July 7, 2019

Ozu Gilberto




HUGO SUKMAN

Agora que ele se foi lembrei de um texto sobre o disco de Tóquio que publiquei no Globo em 9 de maio de 2004, e da ideia de que João de certa forma nos descreve e conduz, o Brasil. É nosso artista moderno, que descreveu nossa transformação, a voz não só de Tom e Vinicius, Ary e Caymmi, Geraldo Pereira e Wilson Batista, Chico e Caetano, mas também de Drummond e Cabral, Glauber, Niemeyer, Di. Seu paralelo é com os artistas modernos do século XX.

Talvez tenhamos perdido hoje nosso maior artista, que nos levou para o mundo. E o que nos cantou mais ousado, moderno, ao mesmo tempo que terno, gostoso.

"Na aparência, todos os filmes do cineasta japonês Yasujiro Ozu (1900-1963) são iguais. A mesma câmera fixa, na altura do olhar de uma pessoa sentada num tatame, as mesmas pequenas comédias ou dramas do cotidiano mais banal de uma família média de Tóquio; quase sempre os mesmos atores e o mesmo tempo, um irremediável presente que caminha lento, como a vida. 

Mas, no fundo da placidez contemplativa de seus filmes, Ozu revela, como ninguém, em nenhuma outra cinematografia do mundo, o turbilhão de transformações pelo qual passou seu país nos pouco mais de 30 anos (de 1927 a 1962) em que filmou sem parar. Enquanto a mesma família discute em torno do mesmo chá, no mesmo tatame, depois do trabalho na mesma fábrica, as rugas nos rostos dos atores, o neon vermelho que lá pelas tantas passa a piscar pela janela, o quimono que cede mais lugar ao terno, os trens que se tornam mais velozes, o relógio na parede que fica mais moderno denunciam a passagem do tempo, contam a história de um país. São pequenas transformações numa forma de arte de aparência rígida. 

O mesmo se dá com João Gilberto, cantor de impossível classificação quando se busca referências no terreno da música popular – onde ele é, com perdão do clichê, único – mas que conserva semelhanças formais com outros artistas do século XX. 

A observação do Brasil e do mundo através de um repertório quase imutável, mas que nunca é cantado e tocado da mesma forma, parece o jeito de Ozu contar a História do Japão, através de uma história só (uma nota só?). A sutis transformações que, em cada show ou disco, João imprime nas canções são como a passagem no tempo no cinema transcendental de Ozu. 

A comparação do cantor brasileiro com Ozu não é casual. Afinal, surge a respeito do disco “João Gilberto in Tokyo” (Universal), o registro do primeiro concerto de João na terra de Ozu, no dia 12 de setembro de 2003, cinco mil pessoas no Tokyo International Forum Hall A, 25 minutos de aplausos de um público que, como nenhum outro, é apaixonado por música popular – quem também é, em qualquer outra parte do mundo, sabe da importância dos CDs japoneses de todos os gêneros para o prazer e a memória musical do planeta.

Em Tóquio, João parece especialmente ozuniano. Ou seja, as novidades são aparentemente mínimas, mas significativas. Em “Bolinha de papel” (Geraldo Pereira), por exemplo, resgatada de seu terceiro LP, de 1961, no lugar do verso “Vou ao banco e tiro tudo pra você gastar”, ele canta “Vou ao banco e tiro tudo pra gente gastar’. Pequena atualização sociológica do machismo dos anos 50 à relação mais solidária entre homem e mulher nos dias de hoje. Como um relógio novo, mais moderno do que o do filme anterior, na parede do filme de Ozu. 

Há novidades mais fortes, como as duas músicas inéditas em disco na sua voz, “Acontece que sou eu sou baiano” e “Louco”. Mas, mesmo assim, são de compositores de sua predileção, Dorival Caymmi e Wilson Batista respectivamente, e há muito habitam seu repertório de shows. 

Mais rigoroso impossível na admissão de uma nova canção no seu repertório, todas as outras 13 músicas de “In Tokyo” já haviam sido gravadas por ele até 1986, metade das quais até 1961, nos três primeiros LPs que balizaram o que ficaria conhecido (à revelia dele) como bossa nova. 

Mas, bem ao modo de Ozu, se as canções são as mesmas, a maneira de João cantá-las e, principalmente, tocá-las ao violão é sutilmente diferente. “Rosa morena” (Caymmi), do primeiro disco, “Chega de saudade” (1959), vem com andamento mais lento, o que evidencia mais as invenções harmônicas de seu violão, diferentes quase que em cada repetição. Ralentar o ritmo, como quem está tocando em casa, curtindo muito cada acorde, cada sutileza da canção é, aliás, a principal característica deste novo disco. Isso se dá também em “Este seu olhar” (Tom Jobim), “Meditação” (Jobim/Newton Mendonça), “Aos pés da cruz” (Marino Pinto/Zé da Zilda), “Wave” (Jobim), em sua primeira gravação voz & violão, bem distante do famoso arranjo de Claus Ogerman no disco “Amoroso” (1977). Tudo muito diferente, apesar da semelhança.

Outra sutil transformação: “Isto aqui é o que é?” (Ary Barroso) perde o “oô” depois do primeiro verso, “Isso aqui.../É um pouquinho de Brasil Iaiá”, e ganha muitas invenções harmônicas e rítmicas. “Lígia” (Jobim) vem com aquela letra que só João sabe e canta (como fez em “The best of two worlds”, disco de 1976 dividido com Miúcha e Stan Getz), muito diferente da letra consagradas nas intepretações do autor (em “Urubu”) e de Chico Buarque (em “Sinal fechado”) mais para um samba-canção pessimista (“Eu nunca te telefonei, para que se eu sabia...”) do que para uma bossa solar. 

Como quem agradece a acolhida do público japonês, e a perfeição técnica colocada à sua disposição, João Gilberto canta e toca como sempre. Ou seja, como nunca. Como Ozu.

July 5, 2019

'Ataque ultrajante' a Greenwald mostra Moro 'assustador'


No Le Monde, ‘Moro, herói caído da anticorrupção’; no Independent, ‘campanha anticorrupção é exposta como corrupta ela própria’; no HuffPost, ‘superstar anticorrupção encara seu próprio escândalo’

 Nelson de Sá

Sergio Moro segue acumulando cobertura negativa no exterior. Em título, o francês Le Monde descreveu “o agora ministro do presidente de extrema direita” como “herói caído da anticorrupção”, depois das mensagens reveladas pelo jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept.
O britânico The Independent, citando a ascensão de Jair Bolsonaro como “legado” maior da Lava Jato, publicou: “E foi Moro, uma figura partidária de direita com ilusões messiânicas, disposta a acabar com o Estado de Direito em busca de seus objetivos, que desempenhou o papel principal de colocá-lo lá”.
O site americano HuffPost, destacando que Moro agora “encara seu próprio escândalo”, fechou extensa reportagem com a avaliação de que “poderia ser um roteiro de Hollywood sobre os perigos do excesso de ambição e de vaidade”.
Ao longo da terça-feira, com o ministro evitando confirmar ou negar que a Polícia Federal —que ele controla— está investigando Greenwald, as reações em mídia social foram de choque. Por exemplo, do correspondente do britânico The Guardian na América Latina: “Assustador”.
No fim do dia, a organização Freedom of the Press Foundation soltou nota, dizendo que o cerco do ministro “não é apenas um ataque ultrajante à liberdade de imprensa, mas um grosseiro abuso de poder”.
E, em nota conjunta, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos se pronunciaram contra as “ameaças, desqualificações e intimidações” ao jornalista.

SOS AMAZÔNIA

No rastro da reportagem de capa do Washington Post de domingo, a CNN destacou que “a destruição da Amazônia se acelera para um campo e meio de futebol a cada minuto”.
E o Guardian levou à submanchete digital uma reportagem envolvendo cinco jornalistas, em São Félix do Xingu, São Paulo e Londres, que levantou “como o enorme setor de carne bovina continua a ameaçar a saúde da maior floresta tropical do mundo”.
O material se concentra na AgroSB, “poderoso império agrícola do grupo Opportunity, cofundado por Daniel Dantas”, mas sobra também para a JBS.



June 30, 2019

‘There Is a Stench’: Soiled Clothes and No Baths for Migrant Children at a Texas Center



By Caitlin Dickerson




  • A chaotic scene of sickness and filth is unfolding in an overcrowded border station in Clint, Tex., where hundreds of young people who have recently crossed the border are being held, according to lawyers who visited the facility this week. Some of the children have been there for nearly a month.
    Children as young as 7 and 8, many of them wearing clothes caked with snot and tears, are caring for infants they’ve just met, the lawyers said. Toddlers without diapers are relieving themselves in their pants. Teenage mothers are wearing clothes stained with breast milk.
    Most of the young detainees have not been able to shower or wash their clothes since they arrived at the facility, those who visited said. They have no access to toothbrushes, toothpaste or soap.

    [Hundreds of migrant children have now been transferred out of the facility.]

    “There is a stench,” said Elora Mukherjee, director of the Immigrants’ Rights Clinic at Columbia Law School, one of the lawyers who visited the facility. “The overwhelming majority of children have not bathed since they crossed the border.”
    Conditions at Customs and Border Protection facilities along the border have been an issue of increasing concern as officials warn that the recent large influx of migrant families has driven many of the facilities well past their capacities. The border station in Clint is only one of those with problems.
    In May, the inspector general for the Department of Homeland Security warned of “dangerous overcrowding” among adult migrants housed at the border processing center in El Paso, with up to 900 migrants being held at a facility designed for 125. In some cases, cells designed for 35 people were holding 155 people.
    “Border Patrol agents told us some of the detainees had been held in standing-room-only conditions for days or weeks,” the inspector general’s office said in its report, which noted that some detainees were observed standing on toilets in the cells “to make room and gain breathing space, thus limiting access to the toilets.”
    Gov. Greg Abbott of Texas on Friday announced the deployment of 1,000 new National Guard troops to the border to help respond to the continuing new arrivals, which the governor said have amounted to more than 45,000 people from 52 countries over the past three weeks.
    “The crisis at our southern border is unlike anything we’ve witnessed before and has put an enormous strain on the existing resources we have in place,” Mr. Abbott said, adding, “Congress is a group of reprobates for not addressing the crisis on our border.”
    The number of border crossings appears to have slowed in recent weeks, possibly as a result of a crackdown by the Mexican government under pressure from President Trump, but the numbers remain high compared to recent years. The overcrowding crisis has been unfolding invisibly, with journalists and lawyers offered little access to fenced-off border facilities.
    The reports of unsafe and unsanitary conditions at Clint and elsewhere came days after government lawyers in court argued that they should not have to provide soap or toothbrushes to children under the legal settlement that gave Ms. Mukherjee and her colleagues access to the facility in Clint. The result of a lawsuit that was first settled in 1997, the settlement set the standards for the detention, treatment and release of migrant minors taken into federal immigration custody.
    Ms. Mukherjee is part of a team of lawyers who has for years under the settlement been allowed to inspect government facilities where migrant children are detained. She and her colleagues traveled to Clint this week after learning that border officials had begun detaining minors who had recently crossed the border there.
    She said the conditions in Clint were the worst she had seen in any facility in her 12-year career. “So many children are sick, they have the flu, and they’re not being properly treated,” she said. The Associated Press, which first reported on conditions at the facility earlier this week, found that it was housing three infants, all with teen mothers, along with a 1-year-old, two 2-year-olds and a 3-year-old. It said there were dozens more children under the age of 12.
    Ms. Mukherjee said children were being overseen by guards for Customs and Border Protection, which declined to comment for this story. She and her colleagues observed the guards wearing full uniforms — including weapons — as well as face masks to protect themselves from the unsanitary conditions.
    Together, the group of six lawyers met with 60 children in Clint this week who ranged from 5 months to 17 years old. The infants were either children of minor parents, who were also detained, or had been separated from adult family members with whom they had crossed the border. The separated children were now alone, being cared for by other young detainees.
    “The children are locked in their cells and cages nearly all day long,” Ms. Mukherjee said. “A few of the kids said they had some opportunities to go outside and play, but they said they can’t bring
    themselves to play because they are trying to stay alive in there.”
    When the lawyers arrived, federal officials said that more than 350 children were detained at the facility. The officials did not disclose the facility’s capacity but said the population had exceeded it. By the time the lawyers left on Wednesday night, border officials told them that about 200 of the children had been transferred elsewhere but did not say where they had been sent.
    “That’s what’s keeping me up at night,” Ms. Mukherjee said.
    Some sick children were being quarantined in the facility. The lawyers were allowed to speak to the children by phone, but their requests to meet with them in person and observe the conditions they were being held in were denied.
    The children told the lawyers they were given the same meals every day — instant oats for breakfast, instant noodles for lunch, a frozen burrito for dinner, along with a few cookies and juice packets — which many said was not enough. “Nearly every child I spoke with said that they were hungry,” Ms. Mukherjee said.
    Another group of lawyers conducting inspections under the same federal court settlement said they discovered similar conditions earlier this month at six other facilities in Texas. At the Border Patrol’s Central Processing Center in McAllen, Tex. — often known as “Ursula” — the lawyers encountered a 17-year-old mother from Guatemala who couldn’t stand because of complications from an emergency C-section, and who was caring for a sick and dirty premature baby.
    “When we encountered the baby and her mom, the baby was filthy. They wouldn’t give her any water to wash her. And I took a Kleenex and I washed around her neck black dirt,” said Hope Frye, who was leading the group, adding, “Not a little stuff — dirt.”
    After government lawyers argued in the Ninth Circuit Court of Appeals in San Francisco this week that amenities such as soap and toothbrushes should not be mandated under the legal settlement originally agreed to between the government and migrant families in 1997 and amended several times since then, all three judges voiced dismay.
    Among the guidelines set under the legal settlement are that facilities for children must be “safe and sanitary.”
    The Justice Department’s lawyer, Sarah Fabian, argued that the settlement agreement did not specify the need to supply hygienic items and that, therefore, the government did not need to do so.
    “Are you arguing seriously that you do not read the agreement as requiring you to do anything other than what I just described: cold all night long, lights on all night long, sleeping on concrete and you’ve got an aluminum foil blanket?” Judge William Fletcher asked Ms. Fabian. “I find that inconceivable that the government would say that is safe and sanitary.”

    O Estado da Arte: como será o futuro da cultura no Governo Bolsonaro

    June 29, 2019

    Pasquim: Livre como um táxi





    SÉRGIO  AUGUSTO

    Numa noite qualquer de maio de 1964, fui, com minha amiga de infância e então colega de redação Ana Maria Martins, que vocês conhecem e admiram como a escritora e acadêmica Ana Maria Machado, ao lançamento da revista de humor Pif-Paf, no Clube Marimbás, desde sempre encostado no Forte Copacabana. A festa foi um sucesso e a revista também, pois, além de Millôr, que a criou e editava, reunia os maiores humoristas da praça.
    Mas a Censura do regime militar, no poder havia pouco mais de um mês, não a deixou chegar ao número nove. “Lançar a revista ao lado do forte deve ter sido visto como uma provocação”, provocou Jaguar, um de seus colaboradores.
    Outro ilustre colaborador, Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, pouco depois se envolveria com o tabloide A Carapuça, que sobreviveu à Censura mas não à morte do humorista, em setembro de 1968. Murilo Reis, que à frente da Distribuidora Carioca bancara A Carapuça, convidou Tarso de Castro para levar a experiência adiante. Tarso convocou Jaguar e Sérgio Cabral (pai), e ao grupo se incorporaram Claudius, o publicitário Carlos Prósperi e Luiz Carlos Maciel.
    Reunindo-se no bar Jangadeiros, em Ipanema, decidiram de cara que o certo seria inventar um tabloide novo, de humor, amenidades e crítica de costumes. E que, por sugestão de Jaguar, se chamaria, preventivamente, O Pasquim.
    Uma sala no número 100 da rua do Rezende, no centro do Rio, abrigou a primeira redação, acrescida de uma secretária (a inefável Dona Nelma) e um boy (Harold Zager), mais tarde diretor gráfico e factótum do jornal.
    Insisto nestes detalhes porque volta e meia apontam, em geral em obituários, que fulano foi “um dos fundadores do Pasquim”. Paulo Francis, Ivan Lessa e Henfil não fundaram O Pasquim, foram agregados à turma, como Ziraldo, que apenas cedeu um cartum da série Os Zeróis para o número de estreia, que chegou às bancas em 26 de junho de 1969.
    Foi de fato ousadíssimo lançar um semanário daqueles em plena ditadura (já vivíamos sob o tacão do AI-5 desde dezembro de 1968): um jornal de esquerda, sem patrão, em que todos os colaboradores podiam escrever o que lhes desse na telha, no estilo de sua escolha.
    Impresso na gráfica do jornal Correio da Manhã, o primeiro número não saiu com o requinte gráfico originalmente projetado por Prósperi. Como se tratava de um pasquim, ninguém chiou. Tinha 20 páginas e duas delas tiveram de ser preenchidas, em cima do laço, com cartuns de Don Martin (da revista MAD) e textos de Groucho Marx.
    No alto da capa, o mascote do jornal, o ratinho Sig (de Sigmund Freud), egresso dos Chopnics, quadrinhos que Jaguar e Ivan Lessa bolaram para o lançamento da cerveja Skol no Brasil, anunciava as principais atrações do número. Sob o logotipo, um dístico que seria seguido à risca: “Aos amigos tudo; aos inimigos, justiça.”
    Jaguar, cauteloso, havia sugerido uma tiragem inicial de 5 mil exemplares. Puseram 14 mil nas bancas, que em dois dias esgotaram, obrigando-os a rodar mais 14 mil. Em 15 semanas, chegou quase aos 80 mil. O número 20 bateu nos 100 mil. E o 22, com a histórica entrevista da atriz Leila Diniz, pulou para 117 mil, alcançando o teto de 200 mil cinco semanas depois. Detalhe fundamental: só de venda em banca.
    O primeiro entrevistado foi o colunista social Ibrahim Sued. Sugestão do Tarso, uma irônica “homenagem” ao padrinho in absentia do jornal, Stanislaw Ponte Preta, que raramente passava um dia sem gozar as asneiras de Ibrahim, em sua página na Última Hora. O improvisado esquema de pôr o entrevistado rodeado pela redação ou parte dela, enchendo a cara de uísque, não apenas deu certo, criou um novo estilo de entrevista, ademais aprimorado pela forma como foi editada. Sozinho na redação, Jaguar, que nem sequer sabia o significado da palavra “copydesk”, transcreveu a entrevista do gravador e a enviou em estado bruto, sem qualquer correção, para a gráfica. Bingo!
    O Pasquim pagou caro mas também se beneficiou da audácia de nascer do contra (sobretudo contra as babaquices da classe média) e – para citar alguns de seus dísticos – “livre como um táxi”, “equilibrado como um pingente”, incômodo como “um folião num velório”, “contra o trigo e a favor do joio”, “pequeno mas penetrante”. E, ainda que nos primeiros tempos fosse mais folgazão, gozador, festivo, e mais atento a questões de comportamento, “uma brincadeira num tempo triste”, na concisa avaliação de Francis, aos poucos deixou-se contaminar pelo inevitável: a indignação política.
    Misto de Harakiri (revista de humor francesa, precursora do Charlie Hebdô) com o semanário independente nova-iorquino The Village Voice, anárquico e “modestamente megalômano”, o Pasquim era o bloco do sujo da mídia impressa, um elixir sem remédio nem bula, lido em várias partes do mundo (todas elas no Brasil) e amado por quem valia a pena ser amado.
    Quem mais se surpreendeu com sua fenomenal penetração foram seus próprios redatores e cartunistas. A ditadura e a direita não achavam a menor graça no Pasquim (sem o artigo definido a partir de janeiro de 1970) e tentaram, de tudo quanto é jeito, destruí-lo – com censura, confiscos, prisões e até um atentado à bomba. Para eles, a fina flor da imprensa alternativa não passava de um antro de comunistas, bêbados, pervertidos e drogados, empenhados em difundir ideologias exóticas e subversivas, desencaminhar a juventude e destruir a família brasileira.
    “De tanto ver triunfar as nulidades, o Pasquim acabou dando certo.” A frase é de Millôr, um mea-culpa de seu presságio negativo no primeiro número do jornal, que afinal logrou chegar ao número 1072, o equivalente a 22 anos e cinco meses de vida. Um ano a mais que a ditadura militar, rá! rá!

    June 27, 2019

    'Pasquim' poderá ser lido na internet a partir de agosto

    Jornal 'O Pasquim', com ilustração de Ziraldo Foto: Divulgaçao

    Todas as 1.072 edições do jornal, lançado há 50 anos, foram digitalizadas pela Biblioteca Nacional 


    Olhos que condenam


    Geovani Martins Foto: OGlobo



    Nunca me esqueço do esporro que levei de um professor de Geografia. Diante da bagunça generalizada na sala, ele explodiu. Da janela, apontava em direção ao Santo Agostinho e dizia: “Vocês querem saber a real? A real é que vocês tão aqui na escola se preparando pra serem empregados dos alunos daquela escola ali. E, se vocês continuarem com esse comportamento, eu sinto dizer, mas vocês estarão cumprindo esse plano traçado por eles.”
    Esse foi um momento-chave na minha vida e, desde então, a cena vive me visitando. Nestes dias, o que me fez lembrar foi uma matéria que li no jornal “O Dia”, em que Lorenna Vieira, namorada do DJ Rennan da Penha, afirmava que o companheiro passava os dias na prisão ouvindo rádio e que não quer mais tocar em baile.
    Rennan é um desses jovens que conseguiram fugir do que era esperado pra ele. Com apenas 25 anos, o DJ se destacou como um dos principais personagens do universo do funk e, consequentemente, da música brasileira. Rennan é conhecido por popularizar o funk em 150bpm (batidas por minuto). Graças a essa inovação, novos formatos de bailes foram criados, e o funk carioca, depois um período de destaque do funk paulista, voltou a chamar atenção. O Baile da Gaiola, idealizado por Rennan, se transformou no maior baile funk do Rio, reunindo milhares de pessoas por semana.
    Agora Rennan da Penha está preso. O jovem é acusado pela Justiça de ser olheiro do tráfico. Segundo a polícia, o DJ seria responsável por avisar aos traficantes quando a polícia estivesse chegando. As provas apresentadas são mensagens em grupos de WhatsApp. Qualquer pessoa que viva numa favela sabe que avisar em grupos a chegada da polícia se tornou uma prática comum entre moradores. Só quem não tem medo de polícia nesta cidade é quem se sente protegido por ela. Realidade muito distante da vida dos moradores de favela
    Além da acusação de olheiro, pesa contra Rennan a acusação de fazer apologia às drogas e, com isso, criar uma “armadilha”, atraindo pessoas a consumirem drogas no Complexo de Alemão. Ambas as acusações são típicas de um estado racista, que, apesar da existência de uma lei que garanta o funk como movimento cultural, não consegue enxergar a coisa fora da ótica da criminalidade. Um estado que é incapaz de perceber que o baile movimenta a economia dos morros e favelas, e portanto, da cidade, do país. O baile funk movimenta dinheiro nos bares, salões de beleza, farmácias, lojas de roupas, entre outros.
    Em qualquer baile funk há venda e consumo de drogas. Assim como em qualquer boate da Zona Sul carioca. Qualquer um que vá ao Baixo Gávea quinta-feira consegue comprar cocaína, LSD, MD, haxixe e muito mais. No entanto, não há operação policial, nem o poder público pensa em fechar os comércios que sustentam aquela reunião.
    A maior apreensão de fuzis na história da cidade do Rio de Janeiro foi feita num apartamento na Barra da Tijuca. No dia em que vi essa matéria sobre Rennan, li também sobre a absolvição do dono do apartamento onde foram encontrados os 117 fuzis. Rennan, apesar das frágeis acusações e de ser réu primário, segue preso. Lembrei de novo da cena na escola. Meu professor só esqueceu de nos dizer que eles sempre têm um plano B.

    GEOVANI MARTINS


    June 24, 2019

    Bolsonaro e as flexões de pescoço

    Antonio Prata

    Qualquer homem inteligente aprende cedo que exibições de virilidade são um tiro no pé, pois fica evidente para quem assiste que a necessidade de se mostrar forte é um sinal de fraqueza. Ao longo da história, porém, ditadores e líderes políticos não se furtaram a fazer uso marqueteiro de seus supostos dotes físicos. 
    Mao Tse-tung costumava se deixar levar, boiando, pela correnteza dos rios, dando uma braçada aqui e outra acolá, sob o aplauso de multidões. No dia seguinte a imprensa publicava que o Grande Timoneiro havia quebrado recordes, nadado 10 ou mesmo 20 quilômetros. Vladimir Putin, atual presidente da Rússia, não perde a oportunidade de tirar a camisa ou de aparecer em cima de um cavalo. Figueiredo também curtia um cavalo, além de posar ao lado de seus halteres. Collor fez da corrida um evento de campanha.
    Todo dia saía de casa para seu cooper diante de dezenas de repórteres, com mensagens políticas estampadas nas camisetas. Também se tornaram clássicas as imagens do exterminador de marajás com seu quimono de karatê ou macacão de piloto, num jato da aeronáutica.
    É como se, uma vez que já não se pode mais recorrer ao direito divino dos antigos monarcas, a propaganda estatal tentasse ungir os líderes de outra forma, dando-lhes uma aura de potência infinita, uma compleição sobre-humana que justificaria a nossa submissão.
    Soa ridículo, em pleno século 21. Mais ridículo, porém, do que as antiquadas exibições políticas de virilidade, só mesmo exibições políticas de virilidade malsucedidas. E é aí que nós chegamos a este happening macabro, a este Guiness dos Recordes da vergonha alheia, a este megafônico “o rei tá nu” que é o Bolsonaro fazendo flexão de braço. Ou melhor: o Bolsonaro NÃO fazendo flexão de braço. Ou melhor, ainda: ao Bolsonaro fazendo flexão de pescoço.
    Não está claro se ele não sabe o que é uma flexão de braço ou se ele não consegue fazer uma única flexão de braço —o que não seria problema algum, visto que para governar um país não é preciso fazer flexões de baço, o enrosco é que em vez de governar o país ele resolve fazer flexões de braço; e não faz flexões de braço.
    Já é a terceira vez desde a campanha que ele paga este mico em público: coloca-se no chão com os braços esticados e enquanto PMs, policiais civis, o Doria e até mesmo o General Augusto Heleno sobem e descem, vejam só, flexionando os braços, Jair ergue e abaixa a cabeça como uma galinha a ciscar o terreiro, enquanto grita “em cima! Embaixo! Em cima! Embaixo! Em cima! Embaixo!” —os gritos reforçam a tese de que ele não sabe do que se trata o exercício: afinal, ele acha que alguém fará uma flexão pro lado?
    Pra frente? Pra trás?
    Bolsonaro se elegeu com o discurso do machão destemido que iria resolver os problemas do Brasil no muque, mas revelou-se um homem de meia idade apavorado com a posição que ocupa, acuado e incapaz de fazer uma flexão de braço. Eu diria que ele é o Tony Soprano tendo uma crise de pânico se ele algum dia houvesse se aproximado da liderança e do poder de um Tony Soprano. Bolsonaro, na verdade, lembra mais Christopher Moltisanti, o sobrinho do mafioso, um homúnculo com delírios de grandeza.

    “Sou priápico! Sou priápico! Sou priápico!”, grita o presidente, enquanto o país inteiro assiste à sua broxada.  


    June 23, 2019

    Lançado há 50 anos, Pasquim provocou ditadura e costumes

    rato do pasquim velho

    Alvaro Costa e Silva

    Marco da imprensa brasileira alternativa, o Pasquimchegava às bancas há 50 anos. Com humor, linguagem solta e provocativa nos anos mais repressores da ditadura, a publicação ditou tendências no jornalismo e tornou-se fenômeno de vendas.
    cartunista Jaguar passou os últimos tempos falando a historiadores, professores e estudantes de jornalismo, repórteres, autores de teses de mestrado e doutorado sobre como criou o Pasquim em 1969 e foi o único que nele trabalhou durante 22 anos, do berço à agonia. Mas não adianta —sempre resta alguma dúvida a esclarecer, geralmente envolvendo um nome que costuma ser citado como fundador do jornal sem nunca ter sido.
    Nessas horas, Jaguar volta ainda mais ao passado e relembra um cartum que bolou para a revista Senhor, em 1959, no qual aparece um escultor conversando com um amigo no ateliê de Congonhas do Campo (MG): "Hoje me chamam de Aleijadinho, mas a posteridade me fará justiça".
    O caricaturista Cássio Loredano pegou a publicação no auge, em 1972. Eis seu depoimento: "Qual a atitude do burro diante da catedral? Eu via o Ziraldo, o Ivan Lessa, o magnífico Fortuna e a sacristã Nelma receber as epístolas do [Paulo] Francis, de Nova York. Até a chegada, para desespero do Henfil, do sumo sacerdote. Millôr fazia o trabalho no estúdio de Ipanema e só ia à Redação para encantar todo mundo com homilias e sermões que atrasavam barbaramente o envio das escrituras à oficina".
    "E o burro —era o tempo em que burro não falava— bebendo aquilo tudo pelas orelhas e estudando Steinberg, que o Jaguar descobriu, horrorizado, que eu ignorava por completo."
    A ideia de criar O Pasquim (que, ao longo de sua trajetória, um belo dia perdeu o artigo) surgiu em setembro de 1968, quando morreu o jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, responsável por um tabloide semanal de humor chamado A Carapuça. Murilo Reis e Altair Ramos, os empresários por trás do semanário humorístico, buscaram um substituto à altura: Tarso de Castro, "enfant terrible" que assinava uma coluna de sucesso no jornal Última Hora. 
    No bar Jangadeiros, em Ipanema, Tarso se encontrou com Jaguar para decidir se aceitava o convite. Ouviu que era melhor abrir um novo jornal.
    Um jornal sem patrões, em que os colaboradores pudessem escrever o que quisessem, é uma velha utopia da profissão, que costuma morrer na ressaca do dia seguinte. Ainda mais no Brasil daquele momento, alguns meses após o AI-5, no período mais repressor da ditadura militar, marcado por prisões, desaparecimentos, exílios e tortura.
    Tarso topou, desde que tivesse carta branca. Convocou o jornalista Sérgio Cabral para se juntar a Jaguar. Carlos Prósperi, publicitário da Shell, e Claudius Ceccon, cartunista do Diário Carioca, cuidariam do projeto gráfico.
    Jaguar deu o nome —pasquim significa jornal difamador, folheto injurioso—, aceito sem muito entusiasmo, mais por falta de opções. A primeira Redação ficava em uma sala da distribuidora da imprensa, na rua do Resende, 100, no centro do Rio. 
    Além dos cinco mosqueteiros, a equipe contava com secretária, dona Nelma Quadros, e um boy, Haroldo Zager (mais tarde, diretor de arte). "Três mesas com máquinas de escrever, a prancheta do Prósperi, um estoque de uísque e estávamos prontos para ganhar a rua", lembra Jaguar.
    A expectativa era a pior possível. Parte da imprensa já estava sob censura. Nomes que no futuro seriam indissociáveis do Pasquim, como Ziraldo e Paulo Francis, tinham sido presos pela ditadura. Cinco anos antes, Millôr Fernandes fizera uma experiência de jornal independente, o Pif Paf, que só durara oito números. O Cartum JS, suplemento de humor criado por Ziraldo para o Jornal dos Sports em 1967, também acabara.
    Com tiragem de 14 mil exemplares (Jaguar queria apenas 5.000), impressos na gráfica do Correio da Manhã, o Pasquim chegou às bancas no dia 26 de junho de 1969 —celebram-se os 50 anos da publicação nesta quarta-feira. A edição esgotou-se em dois dias. Mais 14 mil exemplares foram rodados. 
    Tarso de Castro batera o martelo: a primeira entrevista seria com o colunista social Ibrahim Sued, que falou pelos cotovelos e ainda deu o furo de que o próximo presidente do país seria o general Médici. Tarso também escreveu uma espécie de editorial: "O Pasquim surge com duas vantagens: é um semanário com autocrítica, planejado e executado só por jornalistas que se consideram geniais e que, como os donos dos jornais não conhecessem tal fato em termos financeiros, resolveram ser empresários".
    O número de estreia trazia, entre outros, os colaboradores Fortuna, Luiz Carlos Maciel, Sérgio Noronha, Olga Savary, Groucho Marx (entrou para tapar um buraco, sem receber um tostão) e dois correspondentes: Chico Buarque, com o texto "Por Que Sou Tricolor", de Roma; e Odete Lara, diretamente do Festival de Cannes. Quatro páginas (do total de 20) eram de propaganda. 
    Na última página, o expediente: Tarso de Castro (editor), Sérgio Jaguaribe (editor de humor), Sérgio Cabral (editor de texto), Carlos Prósperi (editor gráfico), Claudius Ceccon e Murilo Pereira Reis (diretor-responsável). "O Ziraldo não queria participar. Mas me deu autorização para republicarmos os 'Zeróis' na edição número um", revela Jaguar.
    Millôr Fernandes entrou na brincadeira, mas, bem a seu estilo, mandou uma ducha de água fria. Em seu artigo, previu três meses de vida para o hebdomadário: "Independência, é? Vocês vão me matar de rir". No quarto número, teve de admitir que se equivocara. Mais tarde, Millôr se tornaria a figura mais importante da chamada patota.
    Com 16 semanas de existência, o jornal já vendia 80 mil exemplares e logo bateria na incrível marca de 200 mil. "Foi o maior fenômeno da imprensa editorial brasileira", afirma Sérgio Augusto, que debutou no tabloide em agosto de 1969, escrevendo um texto sobre a atriz Sharon Tate, assassinada naquele mês.
    Na flor dos seus 21 anos, Ruy Castro deu as caras na Redação da rua do Resende. "Você é a favor ou contra o regime militar?", perguntou-lhe Tarso. "Torce pelo Flamengo? Então está contratado." 
    Na edição com a famosa entrevista com a atriz Leila Diniz, que vendeu 117 mil exemplares, o nome do hoje colunista da Folha aparece nas chamadas de capa.
    "Ao contrário do que se pensa, o Pasquim não nasceu de uma fórmula pronta. Os primeiros que o fizeram vinham da Senhor, Pif Paf, Última Hora, Fairplay, Jornal do Brasil, Correio da Manhã. Quase todos passaram pela revista Diners. Já escreviam com liberdade, de maneira provocativa e engraçada. Os outros que foram chegando é que começaram a escrever do jeito do Pasquim", analisa Ruy Castro.
    A revolução do Pasquim se ancorava na linguagem moderna, solta e coloquial, que logo reverberou no jornalismo das revistas mensais e, sobretudo, nos textos de cultura dos segundos cadernos. As entrevistas pingue-pongue, com perguntas diretas e surpreendentes, também se transformaram em modelo.
    Ziraldo entrou de cabeça na feitura do jornal no início dos anos 1970. "O que me recordo é a coincidência fantástica da reunião de tantas pessoas brilhantes. Quando a Redação já estava mais ou menos montada, ainda chegaram Henfil e Ivan Lessa. Tínhamos orgulho de incomodar o poder. O Pasquim dava sentido a nossas vidas."
    Cronista a partir de 1975, Aldir Blanc relembra sua recepção: "Mal entrei pela primeira vez no jornal e o Henfil foi me puxando para um canto e, daquele jeito dele, quase gritando: 'Humor é pé na cara'".
    O Pasca, assim chamado só por aqueles que não eram íntimos, virou uma fonte geradora de cartunistas: lançou quase 200. Entre eles, Laerte: "Participei de um concurso em 1971 ou 1972 e fui publicada. Nessa época, eu nem pensava em seguir a profissão. O jornal foi um dos meus pilares motivacionais. Aprendi a fazer desenho de humor com Fortuna e Henfil". 
    Um dos fundadores do Casseta & Planeta, Reinaldo começou sua carreira em 1974, atuando como cartunista e ilustrador do jornal. "Sempre repito aquele clichê que é pura verdade: foi a minha escola", diz. 
    "Eu já pendurei as chuteiras de comediante, mas foi no Pasquim que perdi a timidez, fazendo as fotonovelas escritas pelo Ivan Lessa. Comecei como figurante, mas aos poucos cheguei a protagonista, fazendo papéis importantes, como o filósofo Voltaire. Isso me deu embasamento suficiente para depois, na televisão, interpretar personagens mais complexos, como o Devagar Franco e o ET de Varginha."
    No fim da década de 1980, era triste ver nas bancas o cadáver ainda em atividade do Pasquim, que só foi enterrado em 1991. Mas, de novo, há razões para sorrir. Até o fim do ano, a coleção completa, com 1.072 edições, estará toda digitalizada e disponível no site da Biblioteca Nacional, com dispositivo de busca completo. Entre lá e procure por Jaguar.