Manter os jogos eletrônicos na periferia das artes "sérias" acaba gerando um tratamento irracional, que resvala em decisões judiciais equivocadas.
RONALDO LEMOS
Colunista da Folha
PEDRO MIZUKAMI
Especial para a Folha
Raramente os cadernos de cultura falam sobre games. Em geral, as críticas são técnicas e não observam o valor narrativo dos jogos como uma mídia privilegiada para contar histórias e levantar questões. E, sobretudo, como um referencial cultural cada vez mais compartilhado.
Dados sobre hábitos culturais em algumas capitais, divulgados recentemente pelo Ministério da Cultura, mostram que, em todas, a prática de "jogar games" é mais comum do que "ir ao cinema" (em São Paulo, por exemplo, os números são 13% e 8,7%, respectivamente). É um bom momento para pensar sobre esse fenômeno. A narrativa dos jogos vem atingindo momentos notáveis. Um exemplo é o recente "Call of Duty: Modern Warfare 2 (MW 2)". As análises mais corriqueiras vão dizer que é um excelente jogo de tiro. Dificilmente vão notar que ele trata da questão da moralidade da guerra, o mesmo tema de Barack Obama em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz.
Em um trecho do game -que pode ser evitado-, o personagem controlado pelo jogador é um agente da CIA infiltrado em uma célula terrorista ultranacionalista na Rússia. Forçado a participar do massacre de centenas de civis em um aeroporto, ele protagoniza a atrocidade. O que fazer, disparar? E em que outras missões disparar também se justifica?Estão presentes, aqui, os embates morais clássicos, encarados a partir da lógica do terrorismo e da guerra contemporânea. "Modern Warfare 2" coloca o jogador em situações que lembram a ele sua condição de ser moral.
A cena é perturbadora, como um filme de Samuel Fuller. A diferença é que a imersão do jogo torna o seu impacto bastante diferente. Qualitativamente diferente, e não "maior" ou "menor". É justamente por conta de preconcepções quanto aos efeitos da "interatividade" que os jogos costumam ser tratados diferentemente dos filmes ou dos livros. Isso tanto dificulta sua emancipação enquanto arte quanto reforça sua conexão com o mercado. É um exemplo da mesma ansiedade regulatória que acompanhou o nascimento da indústria cinematográfica norte-americana. Ansiedade que resulta até em pânicos morais e censura. Que, ironicamente, acabam ajudando a divulgar os jogos.
Para encarar os jogos com um olhar diferente, vale falar também de diversidade sexual. No ano passado, o jogo "Mass Effect" causou polêmica em razão de uma relação entre uma humana e uma personagem alienígena. Em "Fable 2", o protagonista, um(a) garoto(a) órfão(ã), pode -se quiser- estabelecer relações afetivas com ambos os sexos. Ao saber que os games de hoje colocam os jogadores como protagonistas de massacres terroristas ou de relações homossexuais, muitos vão se sentir saudosos da época de "River Raid" e "Pac-Man", em que as coisas eram mais simples. É exatamente esse o sinal de que os jogos viram arte. Incomodam do mesmo jeito que incomodava o cinema de Hollywood dos anos 70. Mantê-los na periferia (ou como rebeldes sem causa) das artes "sérias" acaba gerando um tratamento irracional, que resvala em decisões judiciais e projetos de lei que enxergam os games como se estivessem fora da garantia constitucional de liberdade de expressão.
Neste ano, vamos acompanhar o destino do projeto de lei do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que estabelece a proibição de jogos ofensivos "aos costumes e à tradição dos povos". Acompanharemos também lançamentos que apostam no experimentalismo, como "Heavy Rain". Entre "Heavy Rain" e Valdir Raupp, há um universo complexo, ao qual um pouco mais de atenção não vai fazer mal nenhum.
Folha de São Paulo, 7 de janeiro de 2009