February 22, 2023

Yoko Ono sempre quer te perturbar


 GABRIELA RAMOS DE ALMEIDA

"Em 1971, os jornais The New York Times e The Village Voice anunciaram a exposição Yoko Ono: One woman show, em cartaz no Museum of Modern Art (MoMA). A mostra tinha catálogo próprio e atraiu centenas de visitantes que, ao chegarem ao local, descobriam que a exposição consistia em uma intervenção não oficial no jardim de esculturas do MoMA na qual um homem informava aos interessados que a artista havia levado até lá um recipiente cheio de moscas com o cheiro do perfume que ela usava, aberto a tampa e liberado as moscas, que se espalharam pelo jardim, pelo museu e pela cidade. Quem quisesse poderia tentar procurá-las. 

A exposição existiu e não existiu: existiu porque tinha anúncio e catálogo, e porque o relato em si fazia com que os visitantes passassem a imaginar a obra. E não existiu porque nunca fez parte da programação do MoMA, além de ser desprovida de qualquer materialidade. Aqui importa menos a verdade factual e mais o gesto performático e fabulatório que Yoko Ono continuará colocando em cena em sua extensa carreira: os relatos sobre a exposição produzem rastros que por sua vez geram imaginação e memória, fazendo com que, mais de 50 anos depois, estejamos aqui especulando sobre o que ela teria (ou não teria) feito. 

O episódio do MoMA, executado quando a artista nascida no Japão, entre idas e vindas a Tóquio e Londres, morava em Nova York havia já quase 20 anos, ilumina uma trajetória artística de sete décadas marcada pelo pioneirismo da consciência performática, pela inscrição do feminismo na performance art e pelo desejo de jogar com a indiscernibilidade, de trabalhar com a arte como campo de probabilidades capaz de perturbar o público, invocando aquilo a que Umberto Eco denomina de “atos de liberdade consciente” em seu tratado de 1962 sobre forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas, Obra aberta.

 O estranhamento e a perturbação como marcas da experiência estética oferecida pelo trabalho artístico de Yoko Ono são verificáveis desde a observação à reação crítica ao seu trabalho nos anos de 1960 até os comentários tanto sobre suas performances em museus e galerias quanto sobre aparições televisivas recentes disponíveis no YouTube. A aparente banalidade de uma singela maçã verde disposta em um pedestal de acrílico (Apple, de 1966) ou a aleatoriedade de uma performance composta por três minutos de gritos e gemidos que evocam prazer, dor, descontrole, êxtase e repetição, como na execução de Voice piece for soprano – instrução escrita em 1961 e encenada em 2010 no mesmo MoMA – levam ao paroxismo o questionamento tão comum à arte contemporânea sobre quais critérios são utilizados para definir o que é arte, quem é autorizado a adotá-los e quais são, afinal, as instâncias de consagração e reconhecimento do campo. Yoko Ono transita de modo tão onipresente e desestabiliza performativamente a figura do artista de tal modo que nos faz pensar sobre performance mesmo sem que tenhamos consciência disso. Ao digitar seu nome no Google, uma das primeiras sugestões automáticas do buscador é “Por que Yoko Ono grita?” 

A mesma artista que incomoda os desavisados com suas performances guturais, seja no museu ou dividindo o palco com Lady Gaga, é coautora de uma das músicas mais populares e tocadas da história – Imagine, canção que foi criada, aliás, com inspiração em textos seus anteriores publicados no livro Grapefruit (1964). E se a misoginia também tem sido um traço do modo como Yoko Ono vem sendo tratada publicamente ao longo do tempo, muitas vezes reduzida a apêndice do artista genial, desde a repetida acusação de que teria sido responsável pelo fim dos Beatles até as reações negativas ao seu trabalho artístico, baseadas menos em juízo de valor e mais num incômodo com sua figura pública e com a estranheza de sua poética, não se pode esquecer que ela só foi creditada oficialmente como compositora de Imagine em 2017, em resposta ao desejo manifesto tardiamente por John Lennon, já que ele mesmo assinou sozinho a autoria da canção em sua gravação original, lançada em 1971.

 Para muito do que se faz de perturbador na arte, a impressão é de que Yoko Ono — figura interessante por ser ambígua — já havia feito antes 

A mesma artista que é personagem central da cultura midiática sem que seu reconhecimento esteja à altura de sua onipresença criou e encenou ainda em 1964 a performance Cut piece, em que se mantinha sentada solitária no chão do espaço cênico, imóvel e inexpressiva, enquanto o público dispunha de uma tesoura e cortava partes de suas roupas, tornando seu corpo bastante vulnerável. Inevitável a lembrança de Marina Abramović e sua perturbadora e mais conhecida performance Rhythm 0, com todas as questões evocadas ali relativas a gênero, ética, alteridade, fragilidade, sofrimento e violência coletiva. Ou seja, ainda que Abramović tenha se tornado figura referencial da arte performática feminista e tenha ajudado a popularizar a performance como território de antecipação da discussão sobre feminismo na arte ocidental na virada do século, Yoko Ono havia elaborado um dispositivo de criação bastante semelhante uma década antes. Com ela é assim: para muito do que se faz de perturbador na arte (e sem qualquer intenção de estabelecer aqui um “grau zero”), a impressão é de que Yoko Ono já havia feito antes. 

A mesma artista protagonista de uma das imagens fundamentais da cultura visual contemporânea – a foto com John Lennon nu abraçado a seu corpo vestido, feita por Annie Leibovitz e publicada na capa da revista Rolling Stone em janeiro de 1981 e que se tornou histórica não apenas pela sua força expressiva e pela nudez, mas também por ter sido feita no mesmo dia do assassinato do músico – aprendeu a circular entre o experimental e o pop muitos anos antes, seja em função de sua própria formação musical, seja pela sua capacidade de leitura do espírito do tempo. 

Ainda em meados dos anos 1960, em meio aos seus investimentos na interface entre música e performance art e também de sua atuação junto ao movimento Fluxus, Yoko Ono produziu em seu apartamento novaiorquino a temporada que ficou conhecida como Chambers street loft series, com a realização de shows e performances que passaram a ter entre o público gente como Peggy Guggenheim, Max Ernst e Marcel Duchamp, pelo que ela conta. Esse é o momento também em que Yoko Ono estabelece uma parceria de criação com John Cage, fortalecendo seu elo com a música experimental, bem como o período em que inicia uma aproximação com Andy Warhol, passando a frequentar The Factory (o conhecido estúdio do artista), e com Jonas Mekas, que produz em 1969 o curta Bed-in, filme no qual registra a ação Bed-in for peace, em que Yoko Ono e John Lennon utilizaram sua popularidade para protestar contra o acirramento da violência estadunidense na Guerra do Vietnã (dos anos 1950 aos 1970) com performances realizadas em camas de quartos de hotel. 

Esse trânsito é justamente onde se localiza uma parte importante da agência da artista: dos contextos midiáticos de maior exposição ao ambiente dos museus, passando pela cena vanguardista novaiorquina das décadas de 1960 e 1970, Yoko Ono é uma figura tão interessante justamente porque muito ambígua. Não se enclausura no mercado da arte e, ao mesmo tempo em que aparece como uma personagem pop, também ocupa os espaços museísticos com trabalhos de intensa radicalidade. Joga com a fama e, embora o casamento célebre e sua atuação política pacifista eventualmente tenham eclipsado seu trabalho artístico, é capaz de se manter como aquela figura que todo mundo conhece, ainda que talvez pouca gente tenha a dimensão da extensão de sua produção artística, tanto em termos de linguagens e suportes como de perenidade. Circula entre o pop, a vanguarda e o experimentalismo produzindo desde performances que parte do público considera insuportáveis até discos de música pop, dance e rock com singles que chegam ao topo das paradas, como Walking on thin ice e Everyman/everywoman. 

Também marca a sua trajetória a capacidade de estabelecer parcerias de criação no campo da música e se manter como uma figura de referência com quem muitos artistas mais jovens gostariam de trabalhar. Já no século XXI, com mais de 70 anos, gravou dois ótimos discos – Yes, I’m a witch (2007) e Yes, I’m a witch too (2016) – com remixes de canções suas e participações da nata do indie pop, do electro e do rock experimental, como Le Tigre, Peaches, Cat Power, Death Cab for Cutie, Moby, The Flaming Lips e Jason Pierce, do Spiritualized. Em 2012 lançou o difícil álbum Yokokimthurston, parceria com Kim Gordon e Thurston Moore, ex-integrantes do Sonic Youth. Um disco com 60 minutos e apenas seis músicas, composto basicamente da performance vocal de Yoko Ono e do instrumental noise de Gordon e Moore, com algumas intervenções vocais também do ex-casal. Um álbum de música experimental que funciona bem como síntese dos interesses e trajetórias dos três artistas, com marcas autorais bastante reconhecíveis, mas de uma escuta árida que demanda enorme disposição – inclusive em função do formato das músicas, que não possuem estrutura formal convencional. 

Figura aparentemente capaz de estar ao mesmo tempo em todos os lugares e em lugar nenhum, Yoko Ono opera dissenso e perturbação sensível em todos os espaços que ocupa. Embora Nova York seja a cidade em que vive há mais de 60 anos e onde produziu praticamente toda a sua obra, exercendo também enorme influência como farol da cena artística local ao longo das décadas, apenas em 2015 ganhou uma mostra dedicada inteiramente à sua obra no mesmo MoMA em que produziu sua ocupação de guerrilha em 1971. E se sua vida e obra carregam um caráter não apenas fabulatório e performático como também anedótico, faz muito sentido que justamente na montagem de uma exposição sua no Instituto Tomie Ohtake (SP), em 2017, um telefone fixo acompanhado da frase “Quando o telefone tocar, saiba que sou eu”, que era um dos trabalhos à mostra, de fato tenha tocado. Mas era o telemarketing, não era Yoko Ono."

SUPLEMENTO PERNAMBUCO 



February 8, 2023

Fuga de garimpeiros da terra yanomami tem dias na mata, longos percursos de barco e trecho a pé

 

 


VINICIUS SASSINE & LALO DE ALMEIDA

Para quem não consegue escapar pelo ar, a fuga da Terra Indígena Yanomami envolve caminhadas por dias na floresta, percursos em barcos ao longo do rio Uraricoera —que podem durar entre um e dois dias— e caminhadas por terra, mais precisamente por 30 km de uma estrada vicinal que conecta uma vila e um portinho usados como bases logísticas para o garimpo ilegal.

A reportagem da Folha esteve em dois portinhos clandestinos e constatou o movimento de fuga feito por garimpeiros que invadiram a terra indígena, após o início da asfixia das atividades de garimpo ilegal.

O governo Lula (PT) deu início às operações e retirar os mais de 20 mil garimpeiros que invadiram o território ao longo dos últimos anos. As ações couberam ao Ibama (instituto ambiental), com suporte da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e da Força Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Agentes do Ibama estiveram na terra indígena na segunda (6) e na terça-feira (7). Eles destruíram um helicóptero, um avião, um trator e estruturas que garantiam a logística de uma área de garimpo. Houve ainda apreensão de duas armas e três barcos com cerca de 5.000 litros de combustível.

Como parte do início da operação uma base de controle foi instalada num trecho do rio Uraricoera, um dos principais cursos d’água usados para acesso dos invasores às áreas de exploração de ouro e cassiterita.

Esse rio vem sendo usado também como rota de fuga de garimpeiros, desde o início do controle do espaço aéreo pela FAB (Força Aérea Brasileira), no último dia 1º, com restrição de voos no território. E, desde o dia 20, ações de emergência em saúde estão em curso, com equipes deslocadas para as regiões de Surucucu e Auaris.

Todos esses fatores provocaram um movimento de fuga de garimpeiros, que se viram diante de preços inflacionados de voos clandestinos, operados por outros garimpeiros.

O preço para um deslocamento pode chegar a R$ 15 mil, e invasores mais pobres se veem sem condição de pagar. Pilotos cobram ainda em ouro. Uma viagem individual não sai por menos de 15 gramas de ouro –R$ 280 por grama na cotação dos garimpeiros ilegais, R$ 4.200 no total.

Há relatos de pistas de pouso clandestinas interditadas pelos próprios garimpeiros, como forma de protesto, e de invasores ilhados na floresta, sem condição de deixarem a região.

Por isso, grupos de garimpeiros têm feito o caminho de volta pela mata, pela água e por terra.

O porto do Arame, como é conhecido, é um dos pontos de chegada de garimpeiros, muitos deles com famílias, incluídas crianças.

O entreposto no rio Uraricoera só é acessado por uma estrada vicinal em péssimo estado de conservação —e assim mantida para evitar a aproximação de policiais.

Para percorrer os 30 km entre a vila Reislândia (ou vila do Paredão, como é mais conhecida) e o portinho, são necessárias três horas num carro com tração 4 x 4 e pneus adaptados para a lama. A vila pertence ao município de Alto Alegre (RR), que fica a 85 km da capital Boa Vista.

Família que deixou garimpo na terra yanomami aguarda transporte na estrada que liga o porto do Arame à vila Reislândia, em Alto Alegre (RR) - Lalo de Almeida/Folhapress

Garimpeiros estão chegando ao portinho depois de dias de caminhada na mata e de um ou dois dias descendo o rio em barcos grandes, de 12 metros de comprimento.

Muitos desses garimpeiros carregam apenas uma rede de dormir e um terçado. Outros levam malas nos ombros e galões usados para guardar mantimentos. Esses galões servem também como boia, caso ocorra algum acidente com o barco. Uma parte retorna da área de garimpo portando gramas de ouro.

No portinho, donos de veículos adaptados aguardam clientes para a travessia dos 30 km até a vila. O lugar no carro é negociado por um valor entre R$ 250 e R$ 500. Muitos não podem pagar e fazem o percurso a pé.

Num posto de gasolina na vila, cerca de 30 carros comuns aguardam a chegada dos garimpeiros, para o transporte até o destino final —que, para grande parte, é Boa Vista.

O movimento é maior no fim de tarde e início de noite, como forma de driblar eventual fiscalização nas estradas. Os garimpeiros querem manter o ouro que ainda conseguem levar da terra yanomami.

 

A reportagem constatou que uma parcela expressiva de invasores em fuga é de homens idosos. Alguns diziam ter malária —doença que, segundo relatório elaborado pelo Ministério da Saúde e obtido pela Folha, dobrou durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) na área indígena.

O portinho deixado para trás já tem um aspecto de coisa abandonada, com botas e galões espalhados, carcaças de barracas de apoio desmontadas, muita sujeira e carros queimados —a queima teria ocorrido em operações passadas do Ibama.

Um segundo portinho usado pelos garimpeiros é conhecido como porto da Calcinha —uma calcinha vermelha marca a entrada do lugar. Esse entreposto tem um acesso mais fácil, e até por isso vem sendo menos usado pelos invasores, temerosos de ações policiais.

Motoristas ficam no porto aguardando garimpeiros que chegam pelo rio Uraricoera, para o transporte até os núcleos urbanos.

A presença de mais de 20 mil garimpeiros na terra yanomami, durante tanto tempo, só foi possível em razão da grande quantidade de voos clandestinos que operam no território.

Mesmo com a declaração de emergência em saúde pública, com maior presença de equipes de saúde em Auaris e Surucucu e com a atenção voltada à crise dos yanomamis, o garimpo vinha executando mais de 40 voos por dia.

O controle do espaço aéreo pela FAB se deu a partir de um decreto do presidente Lula que ampliou o poder de atuação do Ministério da Defesa e permitiu a criação da Zida (Zona de Identificação de Defesa Aérea).

Em uma área ficaram proibidas aeronaves, a não ser militares ou relacionadas à operação de emergência. Foram especificadas ainda áreas reservadas ou restritas. Radares móveis passaram a dar suporte a esse controle do espaço aéreo.

"As aeronaves que descumprirem as regras estabelecidas nas áreas determinadas pela Força Aérea estarão sujeitas às medidas de proteção do espaço aéreo", disse a Aeronáutica, em nota.

Segundo o secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Ricardo Weibe Tapeba, o governo conta com a saída dos garimpeiros para implantar pelo menos dois hospitais de campanha no território yanomami, um na região do Surucucu e outro no Auaris, a fim de desafogar a alta demanda de pacientes que precisam ser removidos por aviões da área indígena para Boa Vista.

"Nós acreditamos que só será possível assegurar uma universalização da saúde indígena do povo yanomami com a retirada dos garimpeiros para a das comunidades e dos nossos profissionais", declarou durante entrevista coletiva nesta terça, em que fez um balanço dos trabalhos iniciais da força-tarefa para conter a crise.

"Estamos aguardando a conclusão da reforma da pista de Surucucu para a gente tentar antecipar ou agilizar a implantação de um novo hospital de campanha naquela região. Entendemos que neste momento precisamos de no mínimo dois hospitais de campanha funcionando no território e temos clareza de que é possível fazer o tratamento de muitos desses pacientes no próprio território", disse.

Colaborou João Paulo Pires, de Boa Vista.  

FOLHA

 

 

 

 

 

 

February 6, 2023

Milton Nascimento - Cais



para quem quer se soltar
invento o cais 

Robert Zemeckis usa IA para reproduzir a crônica da existência de um lugar





"O trabalho da Metaphysic não se limita a face swaps perfeitos – a empresa trabalha também com restauro e manipulação de filmes antigos – mas pode abrir novos caminhos para aprimorar as turnês de shows que vieram sendo feitas com hologramas de artistas musicais vivos – caso do ABBA, por exemplo – ou mortos – de Buddy Holly e Roy Orbison a Maria Calas e Frank Zappa.
Seguindo essa linha de raciocínio, as possibilidades são praticamente infinitas. Uma reunião dos Beatles, com deepfakes em tempo real de John e George no mesmo palco que Paul e Ringo? Uma recriação digital da apresentação de Jimi Hendrix em Woodstock? Um espetáculo revivendo a Jovem Guarda, com as versões mais jovens, seminais, de Roberto e Erasmo? Um Tim Maia menos temperamental e mais pontual?"
mais no artigo de José Emilio Rondeau

Robert Zemeckis usa IA para reproduzir a crônica da existência de um lugar

Brasília, Itaparica, Palmares

 SIDARTA RIBEIRO


Desde as eleições, passei a espe-
rar o golpe a cada dia, certo de
que os derrotados no jogo de-
mocrático não escapariam a seu destino
manifesto. A emocionante posse do pre-
sidente Lula baixou um pouco a minha
guarda, mas a pulga continuava atrás da
orelha... “Você já está tranquilo?”, per-
guntei a um amigo querido na noite do
sábado, 7 de janeiro. Ele apenas sorriu.
No dia seguinte, foi aquilo que se viu...
O violento e vexatório desenrolar dos
fatos revelou uma conspiração entre po-
líticos, militares, policiais, milicianos e
pensionistas para emparedar o novo go-
verno com uma operação de Garantia da
Lei e da Ordem. Felizmente, o presidente
é mandingueiro e não mordeu a isca. Es-
capou da arapuca, voou para Araraquara
e agiu com eficácia cirúrgica quando os
terroristas mostraram as garras.


Ocorre, entretanto, que a arraia-
-miúda responsabilizada pela barbárie
não inclui nem os bem treinados coman-
dos que tocaram o terror em Brasília na-
quele domingo sem lei, nem os coman-
dantes fardados que impediram sua pri-
são naquela noite sórdida.


A recente demissão do comandante do
Exército foi um passo importante para
expurgar os golpistas, mas resta saber se
o que ocorreu foi mesmo um golpe que
deu errado, ou apenas um aviso para que
Lula não mexa nos privilégios daqueles
que amam supersalários, mas odeiam a
democracia.


Não era para estarmos discutindo na-
da disso, pois urge acabar com a fome e
revolucionar a educação, a cultura, a ci-
ência e o meio ambiente. Infelizmente, os
mortos-vivos da ditadura insistem, po-
rém, em puxar a nossa perna.


Para o passado deixar de nos assom-
brar, precisamos aproveitar esta segunda
oportunidade histórica de nos livrarmos
dos discípulos de Silvio Frota e Brilhante
Ustra. Temos que desfascistizar o Estado
para remover dele todo racismo, machis-
mo, homofobia, carniceria e gangsterismo.
Há chance de vitória contra tanta for-
ça bruta? A verdade é que não temos es-
colha. Se quisermos sobreviver, preci-
samos enfrentar o perigo com a pronti-
dão de Maria Felipa e outras marisquei-
ras da Ilha de Itaparica quando, exata-
mente 200 anos antes da intentona bol-
sonarista, entre os dias 7 e 9 de janeiro
de 1823, repeliram os inimigos da nação
a golpes de cansanção.


O que temos pela frente é um jogo de
Capoeira Angola quase sem espaços, gin-
ga miúda de muita atenção e golpes cer-
teiros de poder civil. Ou, se preferirem,
um jiu-jítsu jurídico, dedo por dedo, até
separar o joio golpista do trigo patriótico.
Argentina 1985, Brasil 2023: tudo a ver.
As Forças Armadas precisam apren-
der que não são o fiel da balança nem o
poder moderador. Os militares precisam
entender que não são competentes ou ho-
nestos por natureza, nem inimputáveis
por definição. Os 1,6 mil chefes militares
que ganham acima de 100 mil reais por
mês precisam explicar qual é o serviço
tão essencial que prestam ao povo brasi-
leiro para justificar o estouro vergonhoso
do teto salarial do funcionalismo público.


Nossas prioridades precisam ser as
professoras, creches, escolas, postos de
saúde, hospitais, institutos federais, uni-
versidades, institutos de pesquisa, uni-
dades de conservação, terras indígenas,
aldeias e quilombos. Nossos exemplos
precisam ser pessoas como o mateiro e
sementeiro Saberé, da reserva biológica
de Saltinho, em Pernambuco, a mestra
ceramista Irineia, da comunidade qui-
lombola do Muquém, e a ialorixá Mãe
Neide, da Serra da Barriga, em Alagoas,
ou os mestres de Capoeira Angola da ilha
de Itaparica Jaime de Mar Grande e Ro-
xinho, da Associação Paraguassu e do
Instituto Bantu, respectivamente.


Depois de quase colapsar, nossa bre-
cha para sonhar o futuro volta a se abrir.
Ciência, cultura e saúde estão no centro
da grande transformação pela qual o
Brasil precisa passar. A ministra da Ci-
ência, Tecnologia e Inovação, Luciana
Santos, mostrou que entende disso muito
bem ao nomear Luís Fernandes como seu
secretário-executivo, Ricardo Galvão co-
mo presidente do CNPq e Celso Pansera
como presidente da Finep.


A ministra da Cultura, Margareth Me-
nezes, também montou uma equipe po-
tente, com Márcio Tavares na secretaria-
-executiva, e pessoas como Roberta Mar-
tins, Zulu Araújo e Fabiano Piúba. Em pa-
ralelo, a ministra da Saúde, Nísia Trinda-
de, colocou seu time de alta competência,
que, além de Swedenberger Barbosa na se-
cretaria-executiva, inclui Carlos Gadelha,
Ana Estela Haddad e Weibe Tapeba – para
reverter o holocausto Yanomâmi.


Quem tramou o golpe de 8 de janei-
ro tem parte com o genocida Domingos
Jorge Velho, mas nas veias de Margareth
Menezes, Luciana Santos e Nísia Trinda-
de corre o sangue espiritual das grandes
mulheres de Palmares: Aqualtune, Aco-
tirene e Dandara. Dias melhores virão. 

CARTA CAPITAL 

February 5, 2023

Festejar é viver

 


 A festa pode ser o espaço-tempo da tradição, diversão, comunicação, fruição, mas também da criação

TEXTO Débora Nascimento


“And what costume shall the poor girl wear
To all tomorrow’s parties"
(Lou Reed)

O que espanta a miséria é festa”
(Beto sem Braço)

Em fevereiro de 2020, os brasileiros brincaram mais um Carnaval como tradicionalmente fazem: como se não houvesse amanhã e dando folga a todas as suas preocupações e a seus problemas – um desses, àquela altura, não nos era conhecido, mas se apresentaria logo em seguida. Poucos dias depois, a mesma população que havia festejado corpo a corpo a folia de Momo, foi alertada, pelas autoridades, que agora precisava fazer exatamente o oposto daqueles dias efusivos, deveria isolar-se o máximo possível, inclusive de amigos e familiares. Chegava, portanto, a nós a pandemia do novo coronavírus. E, aos poucos, descobrimos que esse afastamento atingiria em cheio não somente nosso cotidiano, mas também algo intrínseco à identidade brasileira, a sua alma festiva.

Com os meses passando a conta-gotas, a população sem vacina e a pandemia se tornando mais perigosa, foram encontradas, na área da cultura, soluções como a realização de shows, encontros e festas de forma online, as famigeradas lives, em que a única interação possível era através das telas do computador ou do celular. Depois da supressão de eventos esportivos e artísticos no mundo inteiro, não demorou muito a chegarem as notícias mais impensáveis para a cultura nacional: o cancelamento das festas juninas e da maior festa popular do país. Desde que o Carnaval começou a ser realizado no Brasil, entre os séculos XVI e XVII, nunca havia deixado de ocorrer no período que antecede a Quaresma, seja em fevereiro ou março.

As duas tentativas oficiais anteriores de, pelo menos, adiar a festa fracassaram: em 1892 e 1912. Na primeira, a justificativa era também sanitária. Por conta de diversas doenças que assolavam o país, como a febre-amarela, o evento foi transferido para junho, para evitar aglomerações e contaminações sob o propício calor do verão. Mas a população acabou festejando em dose dupla. Na segunda investida governamental, o motivo era a morte do Barão do Rio Branco, ministro do Exterior e figura relevante na política brasileira. Houve a transferência para abril. A população, no entanto, carnavalizou duas vezes. Irreverente, o folião criou até uma marchinha que comemorava a brecha de oportunidade: “O barão morreu/ Teremos dois carnavá/ Ai que bom, ai que gostoso/ Se morresse o marechá”, em referência ao marechal Hermes da Fonseca.

E nem nas duas guerras mundiais, mesmo sob pressão do governo, o brasileiro abdicou de brincar o seu carnaval. Já a festa de 1919, após a Primeira Guerra e o final da pandemia da gripe espanhola que matou 35 mil pessoas no Brasil, foi considerada como a maior comemoração de rua já vista na primeira metade do século XX no país. Em crônica de 1967, Nelson Rodrigues descreveu esse evento que marcou sua infância e demarcou uma transformação cultural: “O Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. A pandemia passou e, no Brasil, o Carnaval de 1919 representou um desafogo e a euforia geral tomou conta da população. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores”.

No final da década de 1920, o Conselho Municipal do Rio de Janeiro sugeriu a extinção da festa. A resposta do caricaturista J.Carlos na revista O Malho foi o termômetro da reação popular: “Acabar com o Carnaval? Cuidado, conselheiros. Por muito menos fizeram a Revolução Francesa”.

 Esse caráter festivo dos brasileiros
foi percebido já em 1584 por Fernão
Cardim, secretário da missão
portuguesa, em visita ao Brasil. Após
ter passado por Pernambuco, que
ainda não era a terra do frevo e do
maracatu, nem do modestamente maior
bloco de Carnaval do planeta (o Galo
da Madrugada), anotou: “São muito
dados a festas”. Ele fez a observação
após ter testemunhado uma festança
promovida por um morador de Olinda,
ao casar a filha. E ainda nem havia
Carnaval como o conhecemos hoje.
“Festas de caráter coletivo – tal como
hoje a do Carnaval, por exemplo – eram
inconcebíveis ao tempo da chegada ao
Brasil de portugueses oriundos de uma
Europa mal saída do controle teocrático
da sociedade, através do conceito da
responsabilidade pessoal ante o pecado,
que impunha aos cristãos vigilância
permanente contra os impulsos pagão-
dionisíacos herdados do mundo antigo.
Assim, o que durante mais de 200
anos se registra como aproveitamento
coletivo do lazer na colônia americana
de Portugal não seriam propriamente
festas dedicadas à fruição do impulso
individual para o lúdico, mas momentos
de sociabilidade festiva, propiciados
ora por efemérides ligadas ao poder do
Estado, ora pelo calendário religioso
estabelecido pelo poder espiritual da
Igreja”, registra José Ramos Tinhorão, em
As festas no Brasil colonial (Editora 34, 2000).

 
Três séculos depois da visita de
Fernão Cardim, outro visitante também
observaria a índole farrista do “novo”
país. Em 1803, o inglês Thomas Lindley,
para o livro Narrativa de uma viagem
ao Brasil, redigiu após passagem por
Salvador: “As principais diversões dos
moradores da cidade são as festas dos
vários santos, os votos oriundos das
freiras, os suntuosos funerais, a Semana
Santa etc., celebrada com grandes
cerimônias, concertos e frequentes
procissões. É difícil um dia em que não
ocorra um desses festejos”. Com mais
de 20 dias santos, dias dos padroeiros
de cada cidade, finais de semana, além
dos 18 feriados oficiais e civis, em que
só trabalhavam os escravos, somavam-
se mais de um terço dos 365 dias.

 
O calendário demarcado pelas festas
sagradas representava uma forma de a
Igreja ocupar um território simbólico
na História e, na prática, sedimentar o
seu poder. Para a socióloga e pedagoga
Alice Itani, em Festas e calendário (Unesp,
2003), “A história do calendário
moderno é também a história da
dominação da civilização europeia, a
partir da Idade Média, impulsionada,
sobretudo, pela Igreja Católica, que
passou a organizar os ritos festivos”.
Administrando a passagem do tempo,
controlaria a cultura a seu modo.
Inicialmente, o calendário único foi
adotado pelos países católicos, mas,
a partir do século XVIII, outros foram
aderindo, Grã-Bretanha (1752), Japão

(1873), Rússia (1923) e China (1949).
A participação da Igreja Católica na
história das festas não pode, portanto,
ser descartada. A procissão era a forma
de se ocupar as ruas coletivamente
antes de o Carnaval ganhar a feição mais
propagada. “A procissão é um cortejo
de corpos individuais, marchando
lado a lado, corpo a corpo, criando
um corpo coletivo. Corpos em desfile,
constituindo um corpo processional.
Um corpo constituído a partir de vários
corpos, que se ligam por sentimentos
e por emoções comuns. Um corpo
emocional, comunidade emocional em
termos weberianos, dir-se-ia. Uma
corporação”, descreve a historiadora e
antropóloga Léa Freitas Perez, no artigo
Festa, religião e cidade: experiência e expertise
(2019). “Em suma, estamos a lidar com
corpos que se fazem e refazem, a cada
procissão, a cada ano e na duração.
Corpos místicos (logo, sagrados), a
serviço de um mito religioso (a igreja)
e político (a cidade, a nação), que se
produzem e re-produzem coletiva
e publicamente (logo, sociais) em
reunião extraordinária e especialmente
consagrada (logo, em festa), em desfile
público, no coração da cidade.” A
descrição da professora poderia ser
aplicada parcialmente também a
desfiles de blocos carnavalescos, grupos
de maracatus e escolas de samba.
Em Festa de negro em devoção de
branco: do carnaval na procissão ao teatro
no Círio (Editora Unesp, 2012), o
pesquisador José Ramos Tinhorão
narra a participação dos negros nas
festas católicas em Portugal, uma
análise rara sobre essa presença
invisibilizada pela História. Essas
manifestações tinham inicialmente
apenas padres, depois houve abertura
para a participação da sociedade,
passando também a utilizar recursos
de teatralização. Durante séculos, a
procissão de Corpus Christi no país ibérico
foi a mais diversificada e mais animada
festa religiosa popular, celebrada
durante dias com músicas e danças.

 
Segundo tinhorão, o clima festivo
já existia nas procissões, mas, com
a inserção dos participantes negros,
houve um aumento da vibração,
resultando em uma feição assemelhada
aos desfiles carnavalescos que fariam
fama internacional na Avenida
Marquês de Sapucaí. “Para comportar
a diversidade dos temas tirados da
Bíblia e das lendas cristãs a serem
encenados sob a forma de autos,
evoluções coreográficas, cantos, música
e exibição de alegorias, a longa forma
processional do cortejo apresentava-
se internamente dividida em blocos
ou espaços abertos à apresentação
dos diferentes ofícios. Uma solução de
ordem prática que vinha antecipar por
sinal, em quase seis séculos, a criação,
nas escolas de samba brasileiras, das
chamadas alas, destinadas exatamente
a abrigar, durante as procissões
carnavalescas, os vários blocos de
foliões encarregados de ilustrar o enredo
ou tema geral do desfile”, resgata.
Inspirado nas festas populares da
Antiguidade, da cultura greco-romana,
com comidas, bebidas e danças, o
Carnaval surgiu como uma forma de
compensação profana. Em A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais, o filósofo russo
Mikhail Bakhtin defende que o Carnaval,
nascido na Europa medieval (do latim
medieval carnelevarium, “afastar-se
da carne”), foi uma forma de a Igreja
controlar essas festas irrefreáveis, que
costumavam inverter os papéis sociais
em suas fantasias (senhores que viravam
escravos e vice-versa; demônios que
se tornavam deuses e vice-versa). A
Igreja concedeu esse momento (de
liberação do comportamento e da
carne) para que as pessoas cometessem
seus excessos antes da Quaresma, que
conta os 40 dias antes da Sexta-feira da
Paixão, período em que, pelo dogma
católico, é proibido comer carne.

 
***

 
Por ser tão importante na vida cultural
do Brasil, o Carnaval, uma sagrada
tradição profana por aqui, demarca
simbolicamente o início de cada ano
para a população brasileira. “O ano só
começa depois do Carnaval” é uma
frase recorrente há décadas. Por isso,
o cancelamento da festa em 2022 e a
transferência para outra data, no caso
de algumas cidades, provocou grande
debate na sociedade, principalmente
entre os realizadores e pesquisadores
da festa. “A elite brasileira sempre teve
uma dificuldade de entender o que era
o Carnaval, sempre teve uma restrição
ao fato de o povo estar na rua. O povo
estar na rua sempre foi um incômodo
para a elite brasileira. E o Carnaval, nesse
sentido, é o incômodo anual”, apontou,
em entrevista ao programa Roda Viva,
em fevereiro de 2022, o carnavalesco
Leandro Vieira, que comandou dois
desfiles campeões da Mangueira.

 
Vieira criticou a hipocrisia do
cancelamento da festa de rua naquele
ano, porque, com a maior parte da
população vacinada, muitas festas
particulares e eventos privados de
grande porte estavam acontecendo
livremente no país. Para ele, o
significado disso é maior: “O povo
que está na rua fazendo o Carnaval é
um povo que flerta com os benefícios
da democracia, como protagonista da
diversidade, um povo que ocupa muitas
vezes territórios que são negados. O povo
saber-se dono da rua, ter a compreensão
que aquele espaço é dele é perigoso.
E contra essa ocupação terrivelmente
perigosa criaram-se inúmeros
argumentos contrários para que a festa
não fosse realizada. Não estou falando de
argumentos contrários à festa de agora.
Estou falando de argumentos históricos,
como os que associam o Carnaval, como
um todo, a uma festa demoníaca, a
uma festa do sexo, da devassidão, que
hipersexualiza o corpo, sobretudo o
feminino, argumentos econômicos”.

 
“Ao longo da história do Brasil, o
Carnaval vai ser uma disputa”, destacou
Luiz Antonio Simas, em entrevista à
Continente, publicada na edição de
agosto de 2022. “Está inserido num
contexto em que você está disputando
o próprio direito à cidade. Durante
muito tempo, houve disputa entre
modelos diferentes de carnaval. Você
tinha, por exemplo, uma elite brasileira
que emulava o carnaval de Nice, na
França, o carnaval de Veneza, os bailes
de máscara, os carnavais dos salões,
aquele negócio todo. Ao mesmo tempo,
você tem um carnaval vigoroso que
é o de rua. De larguíssima tradição,
os entrudos, os blocos, os cordões, as
associações carnavalescas, tudo o que
você possa imaginar. E aí você vai ver,
fundamentalmente, que o Carnaval
não é uma festa de consensos, mas
de disputas. Quando você está, por
exemplo, tomando a rua no Carnaval,
você está exercendo, em certo sentido,
o direito de pertencer à cidade”. Em
outras palavras, é o que Tinhorão
afirma: “A cultura constitui, em última
análise, uma cultura de classes”.

 
Luiz Antonio Simas escreve em
O corpo encantado das ruas (Civilização
Brasileira, 2019): “No início do século
XX, a República criminalizava a cultura
popular. A onda dos donos do poder
era modernizar o Rio de Janeiro em
padrões europeus, adotando Paris

 a capital francesa, como modelo de
conduta e urbanidade. Nesse clima, as
manifestações populares dos pretos e dos
pobres em geral eram reprimidas na base
do cacete. A cidade, fundada um dia para
expulsar franceses, resolveu ser francesa
para esconder que era profundamente
africana e lusitana. Nas brechas das
festas, o carioca, encurralado pela
repressão institucional, se virou e
encontrou na Penha uma maneira

de inventar a cidade negada”. Para o
historiador, também por meio das festas,
a cultura diaspórica vem reconstruindo
aquilo que lhe foi aniquilado.

 
“O Carnaval e as festas religiosas,
formas de espetáculo por excelência,
dizem respeito a uma maneira particular
de viver o fato humano em sociedade
e de perceber o mundo. No Brasil,
o Carnaval é mais que uma festa,
corresponde a um modo de ser e de

iver, a um princípio orientador que
caracteriza o mais profundo deste país.
Entre nós, tudo começa e tudo termina
pelo Carnaval, o que vale dizer que
nada começa verdadeiramente, tanto
quanto nada tem fim. Nós vivemos
sempre em trânsito, em movimento, na
abundância carnavalesca. Nesse modo
de viver, a realidade não é negada, mas
transfigurada e exacerbada por um
realismo irônico que, afirmando-a,
simultaneamente, dela ri e se distancia
de sua dureza factual”, reflete a
historiadora Léa Freitas Perez.

 
Para a professora aposentada da
UFMG, através da festa, da religião
e da cidade, podemos apreender e
compreender nossas sociedades.
Esses três elementos são tomados
como tropos (figuras de linguagem)
a partir dos quais se pode pensar os
fundamentos do vínculo social e a
constituição da imaginação coletiva
sob suas formas afetiva (festa),
cultural (religião) e associativa
(cidade), no eixo da longa duração.
Através da festa, a população
reafirma o seu direito de existir, como
descreve Luiz Antonio Simas em O corpo
encantado das ruas. A festa, no carente
Bairro de Oswaldo Cruz, zona norte
do Rio de Janeiro, funcionava como
mecanismo de união e resistência dos
moradores: “Nesse bairro sem maiores
atrativos, quase sem opções de lazer
e um verdadeiro contraponto de um
centro da cidade que se embelezava
em padrões europeus, a comunidade
de Oswaldo Cruz se integrava pela
festa e pela macumba. Construindo
sociabilidades em torno das giras de
umbanda, dos batuques dos sambas
e das rodas de dança do jongo e do
caxambu, oriundas dos negros bantos do
Vale do Paraíba, os moradores erigiram
laços de pertencimento e identidade”.

 
Para Léa Freitas, “nossas festas,
sejam laicas ou religiosas, oficiais ou
populares – em sua multiplicidade de
manifestações, recortando o país de
norte a sul, de leste a oeste –, mostram
uma maneira singular de viver o fato
coletivo, de perceber o mundo e de com
ele se relacionar. São vias reflexivas
privilegiadas para se penetrar no coração
da sociedade brasileira”. Segundo
ela, é preciso também “desubstantivar,
desfuncionalizar, isto é, desreificar a ideia
de festa, tratando-a não mais como fato

eminentemente social (coisa), dotado
de um conteúdo específico, relativo a
um determinado tipo de sociedade e
ou grupo e a um determinado tempo. E
tratar a festa como questão, isto é, como
perspectiva, como caso de estudo”.
Desta forma, a festa deixa de ser
um objeto a ser descrito para tornar-se
um operador de ligações “que atua por
meio da destruição concertada (termo do
antropólogo Jean Duvignaud) do real
socializado (termo do filósofo Dominique
Grisoni), abrindo para a experimentação
humana o campo do possível, isto é,
do imaginário: campo das percepções
e das imagens da vida coletiva, que
não se reduzem à própria vida coletiva,
pois que se referem e remetem à
instância do desejo, do imprevisível,
do indecidível, do indeterminado,
da interioridade, da embriaguez
mística, do excesso, do gozo”.

 
A festa está nas culturas, nas religiões,
nas artes, nos esportes, na economia, na
história, na política, no espírito do lema
“picanha e cerveja” do então candidato
Lula. Está na vida, demarcando a
passagem do tempo de cada um. Todos
temos festas marcantes na memória.
O ato de festejar pode estar vinculado
a uma celebração particular ou a
figuras e fatos históricos, colheitas,
santos, datas cívicas. No Brasil, a
relevância de festas como o Carnaval,
a Páscoa, as Festas Juninas, o Natal e
o Réveillon levaram o poder público
a organizá-las em eventos de grande
porte, o que pode acarretar naquilo
que Simas diferencia entre “cultura
do evento” e “evento da cultura”.

 
***
A festa pode ser o espaço-tempo
não somente da tradição, diversão,
comunicação, fruição, mas também
da criação artística. Foi assim no início
do século XX, no Rio de Janeiro. “As
festas de Ciata e das outras tias baianas
não conheciam hora para acabar,
estendendo-se por dias a fio, com a
característica fartura de comes e bebes,
ao som da ininterrupta batucada”,
descreve o jornalista e pesquisador
Lira Neto, em Uma história do samba:
as origens (Cia das Letras, 2017).
“A festa, portanto, era também
uma fresta, espaço comunitário que
subvertia a sujeição dos corpos à
lógica produtivista do mercado e à
normalização dos comportamentos
exigidos pelos novos tempos, ditos
civilizados. Festeiros e festeiras
tradicionais compareciam em massa
à casa para pedir a bênção, no mais
das vezes levando a filharada no
colo. Daí ser natural a presença
recorrente de uma meninada
irrequieta e barulhenta, criada de
pés descalços e familiarizada desde
o berço ao som dos atabaques.
Caso, por exemplo, dos pequenos
João, José e Ernesto”, escreve.

 
O trio a que Lira se refere era
formado por João da Baiana, Sinhô
e Donga, que, em 1916, já adultos,
continuavam a frequentar as festas na
casa de Tia Ciata. Nesses encontros
festivos, participaram da composição
coletiva de Pelo telefone, a primeira
música registrada como samba. Cinco
décadas depois, no apartamento de
Nara Leão aconteceriam festas que
levaram à formação do movimento da
bossa nova. E, em novembro de 1989,
uma festa realizada no Recife Antigo,
mais precisamente no Adília’s Place
(futuro Francis Drinks), se tornou o
marco zero do que seria o Manguebeat.

 
“Aquela foi a primeira vez que a
gente se juntou e trabalhou com esse
senso coletivo e também com uma
identidade estética muito forte e muito
clara, o conceito de diversidade, que
seria a grande marca do Manguebeat, de
não se prender a um gênero musical”,
pontua Hélder Aragão, o DJ Dolores,
designer, compositor e diretor. Por “a
gente”, entenda-se o próprio Hélder,
Chico Science, HD Mabuse, Renato
L, Fred Zeroquatro... A primeira festa
deu tão certo, que foram surgindo
outras. E em um ano, DJ Dolores
já não usava mais fita-cassete,
mixava com CD player e pagava suas
contas realizando esses eventos.

 
O compositor lembra que, na
época, a discotecagem dessa turma
ainda era muito simples. “Quando a
gente começou a fazer festa, ninguém
era DJ virtuoso, ninguém sabia
mixar direito. A gente tocava fita-
cassete, porque também não tinha
equipamento pra tocar direito, não
tinha um bom toca-discos, ninguém
tinha nada, era uma precariedade.
A gente se juntava e gravava várias
fitas para cada noite. Então cada 

inha uma vibe determinada, e era
assim que funcionava, porque era a
forma mais eficaz e barata para fazer
uma festa naqueles dias”, lembra.
“As festas tinham essa natureza
de provocar uma diversidade muito
grande, de tocar coisas esquisitas
que as pessoas não conheciam.
A gente não sabia que aquilo
estava deflagrando um monte de
outras coisas que iam acontecer
posteriormente. A gente estava
tocando, sem saber, em um ponto
sensível da cidade. Essas festas foram
o primeiro termômetro para medir
esse poder aglutinador que a música
teria no Recife naquele momento”,
discorre. A partir desses eventos,
muitas pessoas se conheceram e
formaram bandas. “Esse caráter de
se comunicar com a cidade, com as
pessoas, de descobrir uma ansiedade,
um desejo que estava rolando foi,
pra mim, como DJ e produtor de
festas, uma experiência sensacional”,
conta o artista, que havia chegado
de Sergipe pouco antes, em 1986.

 
DJ Dolores considera que o sucesso
dessas festas deve-se ao fato de não
terem o som comercial e típico das pistas
de dança da época. Diversificado, o
repertório não tinha um gênero musical
específico. “O que tinha era o DJ em
seu melhor sentido, de apresentar
músicas ao público, que estava disposto
a conhecer músicas novas. Eu acho que
a pista de dança, especialmente a que
a gente fazia, tinha uma coisa muito
ritualística. Você não ia para flertar,
pegar a galera, se exibir. Era realmente
uma coisa muito forte em torno da
música, de amor muito forte.” Era a
pura “diversão levada a sério”, para
citar a famosa frase de Chico Science.

 
“É engraçado que, comparado ao
que se faz hoje, é muito diferente. A
principal diferença é que não tinha
internet. Então, o DJ era supervalorizado,
porque ele tinha a música, o objeto
físico, seja um CD, um vinil, uma
fita-cassete. Se você quisesse ouvir
determinada música, tinha que ir pra
festa daquele DJ ou daquela turma.
Hoje, com streaming, Spotify, Deezer,
essas coisas, o DJ já não domina essa
exclusividade. E daí as festas ganharam
outro caráter, talvez mais comercial,
também porque há uma explosão no

Brasil de muita gente fazendo música
adequada à pista”, analisa Dolores.
Para o músico, as festas hoje no país
têm mais fortemente a presença de
uma identidade da música brasileira
contemporânea, algo que não havia na
época em que começou a discotecar.
“A gente achava que as bandas de rock
eram mais ou menos uma cópia, uma
tradução das coisas que a gente ouvia
em inglês das bandas estrangeiras.
Então, tocava-se muito pouco de
música brasileira. A gente não tinha
um material que representasse aquele
ideal estético. Talvez, por isso, Chico
tenha começado a fazer música. A
gente conversava muito sobre música
e tinha na turma um conceito muito
claro de que esse tipo de música
não existia”, observa o músico.

 
Essas festas ajudaram Dolores
a desenvolver sua sensibilidade
como compositor, como o músico
que ele se tornaria depois. Para ele,
discotecar era como uma lição, um
aprendizado, no qual ele começava a
entender como funcionava a dinâmica
entre a música e o público. “Isso
daí é uma coisa bem importante,
você vai conduzindo através da sua
mixagem, do seu setlist quando está
com a banda. Então, você claramente
consegue direcionar o público para
alguns lugares. E isso eu aprendi
tocando e frequentando as festas
dessa época, do comecinho dos anos
1990”, revela o artista. Em 1998, ele
criou a Orchestra Santa Massa, com
a qual fez turnês internacionais,
e, em 2019, homenageou aquelas
festas na música Adilia ́s Place.
Tendo produzido cerca de mil festas
nos últimos 10 anos, o produtor e DJ
Evandro Sena, administrador do Iraq
Club, na Boa Vista, centro do Recife,

 também acredita na importância
desse tipo de evento. “Eu me sinto
extremamente realizado quando
vejo as pessoas dançando na pista.
Eu não vou a uma festa pra dançar.
Vou pra fazer os outros dançarem.
Pra mim, sempre foi isso. A festa
tem dois grandes significados: de um
lado, eu posso chamar de estado de
espírito, como quando a pessoa se
apaixona e o coração fica em festa. Em
certas conquistas na vida da gente,
o nosso sentimento é de festa, não
necessariamente isso pode se efetivar
com um monte de gente reunida. E,
por outro lado, tem a festa que é o lado
da comunhão, que é o fazer coletivo.”

 
Para ele, esse “estado de espírito”
é determinante. “Às vezes a pessoa
vai para o Iraq porque já está com
um sentimento festivo dentro dela,
um sentimento de alegria e ela quer
extravasar. Aí diz assim, ‘eu vou pra
aquele lugar que eu me identifico e
onde posso trocar essa energia que
eu estou’. E aqui é onde entra aquela
frase ‘quem faz o ambiente são as
pessoas’. Também existem pessoas
que chegam ao ambiente e, por mais
que esteja todo mundo dançando,
alegre e feliz, a pessoa diz ‘ai, que
ambiente pesado’. Ou seja, essa pessoa
não está em festa, está deslocada
daquele ambiente”, observa Evandro.
Uma das festas organizadas por ele é o
Natal do Iraque, que acabou por dar nome
ao espaço situado na Rua do Sossego.
Evandro havia sido convidado pelos
antigos moradores da casa para produzir
uma festa de Natal não tradicional e
não parou mais. Já está na 17ª edição. O
evento é realizado em uma data muito
festiva no mundo inteiro, ligada ao
ambiente familiar e, por isso mesmo,
pode também despertar muita tristeza
em quem perdeu entes queridos ou não
tem vínculos familiares estabilizados.
“O Natal do Iraque tem mais ou menos
esse significado de subterfúgio pra mim
porque, antes dessa festa, como eu tinha
uma família muito complicadinha, eu
não queria saber de festas de fim de
ano. Eu não queria estar participando
daquele momento”, comenta.

 
Na sua adolescência, o Natal e o
Réveillon provocavam nele ansiedade e
tristeza. “O Natal sempre esteve muito
associado a dar e ganhar presente, e
minha família é muito pobre e tal. Tudo

isso mexia muito comigo. Para mim,
significava uma alegria que eu não
tinha o direito de tê-la. E aí, quando fui
crescendo, comecei a fugir desse tipo
de data comemorativa. Então, uma vez,
com 18, 19 anos, me chamaram pra ir
a uma festa em Olinda, muito louca.
E deu uma ressignificada no Natal pra
mim”, lembra o produtor, que, por sua
vez, como anfitrião do Natal do Iraque,
também escuta relatos de algumas
pessoas que vão à festa para fugir
dessa data em família (de sangue). “A
família que a gente escolhe, no final das
contas, acaba sendo a família da farra”,
afirma, lembrando amigos e casais que
se conheceram nas festas do Iraq.
Por conta desse valor emocional e
cultural, nas vezes em que o espaço fica
sob ameaça de encerrar suas atividades,
Evandro escuta relatos de pessoas
sobre a importância do lugar para elas,
quase como uma segunda casa. “Isso
mexe muito comigo também, porque,
ao mesmo tempo, não é importante
só para elas, é para mim também.
Construí muitos laços afetivos no lugar
e aí eu vejo a importância tanto das
festas como do espaço em si”, avalia.
***
Se o dia 24 de dezembro pode ser
considerado como uma data sensível
para muitas pessoas, o 25 certamente
é dia de festa na família Salustiano,
assim como o 6 de janeiro, Dia de
Reis. Nessas duas datas, há encontros
de cavalo-marinho promovidos pelos
filhos, netos e bisnetos do Mestre
Salustiano, falecido em 2008. “Pra
gente, é muito importante manter
esse legado vivo, porque foi criado
pelo nosso pai e também por nossas
ancestralidades de outros mestres de
cavalo-marinho. E, depois de dois
anos parado, devido à pandemia,
estava todo mundo naquela emoção
pra querer brincar neste ano”, conta o
cantor, compositor e produtor Maciel
Salu, sobre a retomada dos festejos
no final de 2022 e início deste ano.
Desde criança, Maciel via e
acompanhava o pai fazendo essas
festas, que, além de unir a família
e a comunidade, mantinham vivas
expressões da cultura popular. “Na
realidade, quando meu pai veio a
fazer o primeiro encontro de cavalo-
marinho, há 27 anos, foi na cidade de
Olinda, ali no Carmo, no coreto. Mas
ele já brincava o cavalo-marinho no
interior, na Festa de Reis, na noite de
Natal, com outros mestres também.”

 
Em 1968, Mestre Salu, saiu de
Aliança para morar em Olinda,
fundou o Boi Matuto de Olinda, o
Piaba de Ouro, a Ciranda Nordestina,
o Mamulengo Alegre de Olinda. “Ele
foi dando continuidade, trabalhando
em casa de família, vendendo picolé.
Mas já veio de Aliança pra cá com
a sua bagagem cultural, que ele
aprendeu desde criança”, diz Maciel.
O espírito festivo do Mestre Salu
vai sendo transmitido para as novas
gerações de sua família, como

 
também para amigos e vizinhos.
“É importante, pois a gente está
passando a história da nossa cultura,
do nosso Estado, do nosso Brasil,
mantendo esse legado vivo. E uma
das coisas que a gente sempre está
em busca é do respeito, de respeitar a
cultura originária, que veio da matriz
africana. E lutar por ela, não deixar a
mídia de massa, a cultura de massa,
acabarem com a nossa cultura, para
que amanhã não se torne uma lenda

cultural. Há outras pessoas também
com essa preocupação, seja no
maracatu, no cavalo-marinho, no
fandango, no reisado, no frevo, no
caboclinho, em todas manifestações
culturais. Com certeza é a família que
vai passando a tradição, vai passando
para outra geração”, defende o artista.
Espaço das festas da família
Salustiano, o centro cultural Casa
da Rabeca, em Olinda, tem agenda
cheia durante todo o ano. São
encontros de cavalo-marinho,
ensaios do maracatu Piaba de
Ouro, encontro de maracatus,
forró de rabeca, de sanfona e agora
a ciranda, lançada por Maciel no
projeto Azougue, que também
circula pelo interior do Estado. “A
gente tem que ter apoio, incentivo,
da gestão pública, para que a gente
possa manter a brincadeira viva.
Hoje, a cultura popular é inspiração
para muitas coisas no país, seja na
dança, no teatro, nas artes plásticas,
no artesanato... Muitas pessoas
se inspiram na cultura popular.

 
Mas, quando você vai para essas
prefeituras do interior, elas quase não
valorizam a cultura popular. Agora,
estão botando mais na programação
essas bandas sertanejas”, critica.
Maciel entende essa desvalorização
como fruto do preconceito: “Por ser
uma cultura de negro, de pobres.

 
Quem é que faz a cultura? Quem faz a
cultura são pessoas simples, pessoas
que trabalham no roçado, no corte de
cana, mulheres que são empregadas
domésticas, pessoas que trabalham
na construção civil, que trabalham
no pesado, vendedores ambulantes,
pescadores, pessoas da periferia,
da favela. Então, sempre existiu
essa questão do preconceito com a
nossa cultura. Para algumas gestões
públicas, valorizar a cultura é botar
aquela estrutura bem grande numa
cidade, contratar bandas grandes,
enquanto a cultura popular é tratada
de todo jeito. Não pode ser assim”.

 
***
A “cultura do evento” vem promovendo
o que o pesquisador Climério de
Oliveira chama de espetacularização
das festas populares, desvirtuando seu
sentido originário. “A partir dos anos
1970 e principalmente dos anos 1980, a
festa começa a virar espetáculo. E não só
as festas juninas. Muitas coisas começam
a ser espetacularizadas, no que se refere
às tradições culturais populares”, analisa
o músico, escritor e etnomusicologista.
“Então, essa espetacularização da
festa e os interesses sobre a festa
cresceram muito. A festa passou a
agregar muita gente e a população
brasileira aumentou, mas não é só
o aumento da população, mas sim
do tipo de população que ficou mais
massiva. E a cultura pop foi trazida
para o Brasil e adaptada. Pode-se dizer
também que as festas juninas passaram
a incorporar essa cultura pop.”

 
A espetacularização também
pode afetar o sentido comunitário
da festa, formato mais propício ao
desenvolvimento da criatividade,
da participação coletiva e que pode
estimular o despertar de novos
talentos. Na espetacularização, o
público é apenas um espectador
distante, sem participação ativa. Na
festa comunitária, todos participam,
há espaço para transformação
daquela criatividade cultivada
dentro do coletivo da comunidade
e todos desenvolvem um papel no
evento. “A cultura participativa, a
música participativa, comunitária,
tem outro papel. Os músicos são
muito mais próximos. As pessoas
definem culturalmente, baseadas na
tradição, por exemplo, o repertório.
Essa participação popular na festa
tradicional do São João, que
comunitária e participativa, essa
interação é maior entre músicos e
público. Então há uma hierarquização
menor na divisão entre público
e artista”, compara Climério.

 
No grande evento, que começou
simples a partir da força das tradições
populares, o marketing tornou-se a
atração principal. “Então, quando um
político ou gestor promove um grande
São João na sua cidade, ele e aqueles
que fazem o comércio daquela cidade
se beneficiam comercialmente. Não
tem mais o sentido da festa, como
ela era há algumas décadas atrás. O
sentido passou a ser aglomerar muita
gente nas praças e, principalmente,
transformar essa aglomeração em
vitrine para suas marcas. Sejam elas
marcas de produtos industrializados,
de serviço ou de políticos. Então,
tudo isso vem mudando o sentido
da festa e vem trazendo pra ela outra
característica”, avalia Climério,
que, em 2020, integrou o livro A falta
que a festa faz, que reúne textos de
diversos autores sobre a ausência
desses eventos durante a pandemia.

 
“A ideia de que os diferentes
grupos sociais, ao festejar, estão
construindo e/ou vivenciando suas
utopias é bastante difundida. Mas
podemos acrescentar: observadores
de tendências e procedências as mais
diversas também encontram na festa
a tela perfeita para a projeção de suas
ideias sobre a felicidade humana. De
início, aparece a condenação da ‘vida
séria’, da organização ‘repressiva’
do mundo cotidiano, uma sociedade
tediosa, mesquinha, triste etc. e tal. A
festa entra em cena como um outro
‘mundo’, onde as pessoas podem
experimentar uma alegria impossível
nas atividades ‘comuns’. É a natureza
dessas festas que nos vai mostrar
o que é realmente condenável na
vida séria”, escreveu o antropólogo
Hermano Vianna em O mundo funk
carioca (Zahar), sua tese de mestrado
transformada em livro em 1989 –
quando o gênero despontava no Brasil.

 
Hoje, o funk está dividido entre o
estrelato de artistas como Anitta e
Ludmilla e a perseguição policial,
com proibição de bailes e assassinatos
de MCs, o que Mr. Catra considerou
um genocídio cultural, na série Funk.
doc: Popular & proibido (HBO, 2022).
“De um lado, encontramos aqueles
autores que, explicitamente ou não,
pensam que os indivíduos só podem
sentir-se felizes quando deixam de ser
indivíduos e se entregam ao todo-
poderoso, mas generoso, coletivo. De
outro lado, nos deparamos com uma
minoria de individualistas convictos
que enxergam no divertimento
coletivo benefícios contrários aos
anteriores: a vida séria, com suas
incontáveis regras e hierarquias, não
deixa que as pessoas expressem su

individualidade; é na festa, com o
abrandamento, o questionamento
e até a inversão dessas regras, que
o indivíduo descobre a ocasião para
ser senhor de sua própria vontade,
‘dono de seu nariz’”, analisa Vianna.

 
***

 
Desde o mito de Dionísio, deus do
vinho, das festas, da alegria, do teatro,
às farras extravagantes de Nero, a
festa está presente na história da
humanidade e estimula a imaginação
e a arte. Romeu apaixonou-se
perdidamente por Julieta ao entrar
de penetra na festa mais importante
da literatura mundial. Foi em um
baile que Cinderela conheceu seu
príncipe encantado e, desde então,
vem levando gerações e mais gerações
a crer que uma festa pode abrir mil
possibilidades de se encontrar o
amor (ou sexo casual) numa noite.
Esse conto de fadas também fez
com que Lou Reed compusesse
All tomorrow’s parties, do primeiro
disco do Velvet Underground. A
letra pergunta qual roupa a garota
pobre vai usar para todas as festa
do amanhã, quando vai fatalmente
acabar chorando atrás da porta.
Na história do cinema, a festa é
momento de destaque em diversas
tramas e está presente em filmes
como Bonequinha de luxo, Cidade de
Deus, Tropa de elite, La dolce vita, O anjo
exterminador, Superbad, A dança dos
vampiros e A garota de rosa-shocking,
clássico da Sessão da Tarde, no qual
uma garota pobre, sem dinheiro,
remodela um vestido para usar no
baile de formatura para encarar os
alunos ricos do colégio. Em Aquarius,
de Kleber Mendonça Filho, uma
festa marca a passagem do tempo da
protagonista vivida por Sonia Braga,
ao som de Toda menina baiana, talvez
a música mais dançante da MPB,
gênero repleto de músicas festivas.

 
O longa-metragem mais marcante
com essa temática, muitos vão
concordar, é Embalos de sábado à noite,
que alimentou no mundo a mística
em torno da noite de sábado. O
contexto do filme é a efervescente
e hedonista cena disco norte-
americana, que dominava a pista
de várias boates, como o Studio 54,
em uma época de intensa libertação
sexual para mulheres, negros, latinos
e a comunidade LGBT. Além do
comportamento e da moda, o sucesso
comercial e estético da Era disco
estimulou o lançamento de diversas
bandas, artistas e compositores. A
indústria fonográfica investiu tão
pesado no filão, que surgiu uma
campanha contrária, “disco sucks”,
que poderia ser uma reação racista,
xenofóbica e/ou homofóbica de
alguns héteros brancos fãs de rock.
No final dos anos 1970 e início dos
anos 1980, parecia que não havia
nada mais importante que isso na
música, fazer as pessoas dançarem
(várias músicas da época tinham
a dança como tema principal), e
talvez quem pensasse assim estivesse
completamente certo. Muitos artistas
surfaram na onda, como Donna
Summer, Gloria Gaynor, Earth, Wind
& Fire, KC and the Sunshine Band, Chic
e Bee Gees, grupo australiano pop que,
investindo no novo gênero musical,
lançou aquela que foi, até a chegada de
O guarda-costas (1992), a trilha sonora
mais vendida da história, Saturday night
fever, com 40 milhões de cópias.

 
A onda disco invadiu o mundo
e no Brasil não foi diferente. Ao
jornalista Nelson Motta foi sugerido
o uso temporário de um espaço vago
no Shopping da Gávea para montar
uma casa noturna. Com as despesas
pagas pelos empresários, ele viajou a
Nova York para entender essa cultura.
Voltou ao Rio com 100 discos e uma
bola de espelho. E batizou o lugar de
Frenetic Dancing Days Discotheque.

 
As garçonetes eram atrizes
desempregadas, convidadas por
ele para animar o ambiente. Com
humor e simpatia, elas agradaram
tanto, que surgiu a ideia de criar
um girl group, As frenéticas, cujo
maior hit, composto por Nelsinho,
remetia ao nome da boate, sendo
a música disco mais marcante do
Brasil. Com quatro meses, a casa
teve que fechar. E o produtor vendeu
o direito do nome para a novela de
Gilberto Braga, inspirada na boate,
tendo Sônia Braga como estrela.
No final dos anos 1970, o brilho do
neon, do glitter, da meia colorida lurex,
das lantejoulas e da bola de pista
talvez fosse o prenúncio de que os dia

 ombrios no Brasil iam finalmente
começar a ficar para trás. Tudo isso
se encaixa tão perfeitamente, que
parece até roteiro de filme. Mas a
história acabou virando musical em
2018 – época em que o número de
boates para dançar declinava em
diversas capitais, devido à diminuição
do público interessado em ser o rei
da pista, um termômetro a indicar
que a febre do sábado à noite já não
era tão alta e que os jovens estariam
mais interessados em sunset parties,
baladas sertanejas, vida saudável
& crossfit, jogos, Netflix e Tik Tok .
Se o melhor da festa é a sua
expectativa, como diz o ditado
popular, para Tony Manero, o melhor
era a festa em si. Uma espécie de
versão masculina da Cinderela, ele,
quando desponta na tela, é filmado
a partir de seus sapatos. Na pista de
dança, sob as luzes estroboscópicas,
ele esquecia os seus problemas e as
suas limitações. Finalmente conseguia
ser percebido, admirado e amado.
Deixava de ser apenas mais um
empregado invisível na engrenagem
de um país capitalista que o
desprezava como descendente pobre
de imigrantes italianos do Brooklyn.

 
“As imagens mais duradouras são
as alegres, de Tony desfilando pela
calçada, vestindo-se para a noite
e dominando a pista da discoteca
em uma dança solo que o público
costuma aplaudir. Há muito no filme
que é triste e doloroso, mas depois de
alguns anos o que você lembra é John
Travolta na pista de dança naquele
clássico terno branco de discoteca e os
Bee Gees na trilha sonora”, escreveu
o crítico Roger Ebert, em 1999. Para
Luiz Antonio Simas, “não se faz festa,
afinal, porque a vida é boa. A razão
é exatamente a inversa”. A festa,
para Tony, não era o escapismo,
mas a pura representação de como
a vida deveria ser. As imagens
mais duradouras são as alegres.

CONTINENTE

 

 




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