, o veredicto do sítio seja manti-
do, para que Lula continue alijado de seus
direitos políticos e, assim, impedido de se
candidatar na próxima eleição.”


 Enquanto o ex-presidente aguarda o
julgamento das apelações ao Supremo, a
força-tarefa da Lava Jato em Curitiba dá
seus últimos suspiros. A equipe foi dissol-
vida na segunda-feira 1º, mas alguns de
seus integrantes migraram para o grupo
de combate ao crime organizado, conhe-
cido pela sigla Gaeco, para dar continuida-
de às investigações. Sem apoio do procu-
rador-geral da República, Augusto Aras,
e desmoralizado pelas mensagens reve-
ladas pela Vaza Jato, o consórcio curiti-
bano agonizava há tempos. O fim do sigi-
lo sobre os comprometedores diálogos foi
a pá de cal que faltava. “Agora o País po-
de conhecer a mais danosa operação con-
tra a Justiça já vista”, tripudiou o senador
Renan Calheiros, do PMDB, um dos alvos
da operação. “A conspiração tramada pe-
lo Primeiro Comando de Curitiba foi tão
grande que o STF poderá ter dificuldade
em fazer uma peneira dos crimes come-
tidos pelos capos Sergio Moro, codinome
Russo, e Deltan Dallagnol.” •

CARTA CAPITAL



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