Movimento mistura saúde, ciência, religião e política — um microcosmos do que pode acontecer com a imunização contra a Covid-19
No segundo sábado de novembro, um grupo de mães do Acre realizou a primeira assembleia da Associação Brasileira de Vítimas de Vacinas e Medicamentos (Abravac). Realizada com o aplicativo Zoom, a reunião marcou o início de um novo capítulo numa história sem data marcada para acabar. As fundadoras dizem que tudo começou quando suas filhas e, em alguns casos, também filhos tomaram a vacina contra o HPV, sigla em inglês para um vírus transmitido sexualmente que pode provocar câncer. A partir desse ponto, dizem as mães, os adolescentes e pré-adolescentes passaram a apresentar sérios problemas de saúde.
Uma jovem de 17 anos — ela prefere que seu nome não seja revelado — é uma das que sofrem com convulsões frequentes, dores de cabeça e fraqueza desde 2015, quando tomou a vacina. Sua família foi uma das primeiras a procurar o Ministério Público do Acre, em 2017, para relatar o que entende ser uma consequência da vacina. “Logo depois que a primeira mãe nos procurou, vieram mais três ou quatro. Em seguida, eram dez e, com o passar do tempo, foi aumentando mais e mais”, disse o promotor Glaucio Oshiro, responsável pelo caso. No último levantamento, havia 48 casos. “Minha filha tinha 12 anos quando tomou a vacina. Era esperta, gostava de esportes, de natação. Agora não anda mais sozinha, não deixamos fazer mais nada. Ontem mesmo ela teve uma convulsão. As convulsões não param. É dia sim, dia não”, disse a mãe.
Quando o Ministério da Saúde foi acionado para atuar em parceria com o governo do Acre, no primeiro semestre de 2018, os adolescentes já tinham passado por diversos médicos da rede pública e particular sem que fossem detectados problemas orgânicos. Decidiu-se, então, selecionar os casos mais graves. Isso foi feito entre o fim de 2018 e início de 2019. Um grupo de 16 viajaria até São Paulo para ser investigado pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), centro de referência na América Latina. Quatro jovens se recusaram, mas 12 pegaram o avião e participaram dos testes coordenados pelos pesquisadores Renato Luiz Marchetti e José Gallucci Neto, diretor da Unidade de Videoencefalografia, especializada em atividade cerebral.
Além de exames clínicos e laboratoriais, os jovens foram monitorados constantemente por vídeos que registram e determinam a natureza de eventos suspeitos de epilepsia, alteração súbita do nível de consciência, coma, encefalite, desmaios, movimentos involuntários, alterações metabólicas, acidente vascular cerebral e estados catatônicos. Em outubro de 2019, ao fim do check-up, apenas um casal de irmãos foi diagnosticado com epilepsia de natureza genética, que costuma se manifestar na adolescência. Os outros dez casos foram classificados pelos especialistas como sendo de crises psicogênicas não epilépticas, conhecidas pela sigla CNEP, um fenômeno de origem psicológica. Ou seja, foi descartado qualquer problema com as vacinas contra HPV.
Os médicos da USP avaliaram que a CNEP coletiva foi desencadeada pelo medo do ato de vacinar, agravado por um ambiente predisposto contra a imunização e que disseminou insegurança. A demora no diagnóstico definitivo — foram quatro anos desde os primeiros casos — e condições psicossociais, como famílias disfuncionais, contribuíram para que o surto da doença psicológica se espalhasse. “É algo que pode ocorrer individualmente, quando, por exemplo, uma criança, tem medo da agulha. Mas também pode acontecer uma epidemia, em grupo. É uma situação bastante grave. É uma doença incapacitante”, afirmou Marchetti. Vídeos de adolescentes com crises compartilhados pelas redes sociais podem também ter influenciado outros jovens a apresentar os mesmos sintomas.
“Especialistas da USP examinaram os casos mais graves do Acre supostamente ligados à vacina contra HPV e os diagnosticaram como sendo de ordem psicológica. O resultado não agradou às mães, que acabaram de criar uma associação antivacina”
A falta de preparo e equipamentos dos profissionais de saúde que cuidaram desses casos no Acre antes da viagem a São Paulo só agravou a situação. Atendidos muitas vezes em unidades de pronto-socorro, alguns desses jovens chegaram a ser medicados com drogas para epilepsia e a ser internados. Houve casos até de intubação. Outras vezes, não receberam atenção por não apresentarem algo físico. “As crises não são falsas. Mas, por não terem fundo orgânico, muitos profissionais de saúde entendem como não sendo algo real”, disse o promotor Oshiro. Hoje pelo menos esse problema está sanado. Alysson Bestene Lins, secretário de Saúde do Acre, disse que foi montado um centro para atendimento dos adolescentes, com médicos, psicólogos e assistentes sociais. O maior obstáculo, segundo Lins, é que muitas famílias não levam seus filhos e filhas ao centro.
Quem achava que o diagnóstico feito pela USP encerraria a questão errou feio. Muitas mães simplesmente não aceitaram o veredito. Uma delas é a presidente da Abravac, Edilene dos Santos Conceição, mãe de M., hoje com 16 anos, que tomou a primeira dose da vacina contra HPV em 2015. Ela contou que os primeiros sintomas da filha foram dores e fraqueza nas pernas. Após a segunda dose, tomada em 2018, a adolescente começou a desmaiar. Conceição disse que relacionou o problema à vacina quando, na igreja Assembleia de Deus, ouviu o testemunho de uma fiel contando que uma parente havia ficado 40 dias na UTI, muito tempo na cadeira de rodas e sem enxergar quase nada. A família atribuía o problema ao imunizante e a cura a Deus. “Era um testemunho. Quando ouvi, fiquei atenta e angustiada. Pensei nos sintomas de minha filha”, disse Conceição. Em vários grupos conservadores se espalhou a ideia de que a vacina HPV, por combater um vírus sexualmente transmissível, estimularia o início da vida sexual dos adolescentes, uma suposição sem amparo em nenhum grupo de pesquisas respeitado pela comunidade científica.
No meio médico, a principal voz contra a vacina HPV e a favor das mães que negam o diagnóstico da USP é Maria Emília Gadelha Serra, que se tornou conhecida durante a pandemia do coronavírus ao propor aplicação retal de ozônio como tratamento. Serra disse que entrou no caso do Acre a pedido de Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. “Ela pediu para eu ver o que acontecia no Acre”, disse Serra. Procurada, a ministra afirmou que não se manifestaria. Em outubro de 2019, Serra falou contra a vacina HPV a políticos na Assembleia Legislativa do Acre. No mês seguinte, a médica fez uma apresentação numa sessão da Comissão de Seguridade e Saúde da Câmara dos Deputados. Em ambas as ocasiões não faltaram teorias conspiratórias. Em conversa com ÉPOCA, Serra disse que o estudo da USP é uma “farsa” e defendeu que os adolescentes fossem submetidos a angiografia por ressonância magnética — que visualiza as veias e artérias. Marchetti, da USP, disse que o exame foi feito apenas nos casos em que era necessário para descartar o diagnóstico de hipertensão intracraniana e que Serra usa um discurso pseudocientífico na tentativa de desacreditar a ciência.
O advogado Lucas Loesch, diretor jurídico da Abravac, afirmou que a entidade não quer imputar culpa ou responsabilidade a ninguém, mas buscar mais de uma opinião sobre o caso das meninas do Acre. “Ouvir a opinião de um único instituto é frágil. Pelo menos três institutos de renome deveriam avaliar os casos”, disse Loesch, que espera que a entidade recém-criada receba doações para contratar novos estudos.
Na segunda semana de novembro, o Ministério da Saúde divulgou uma nota afirmando que fake news e tabus são um problema. Citando especificamente o caso da vacina contra HPV, o texto diz que a desinformação é um dos fatores que afastam os adolescentes dos postos de saúde. Com as vacinas contra o coronavírus chegando perto do estágio de aprovação, o medo de vários especialistas é que movimentos como o das mães do Acre contaminem o esforço de imunização que terá de ser montado.
ÉPOCA
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