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May 14, 2020
O medo de quem está na linha de frente contra o coronavírus
Aline Ribeiro
Desde que o novo coronavírus se tornou pandemia, o enfermeiro
intensivista Welby Cavalcante, de 37 anos, não se lembra de ter tido um
instante de tranquilidade. Sua profissão, como outras tantas, o expõe
ainda mais a esse inimigo invisível. Durante as 12 horas em que
permanece em seu turno num hospital da capital paulista, Cavalcante vive
com receio — teme desde encostar numa bancada contaminada até fazer
gestos simples, como se distrair e levar uma das mãos ao rosto. Ao
deixar o plantão, o estado de alerta constante só altera de cenário. Nas
últimas semanas, São Paulo registrou alguns episódios de agressão a
profissionais de saúde nas ruas e no metrô. “Antes eu tinha orgulho de
vestir meu uniforme branco, agora tenho medo”, disse. “A população não
consegue entender que, se temos contato direto com paciente suspeito ou
confirmado, ou ainda com qualquer fluido, trocamos de roupa. Estamos
aqui para ajudar, não queremos contaminar ninguém.”
Cavalcante e sua mulher, a também enfermeira Regiane de Almeida, de
42 anos, trabalham em dois grandes hospitais. Há semanas, só lidam com
pacientes infectados por coronavírus, parte deles em estado grave. Se
antes as regras para entrar na UTI já eram rigorosas, agora Cavalcante
tem de cumprir protocolos minuciosos, com disciplina militar. À chamada
roupa privativa, uma calça e camisa cor de vinho, somam-se avental,
máscara N95, óculos, luvas e touca. Se precisa sair, todo o uniforme é
trocado ao retornar. Ele soube de casos, em hospitais onde já falta
material, de enfermeiros que estão usando fraldas para não desperdiçar
equipamentos de proteção individual (EPI) toda vez que vão ao banheiro.
“A gente tem a sensação de que a UTI inteira está contaminada. Se
esbarra em qualquer coisa sem querer, já corre para passar álcool em
gel”, contou. “Saio todo dia pensando se fiz tudo certinho, se me
contaminei. A gente sempre está com a pulga atrás da orelha. Se dou um
único espirro, tenho a impressão de que é Covid.”
“O enfermeiro e a enfermeira já foram hostilizados na rua. O coveiro
percebeu que não fica imune à tristeza alheia. A técnica do laboratório
tem trabalhado dobrado”
Nos primeiros dias do isolamento recomendado pelo governo estadual,
Cavalcante e a mulher deixaram o plantão numa manhã e foram para a
padaria tomar café, como de costume. Ao se sentar, já começaram a ouvir
os burburinhos. Um dos presentes disse que era um absurdo eles estarem
ali de uniforme para “contaminar todo mundo”. Outro emendou que tinham
de expulsá-los. Um terceiro, mais radical, falou que, se não saíssem por
bem, ele “resolveria na porrada”. “Até a atendente estava com medo da
gente. Decidimos levantar e ir embora”, recordou.
Cavalcante diz que essa não foi a única situação de ameaça. Certa
vez, ele e a mulher estavam uniformizados dentro do carro, com os vidros
abertos, quando alguém arremessou um objeto em sua direção e xingou.
Seus colegas de trabalho já tiveram de ser escoltados até a estação de
metrô. “Agora a situação melhorou porque o hospital nos desobrigou a
chegar de uniforme e até ampliou o vestiário para a gente se trocar. Na
rua, nunca mais vesti branco.”
Cavalcante acredita ser quase
inevitável ser infectado pelo novo coronavírus. Seu maior temor é
transmitir a doença para familiares do grupo de risco. O casal tem um
filho de 8 anos que fica com os avós idosos sempre que os pais se
ausentam. Apesar de terem um trato de não conversar sobre os pacientes
em casa, ele e a mulher acabam falando dos casos mais graves já na volta
do trabalho. Não conseguem se desligar nem nas horas de descanso. Para
tentar aplacar a ansiedade e espairecer um pouco, Cavalcante comprou um
ukulele para ele, instrumento musical que parece um cavaquinho, e um
cachorro Shih tzu para o filho. “Quando chega a hora de trabalhar de
novo, o coração já começa a bater mais forte. Quando tudo isso acabar,
muitos colaboradores vão se afastar por problemas psiquiátricos.”
Num dos maiores cemitérios de São Paulo, o sepultador Paulo* redobrou
os cuidados dele e da equipe para reduzir a chance de exposição ao
vírus. Paulo é supervisor de quadra. Além de coordenar outros coveiros,
faz também o trabalho mais pesado, o de abrir covas na terra,
transportar os cadáveres para sepultá-los, exumar, limpar as gavetas das
urnas e ossários. Ele contou que, embora os mortos por suspeita ou
confirmação para Covid-19 cheguem envoltos em plástico e caixão
impermeáveis, ainda assim há o risco de vazamento do chorume, o líquido
que sai quando o corpo se decompõe. Como o vírus permanece por bastante
tempo nas superfícies, é possível que a própria urna de madeira esteja
contaminada. “A gente usa tudo que pode: bota, calça, uniforme, macacão
para ocasiões especiais, luva e máscara. Se cai ali alguma coisa, tira e
joga fora”, disse.
O perigo maior, no entanto, é o contato com
familiares das vítimas, potencialmente infectados. São comuns os casos
em que parentes que vivem na mesma casa estão infectados. Paulo contou
que, semanas atrás, um jovem que sepultou o pai já havia enterrado uma
prima e estava também com a mãe contaminada. “No nosso dia a dia estamos
sujeitos à contaminação. Meu maior receio é levar para dentro de casa.
Minha mãe é diabética, tem pressão alta e mais de 70 anos. A gente fica
com medo, não é?”
Os funerais, onde antes se aglomeravam até 100 familiares e amigos,
agora ocorrem com pouquíssimos acompanhantes, como mostrou ÉPOCA há três
semanas. “Dia desses teve um enterro com três familiares do morto, a
mãe e dois irmãos. Muitos deixam de ir para não correrem o risco. É
muito triste”, lamentou. As despedidas, hoje mais breves, nem
possibilitam um último adeus. Por determinação dos órgãos responsáveis,
todos os caixões ficam lacrados.
Sepultador há sete anos, Paulo
disse que a média de enterros que fazia por dia, em tempos
pré-coronavírus, era de 35. Atualmente, está em 50. Com o passar do
tempo na profissão, imaginou que estava se tornando frio, mas agora
percebe que manteve a sensibilidade. “Desde que perdi minha irmã, no fim
do ano passado, voltei a enxergar a dor dos outros. Ainda mais quando a
morte é desta forma repentina, a pessoa está bem e, em cinco dias,
acabou.” Defasagem estrutural dos laboratórios está descrita em boletim do Ministério da Saúde Foto: Fabio Motta / Agência O Globo
No laboratório privado onde trabalha a bióloga Vera*, um dos mais
atuantes de São Paulo na realização de exames para descartar ou
confirmar a contaminação pelo novo coronavírus, o perigo chega em forma
de pequenas gotículas. Vera trabalha no setor onde são feitos os
chamados testes moleculares, também conhecidos como RT-PCR. A partir de
amostras de secreções coletadas do nariz ou da garganta de um potencial
contaminado, colocadas em máquinas, a presença do código genético do
novo coronavírus no material é identificada ou descartada.
“Sempre tem risco de contaminação para quem trabalha com material
biológico. No caso da biologia molecular, é o risco de algum aerossol,
alguma gotinha do material entrar em contato com a gente. O momento de
maior tensão é quando trabalhamos com a amostra primária do paciente”,
disse. “O importante é que estamos todos paramentados, usamos até aquele
aparato de acrílico que cobre o rosto inteiro. Estamos cobertos de
‘armamentos’ para isso não acontecer.”As amostras do “corona”, no
jargão da saúde, não param de chegar, e a rotina dos profissionais
envolvidos diretamente com os testes foi completamente alterada no
laboratório. Não só pelas horas extras trabalhadas, mas pelo avanço dos
turnos aos finais de semana e madrugadas. “Os testes têm prazo de
resultado curto, então é preciso urgência na liberação. Além disso,
continuamos atendendo a todas as demandas usuais do laboratório”,
afirmou. Vera disse ter mais receio de ser contaminada ao sair de casa e
trabalhar ao lado de outros colegas do que ao manipular o material em
si.
Para se preservar, toma os cuidados básicos em casa, como
deixar o sapato do lado de fora ao chegar, tomar banho e colocar as
roupas para lavar. Quando pode, adere ao isolamento social. “Fico
sozinha em casa e estou há quase dois meses sem ver meus pais. Só
saberemos até quando vamos estar expostos se houver teste maciço da
população.”
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