September 15, 2024

O VÍRUS DO TIGRINHO

 

 

 ALÉM DE FAVORECER O CRIME ORGANIZADO, A
EPIDEMIA DAS BETS REPRESENTA UMA GRAVE
AMEAÇA À SAÚDE PÚBLICA


p o r  M A U R Í C I O  T H U S W O H L

Na noite de terça-feira 10,
o motorista de aplicativo
Níger Soares, de 38 anos,
chegou um pouco mais
cedo do trabalho para
assistir a Seleção Brasi-
leira jogar contra o Para-
guai pelas Eliminatórias
da Copa do Mundo. Apaixonado por fu-
tebol desde criança, o carioca, com for-
mação em Publicidade, tinha “interesse
dobrado” no resultado da partida, pois
havia feito uma “fezinha” na vitória da
equipe canarinho, que acabou não acon-
tecendo. Há anos, ele luta contra a com-
pulsão por apostas e jogos de azar. Soa-
res não titubeia ao afirmar que a avassa-
ladora chegada das empresas de apostas
esportivas online, as chamadas bets, difi-
cultou sua luta contra o vício: “A situação
piorou. Tem muita propaganda em tudo
quanto é lugar. As pessoas estão ficando
endividadas, é muita gente”, afirma, em-
bora prefira não entrar em detalhes so-
bre sua própria situação financeira.

 
Soares é um dos 52 milhões de brasi-
leiros que, de acordo com um levanta-
mento feito pelo Instituto Locomotiva,
fizeram ou costumam fazer apostas em
sites na internet. Apesar de o governo fe-
deral ter finalizado o processo de cadas-
tramento das empresas, primeiro passo
para concretizar a regulamentação do
setor no Brasil, pessoas como ele se ve-
em especialmente vulneráveis às bets
e são presas fáceis para outra praga so-
cial, o “jogos de cassino online”, que se-
duzem com a ilusão da riqueza imedia-
ta. Entre os apostadores, o mais popu-
lar é o caça-níqueis eletrônico Fortune
Tiger, conhecido no País como “Jogo do
Tigrinho”, que vem sendo letal para pes-
soas de baixa renda. Segundo a pesquisa,
79% dos que costumam fazer apostas na
internet pertencem às classes C, D e E.

 
Estudos recentes completam o quadro
de desafio à saúde pública e à economia
nacional. Um deles, do Banco Itaú, mos-
tra que em um período de 12 meses os bra-
sileiros gastaram 68,2 bilhões de reais em
apostas online. Outro, encomendado pela
Confederação Nacional de Dirigentes Lo-
jistas (CNDL), assustada com o impacto
já percebido no mercado varejista, apon-
ta que 86% dos apostadores estão endivi-
dados e 64% deles negativados no Serasa.

 
Em um país onde 43% da população afir-
ma não ter segurança financeira, a con-

 sultoria PwC do Brasil mostra que hoje,
para as duas classes da base da pirâmide
social, as apostas já equivalem a 76% das
despesas mensais com lazer e cultura e a
5% do que é destinado à alimentação. Pes-
quisas estão sendo realizadas para men-
surar também o impacto das bets e dos ti-
grinhos no orçamento destinado à educa-
ção das famílias brasileiras.

 
Indutoras do vício e da compulsão, as
propagandas ilegais das casas de apostas
online são também a porta de entrada para
o cometimento de crimes. Neste mês, ga-
nhou destaque no Brasil a prisão pela Po-
lícia Civil de Pernambuco da advogada e
influenciadora digital Deolane Bezerra,
acusada de criar um site de apostas para
lavar dinheiro proveniente do jogo do bi-
cho e de outras atividades do crime orga-
nizado. Segundo os investigadores, ao me

os 30 milhões de reais foram movimen-
tados pela empresa Esportes da Sorte, da
qual Deolane é garota-propaganda.

 
O dono da bet é Darwin Filho, filho do
bicheiro pernambucano Darwin Henri-
que da Silva, e a sede da empresa fica em
Curaçao, paraíso fiscal caribenho a 4 mil
quilômetros de distância do Recife. Além
da possibilidade de apostas esportivas as
mais variadas, o site permite acesso ao
onipresente Jogo do Tigrinho. A polícia
investiga a entrada do dinheiro do bicho
e de outras apostas ilegais na empresa e
sua utilização em contratos publicitários
e aquisição de imóveis e carros de luxo.

 
Além de Deolane, que recebia da
Esportes da Sorte, segundo as
investigações, uma remune-
ração mensal de 1,6 milhão de
reais, a Operação Integration
apontou a participação do
cantor sertanejo Gusttavo Lima, que te-
ve 20 milhões de reais bloqueados pela
Justiça. Sua empresa, a Balada Eventos e
Produções, é suspeita de integrar um es-
quema de lavagem de dinheiro para sites
de apostas ilegais. Lima, que foi alvo de de-
núncias de shows superfaturados em cida-
des pequenas do interior do Brasil durante
o governo Bolsonaro, é garoto-propaganda
da Vai de Bet, empresa do empresário pa-
raibano José André da Rocha Neto, tam-
bém envolvido em denúncias de manipu-
lação de resultados em partidas de futebol.

 
O surgimento dos nomes famosos
nas manchetes trouxe de volta a dis-
cussão sobre a participação de artistas,
atletas ou influenciadores digitais como
chamarizes para casas de apostas online
nem sempre legais. Na semana passada,
o apresentador Felipe Neto, que já foi ga-
roto-propaganda do site Blaze ao lado de
Neymar, divulgou vídeo em que se diz ar-
rependido de ter feito propaganda para
casas de apostas. “É um erro que eu não
cometerei mais. Vocês sabiam que as
apostas online estão arruinando a vida
de milhões de brasileiros? Sete milhões
de pessoas estão endividadas por causa
das bets. No Reino Unido, 10% das pesso-
as que sofrem vício de jogo acaba tiran-
do a própria vida”, disse Neto aos seus 46
milhões de seguidores no Youtube.

 
Embora o papel de garoto-propagan-
da, por si só, não possa ser considera-
do um crime, especialistas ouvidos por
CartaCapital afirmam que influencia-
dores aliados a práticas criminosas po-
dem ser punidos: “Existem crimes prati-
cados contra a economia popular e ilíci-
tos contra o Código de Defesa do Consu-
midor que são ilegais e já podem incidir
em sanções penais, independentemen-
te da regulação das apostas. Crimes co-
mo, por exemplo, veicular propaganda
que apresenta um produto fraudado ao
qual o consumidor nunca vai ter acesso,
lavagem de dinheiro ou propaganda en-
volvendo menores”, alerta José Francis-
co Manssur, sócio da CSMV Advogados,
ex-assessor especial do ministro Fernan-
do Haddad e um dos elaboradores do pla-
no de regulação das bets apresentado pe-
lo Ministério da Fazenda.

 
Advogado especialista em bets, Raphael
Barbieri diz ser preciso diferenciar aque-
les influenciadores que promovem o jo-

go responsável e fazem propaganda pa-
ra sites em processo de licenciamento no
País daqueles que divulgam o jogo como
uma forma de as pessoas obterem altos
rendimentos e enriquecerem. “No pri-
meiro caso, os influenciadores atuam co-
mo um mecanismo legal de promoção dos
sites. No segundo, estão atuando de forma
ilegal e enganando as pessoas. As apostas
devem ser vistas como forma de entrete-
nimento, e não fonte de renda.”

 
Os crimes eventualmente come-
tidos pelas “celebridades”, en-
tretanto, são apenas a face vi-
sível de um monstro que vai
tomando forma cada vez mais
assustadora. Investigações
em curso apontam a participação das
facções criminosas Comando Vermelho
e Primeiro Comando da Capital, além de
integrantes da cúpula do jogo do bicho, na
expansão do atrativo “mercado” de bets.

 
Em abril, a Polícia Federal prendeu dois
parentes de Marcos Willians Camacho, o
Marcola, na investigação que apura o en-
volvimento do PCC com a casa de apostas
online Fourbet no Ceará. Em 2021, a PF
descobriu um esquema em que Leandro
Blumer, dono da casa de apostas Rondo
Esportes, baseada em Rondônia, lavava
dinheiro oriundo da venda de drogas pe-
lo CV em oito estados brasileiros.

 
No Rio de Janeiro, a máfia do bicho,
que mais tarde virou máfia dos caça-ní-
queis, agora pode ser chamada também
de máfia das bets. Investigação iniciada
pelo Ministério Público em 2022 apon-
ta que o capo Rogério de Andrade está
por trás da empresa Heads Bet, também
com sede em Curaçao. “Nunca mais acha-
rão que estamos fazendo algo ilegal”, che-
gou a dizer um aliado de Andrade, em con-
versa interceptada pela polícia. O envolvi-
mento do crime organizado com o merca-
do de bets, acrescenta a PF, está também
na origem da morte do advogado Rodrigo
Crespo, executado em fevereiro, em plena
luz do dia, na entrada da seção da Ordem
dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro.

Barbieri afirma que os criminosos
sempre inovam em seu modus operandi:
“Já vimos sites que exploram jogos ilegais,
outros que prometem resultados, mas não
repassam os lucros obtidos aos apostado-
res e, agora com o caso desta influencia-
dora, sites de apostas usados para lavagem
de dinheiro oriundo de atividades ilegais”.
Responsável pela investigação no caso de
Deolane, o delegado Renato Rocha diz que
o esquema em Pernambuco serviu para
ocultação, lavagem e redistribuição do di-
nheiro do crime organizado: “Três fases
clássicas desse tipo de crime”.

 
Ocadastramento feito pela
Secretaria de Prêmios e
Apostas, chefiada por Régis
Dudena e subordinada ao
Ministério da Fazenda, foi
concluído em 20 agosto com o
pedido de credenciamento de 113 empre-
sas bet, sendo 40 operadoras estrangeiras.

 
Mesmo com a entrada em vigor da nova re-
gulamentação prevista para o primeiro dia
de 2025, novidades ainda podem surgir. O
deputado federal Zeca Dirceu, do PT, en-
comendou aos consultores da liderança do
partido na Câmara um estudo para elabo-
rar um projeto de lei para restringir a publi-
cidade das bets, com proibições semelhan-
tes às que existem para anúncios de cigar-
ros e bebidas: “A propaganda do jogo online
é tão prejudicial quanto era, no passado, a
do cigarro. Está ceifando vidas, tirando di-
nheiro do arroz e do feijão, endividando fa-
mílias. Trata-se de uma epidemia. O Brasil
precisa dar um basta a esse descalabro”.

 
Dirceu diz considerar satisfatória a
regulamentação feita pelo governo e
aprovada pelo Congresso, mas ressal-
va que nenhuma regulamentação é es-
tática: “Ela pode ser reavaliada e atua-
lizada. Tem de esperar passar um certo
tempo, pois ela pode estar sujeita a cor-
reções, a alterações em pequenos deta-
lhes que melhorem a proposta original,
definida e adequada para aquele contex-
to ou aquela realidade”.

 
Uma das tarefas que se apresenta é di-
mensionar e combater a infiltração do cri-
me organizado. “No mercado não regula-
do, era impossível ter qualquer mensura-
ção da participação do crime organizado
nas empresas de apostas online. Espera-
mos que, agora, com as empresas obriga-
das a apresentar uma série de documen-
tos e atestados, seja viável separar e man-
ter no mercado brasileiro só as entidades
que não estão ligadas a nenhum dess

grupos”, diz Manssur. O advogado avalia
que o problema enfrentado agora decor-
reu da omissão do governo anterior: “En-
tre 2018 e 2022, mesmo tendo uma ordem
prevista na Lei 13.756, Bolsonaro não re-
gulou a atividade das apostas no Brasil. O
governo atual em apenas um ano supriu
essa omissão e estabeleceu uma regulação
profunda sobre todos os temas, abordan-
do questões relacionadas ao pagamento
de tributos, mas também à propaganda e
à lavagem de dinheiro. Agora está ende-
reçando, via Ministério da Saúde, a ques-
tão do enfrentamento ao vício em jogo”.
Conhecido como ludopatia, o vício nas
apostas é outra enfermidade social que
precisa ser prevista e tratada adequada-
mente no novo arcabouço regulatório.

 
Para o psicólogo clínico Cristiano Cos-
ta, uma das cabeças à frente da Empresa
Brasileira de Apoio ao Compulsivo (Ebac),
nessa doença é impossível adotar uma po-
lítica de redução de danos como nos casos
de adição às drogas. “No transtorno do jo-
go patológico, existe um vício diferente,
que se concentra no comportamento de
apostar e que não necessariamente é ge-
rador de danos”. Melhor seria, diz o espe-
cialista, uma estratégia para diversificar
os modos de obtenção de prazer associa

do ao risco, bem como de diversão e entre-
tenimento: “Também é necessária muita
educação psicoemocional e financeira, já
que é uma doença profundamente vincu-
lada ao endividamento”. Segundo estudos
da entidade, ao menos 2 milhões de brasi-
leiros sofrem de ludopatia severa.

 
Findo o cadastramento das bets, a Ebac
ficará incumbida de adequar as empresas
ao conceito de “jogo responsável” especifi-
cado na Portaria 1.231 publicada pela SPA
em julho: “A fim de contribuir para o per-
manente aperfeiçoamento regulatório re-
lativo ao jogo responsável, os agentes ope-
radores de apostas deverão avaliar a possi-
bilidade de obter certificação emitida por
organismo que ofereça procedimento de
certificação no tema”. Para tanto, a Ebac
concederá o certificado Compulsafe. “O
selo foi criado para informar ao mercado
que aquele operador de apostas promove
as ações pelo jogo responsável e possui
uma área dedicada à proteção e ao aten-
dimento especializado dos apostadores
com perfil de risco para dependência e
outros problemas associados ao jogo”,
diz Ricardo Magri, executivo da empresa.

 
Obter o selo Compulsafe exigirá uma
série de adequações por parte das casas
de apostas. “Estamos falando de publicar
de forma clara sua política própria de jo-
go responsável, informar aos apostadores
os riscos da dependência no momento do
cadastro, recusar cadastro de menores de
18 anos, disponibilizar mecanismos pa-
ra parametrização de limites, definir cri-
térios para bloqueio, exclusão e períodos
de pausa, disponibilizar canais de atendi-
mento dedicados ao acolhimento e prote-
ção do jogador. Há uma série de elemen-
tos de controle que são de responsabili-
dade do operador implementar e que se-
rão verificados independentemente para
a obtenção do selo”, diz Magri.

 
CEO da empresa galera.bet, Marcos
Sabiá afirma que a certificação ajudará
a separar o joio do trigo e a identificar as
empresas à margem da lei: “O trigo são
empresas que já se preocupam em reali-
zar um tratamento adequado dos dados
de seus jogadores, o chamado KYC (know
your client), a fim de combater crimes co

mo lavagem de dinheiro e manipulação
de resultados, sem descuidar da publici-
dade adequada; tratando o jogo como di-
versão e não como enriquecimento, in-
vestimento ou geração de renda, ao mes-
mo tempo que identifica e trata eventu-
ais casos de ludopatia”. Segundo Sabiá,
essas empresas estão preocupadas com
uma relação de longo prazo com o joga-
dor e isso inclui bom atendimento atra-
vés de seus SACs e compromissos for-
mais com órgãos como o Conar.

 
Professor da Unicamp e inte-
grante do Comitê Gestor da
Internet no Brasil, Rafael
Evangelista avalia que há vá-
rias boas propostas em debate:
“Elas são necessárias e ajuda-
riam não só na questão da publicidade re-
lativa a jogos, pois várias dessas propostas
poderiam contribuir para que houvesse
maior responsabilização das plataformas
pelos conteúdos que carregam”. Muito se
faz referência ao Marco Civil da Internet,
diz o especialista, como se ele isentasse as
plataformas de responsabilidade sobre os
conteúdos: “Mas, a partir do momento em
que as plataformas não são intermediá-
rios neutros desses conteúdos, elas pas-
sam a ser corresponsáveis. O Brasil preci-
sa avançar na legislação e na ação efetiva
contra esses anúncios maliciosos”.

 
Enquanto abundam as boas intenções,
a vida para quem está sujeito à maior vul-
nerabilidade social e sanitária frente ao fe-
nômeno da proliferação dos sites de apos-
tas online segue na incerteza. Enquanto
aguarda nova oportunidade para tentar
recuperar o dinheiro perdido com o fute-
bol sofrível da Seleção Brasileira e assim
garantir o pagamento dos boletos no fim
do mês, Níger Soares diz não acreditar nas
medidas pelo tal jogo responsável: “Acho
que não vai adiantar, porque vai depender
muito da vontade dos próprios jogadores.
E são as próprias bets que vão ajudar? Se-
ria legal se tivesse mais ajuda, talvez uma
política pública mais séria e abrangente
para tratar o problema”. Fica a dica

CARTA CAPITAL      
 

O rei da baixaria

 

 

 Pablo Marçal conseguiu parasitar o debate eleitoral,
preso a um anacrônico modelo que não esclarece mais ninguém

 
P O R  M A R I A N A  S E R A F I N I

Eu gosto de baixaria, eu gosto
do que vocês estão fazendo
aqui, vocês estão mexendo
com a pessoa errada”, adver-
tiu Pablo Marçal, candidato
a prefeito de São Paulo pelo PRTB, duran-
te o debate promovido pela TV Gazeta e
pelo canal MyNews no domingo 1º. Quan-
do algum de seus adversários fugia do
script e insistia em discutir algum tema
relevante para o futuro da cidade mais ri-
ca e populosa do País, lá estava o ex-coa-
ch para esclarecer a que veio: “Isso aqu]

não é um jogo para ver quem tem melhor
proposta. É para ver quem aguenta mais
essa encheção de saco”.

 
O teatrinho de Marçal dá resultado. O
influenciador não perde tempo discutindo
propostas, até porque não teria o que apre-
sentar. Quando arriscou propor a criação
de uma rede de teleféricos para conectar
favelas e estimular o turismo local, virou
alvo de chacota nas redes sociais. Ciente
de que não tem como vencer no debate de
ideias, usa todo o tempo disponível pa-
ra provocar os adversários com insultos,
calúnias e difamações, tudo milimetri-
camente encenado para caber em vídeos
curtos, editados para viralizar na internet.
Não precisa sequer mobilizar sua equipe
para fazer o trabalho braçal. Em vez dis-
so, promove gincanas, com ofertas de prê-
mios em dinheiro aos produtores de con-
teúdo que fazem os melhores cortes, aque-
les com maior número de visualizações no
pantanoso mundo digital.

 
Semanas antes, durante um debate
promovido por Estadão, Terra e Faap,
Marçal conseguiu desestabilizar o pso-
lista Guilherme Boulos com a leviana in-
sinuação de que ele seria usuário de dro-
gas – chamou o adversário de “aspirador
de pó” e ainda levou o dedo à narina, simu-
lando o consumo de cocaína – e ao cha-

 má-lo repetidas vezes de “vagabundo”,
enquanto erguia ao alto uma carteira de
trabalho. Agora, no estúdio da Gazeta,
conseguiu a proeza de fazer o tucano Jo-
sé Luis Datena, experiente apresentador
de tevê, abandonar seu púlpito para tirar
satisfações com o arruaceiro. “Ninguém
tem sangue de barata”, protestou Datena.
“Quem aguenta ser xingado a todo inter-
valo? Ou mesmo quando outro candida-
to está falando, o cara fazendo mímica do
seu lado para tirar a sua atenção.”

 
O festival de baixarias é recompensa-
dor. Após as molecagens de Marçal, o de-
bate previsto para a semana seguinte, na
Jovem Pan, foi cancelado por desistência
dos participantes. Algo que tende a favo-
recer o ex-coach, no momento em que ele
avança das pesquisas. De acordo com o
instituto Real Time Big Data, Marçal ago-
ra lidera a corrida pela prefeitura paulis-
tana com 21% das intenções de voto. Bou-
los, do PSOL, e prefeito Ricardo Nunes, do
MDB, figuram com 20%. Considerando a
margem de erro da sondagem, divulgada
na terça-feira 3, os três estão empatados.

 
Apesar de incorporar novos elemen-
tos, como os cortes de vídeo para virali-
zar nas redes, a estratégia de Marçal não
é nova, há tempos vem sendo ensinada
por gurus da extrema-direita, observa a
cientista política Vera Chaia, professora
da PUC de São Paulo. “Basta lembrarmos
que um dos princípios do Olavo de Carva-
lho era justamente não respeitar os ad-
versários, não admitir regras. É isso que
o Marçal está fazendo”, diz. Um antigo ví-
deo do ideólogo bolsonarista, que voltou a
circular na internet há poucos dias, expõe
com clareza a tática: “Se você faz questão
de apresentar a sua tese exclusivamente
dentro das vias normais e admitidas, você
está provando lealdade ao sistema, e não
a veracidade da sua tese”.

 
Ao inviabilizar os debates, Marçal cor-
rói a própria democracia, avalia o sociólo-

go e jornalista Laurindo Leal Filho, pro-
fessor aposentado da Escola de Comuni-
cações e Artes da USP. “Não se trata de
um programa como outro qualquer, ele
faz parte do processo de esclarecimento
da população, precisa ser regulamenta-
do de forma mais refinada.” O especialis-
ta defende uma “reformulação total” do
modelo usado no Brasil, “com regras rí-
gidas, como a Justiça Eleitoral estabelece
ao horário de propaganda gratuita”. Nos
EUA, observa, os debates são realizados
apenas por emissoras públicas, de forma
a evitar a briga de audiência.

 
Até mesmo a linguagem corporal nos
debates precisa ser objeto de algum tipo
de regulação, avalia Leal. “O comporta-
mento do Marçal ultrapassa o que se es-
pera do convívio democrático. É preciso
ter padrões. Não se pode permitir algo
anárquico, ainda mais na tevê aberta.” As
emissoras operam sob concessões públi-
cas, mas parecem estar mais preocupa-
das em atrair público com esse show de
horrores, critica o especialista. O espe-
táculo protagonizado por Marçal no do-
mingo 1º rendeu à TV Gazeta a maior au-
diência para o horário desde 2018, com
2,5 pontos aferidos pela Kantar. No dia
seguinte, em entrevista ao programa
Roda Viva, da TV Cultura, o candidato
bateu recorde de audiência no canal da
emissora no Youtube, com pico de 2 mi-
lhões de espectadores simultâneos.

 
Uma das autoras da pesquisa “Bolso-
narismo sem Bolsonaro”, publicada em
junho pela Fundação Friedrich Ebert,
a cientista política Thaís Pavez identifi-
ca Marçal como um expoente desse mo-
vimento, mas com elementos próprios.
“A novidade é que ele é um nativo digital,
um influencer, o que reforça o fato de vir de
fora do sistema político e, portanto, poder
fazer e dizer coisas de um modo diferente.”

 
Em toda a América Latina, esses influen-
ciadores estão assumindo protagonismo
no debate público e, de certa forma, par-
ticipam da formação política dos jovens,
mesmo que tenham feito fama falando de
outros temas, como moda, cultura ou em-
preendedorismo. Na Argentina, para citar
um exemplo, a cosplayer Lilia Lemoine
conquistou uma cadeira na Câmara dos
Deputados na aba do ultradireitista Javier
Milei, de quem foi conselheira de imagem.
Marçal faz parte, portanto, de um fenôme-
no mais amplo, que ganhou força sobretu-
do durante a pandemia, quando as redes
sociais eram, para muitos jovens, a única
forma de sociabilização, observa Pavez.

 
“Repare: ele trabalha com as angústias
das pessoas endividadas, com desse dis-
curso de ‘coach da prosperidade’. Da mes-
ma forma, apresenta um futuro sem em-
prego, onde todos estão ameaçados pela
tecnologia. Consegue lidar com os espec-
tros que assombram o século 21. Por isso,
tem tanto apelo.”

 
Já a coordenadora do Observatório
da Extrema Direita, Isabela Kalil, aler-
ta que, quando a normalidade é alterada
e a sociedade passa a aceitar o que até en-
tão não era aceito, não há retorno. “Antes
do Marçal, vimos o Bolsonaro agir como
bem entendia, e nada aconteceu. Não tem
como voltar ao cenário anterior, porque
a sociedade passou a ter novos parâme-
tros de normalidade, por mais absurdas
e desrespeitosas que possam parecer.”
O maior risco, acrescenta Leal, é que
ninguém sabe exatamente quais são os
planos de Marçal. “Nós sabíamos onde o
gabinete do ódio de Bolsonaro pretendia
chegar. O objetivo era alcançar o totali-
tarismo clássico, o golpe cívico-militar.”
Com suas eficazes gincanas na internet,
o coach ganha terreno, mas seu projeto de
poder segue desconhecido. “Ele está cor-
roendo a democracia sem apontar qual-
quer temor de que ela está sendo esgar-
çada. É muito mais grave, porque não sa-
bemos se tem volta.”

CARTA CAPITAL