February 28, 2024

Choque de realidade

 

 

Perto do segundo aniversário da invasão
russa, os ucranianos trocam o otimismo pelo desalento


P O R S H AU N WA L K E R

Perto da linha de frente na re-
gião de Donetsk, na Ucrâ-
nia, uma estrada esburaca-
da passa por vilarejos qua-
se desertos. Ela se transfor-
ma numa trilha lamacenta que serpen-
teia pelos campos e, finalmente, chega
a uma base militar escondida numa flo-
resta. Lá, enquanto uma chaleira fervia
sobre um fogareiro a gás, um soldado es-
gotado de 39 anos, que quis ser citado
apenas pelo apelido, Titushko, falou so-
bre os problemas de combater os russos
com uma séria escassez de munição, en-
quanto o som de tiros de posições pró-
ximas ecoava pela base.

 
Em novembro, os homens de
Titushko, parte de uma divisão de arti-
lharia da Primeira Brigada de Tanques
da Ucrânia, recebiam cerca de 300 pro-
jéteis a cada dez dias, mas agora estão
limitados a dez disparos por dia. “Na-
quela época podíamos mantê-los aler-
tas, atirar o tempo todo, mirar sempre
que víamos um alvo. Agora disparamos
exclusivamente para defesa”, lamentou.
As escassas reservas de munições na
base são parcialmente constituídas por
munições iranianas, parte de um carre-
gamento apreendido no Golfo Pérsico,
aparentemente a caminho dos rebeldes
houthis no Iêmen. Elas são “extrema-
mente problemáticas e não funcionam
bem”, afirmou outro soldado da base.

 
Em toda a linha de frente a Ucrânia
está na defensiva, com falta de munições
e de soldados. No sábado 17, o comando
militar da Ucrânia anunciou que esta-
va em processo de retirada de Avdiivka,
a leste, na região de Donetsk, primeiro
grande ganho territorial da Rússia des-
de maio do ano passado. As autoridades
ucranianas descreveram a perda como
uma consequência direta da escassez
de munições fornecidas pelo Ocidente

As notícias sombrias, às vésperas do se-
gundo aniversário da invasão em grande
escala pela Rússia, são mais um sinal de
que o terceiro ano da guerra poderá ser
o mais difícil para a Ucrânia. O clima é
muito diferente de um ano atrás, quan-
do, no meio do horror, os ucranianos per-
maneciam animados pela forte conso-
lidação da sociedade nacional e aguar-
davam com entusiasmo a rápida liberta-
ção dos territórios ocupados pela Rússia.

 
Em Kiev, a historiadora cultural
Natalia Kryvda atribuiu a notável união
no primeiro ano da guerra ao passado
da Ucrânia como nação desprovida de
infraestrutura estatal. “Como temos
uma longa história de nação sem Es-
tado, organizamos essas ligações ho-
rizontais para iniciar a defesa. Os ci-
dadãos assumiram a responsabilida-
de, não esperaram ordens.” Naqueles
primeiros meses, quase todos os seg-
mentos da sociedade se uniram, disse
Kryvda, para criar uma nova e orgu-
lhosa identidade ucraniana, após anos
de depreciação do conceito por parte
da Rússia. “Foi algo muito bonito, mas
estou preocupada que essa união tenha
começado a ruir agora”, acrescentou.

 
No sábado 17, o presidente do país,
Volodimir Zelensky, lembrou na confe-
rência de segurança de Munique o quan-
to a sociedade ucraniana alcançou nos
últimos dois anos: “Resistimos há 724
dias. Vocês teriam acreditado, há 725
dias, que isso seria possível?” Entretan-
to, com o aumento das baixas, as fileiras
do exército e os estoques de artilharia
esgotados e a ajuda financeira dos Esta-
dos Unidos estagnada – e com a perspec-
tiva potencialmente devastadora de uma
presidência de Donald Trump no hori-
zonte –, os ucranianos saúdam o segun-
do aniversário receosos sobre o que o fu-
turo lhes reserva, bem como com divi-
sões cada vez mais visíveis na sociedade

Na base na região de Donetsk,
Titushko falou sobre o mal-estar que
sentiu nas duas recentes semanas de li-
cença em casa. Em tempos de paz, ele
trabalhava como motorista de colhei-
tadeira na região de Chernihiv, no nor-
te da Ucrânia, antes de se alistar para
lutar nos primeiros dias após a invasão,
em fevereiro de 2022. Titushko passou
metade de janeiro deste ano em casa, sua
primeira folga da frente em mais de um
ano, proporcionando o alívio necessá-
rio da artilharia noturna e dos ataques
aéreos, do frio do inverno e dos ratos gi-
gantes que tornam difícil suportar a vi-
da nas trincheiras.

 
Em vez de considerar a experiência
revigorante, Titushko achou, no entanto

é duro de engolir a visão de civis a des-
frutar uma vida aparentemente normal
nos cafés e restaurantes, e as perguntas
irritantes que faziam quando viam seu
uniforme. “Eles perguntam coisas estú-
pidas. ‘Como é lá? Quantos russos vo-
cê matou? Quantos dos nossos morre-
ram?’”, relembra. O soldado olhou pa-
ra a vida em seu país e se perguntou por
que os homens que via nas ruas não es-
tavam na frente, com ele. “Realmente,
não entendo isso. Há trabalho suficien-
te aqui, mesmo que você não queira dis-
parar uma arma. Você pode cavar uma
trincheira, preparar refeições. Todos
ajudaram no início, todos se preocupa-
ram, mas agora é um momento diferen-
te. Você olha para esses e tem vontade de
dizer: ‘O que vocês farão se os russos vol-
tarem e vierem para suas cidades? Você
acha que eles vão distribuir pirulitos?’”

 
Nesta fase da guerra, encontrar ucra-
nianos dispostos a lutar está cada vez
mais difícil. Uma coisa era alistar-se
quando parecia que o exército ucrania-
no poderia avançar e retomar todo o ter-
ritório perdido de forma rápida e triun-
fante. Hoje, o cálculo parece diferente.
Kiev tem mobilizado homens para o
esforço de guerra constantemente no
último ano, e há planos para adicionar
mais centenas de milhares no próximo.

 
Alguns estão dispostos a ir, caso sejam
chamados, mas um número maior fica
escondido em casa, com medo de rece-
ber uma intimação na rua, ou tenta fu-
gir do país. “A mobilização é impopular
na sociedade. O instinto de autopreser-
vação, a compreensão de que a guerra
vai se arrastar, ninguém quer arriscar
a vida dos seus entes próximos”, afirma
o analista político Volodimir Fesenko,
em Kiev. “Por outro lado, não há dúvida
de que precisamos de mobilização, por-
tanto é uma situação difícil.” Fesenko
disse esperar que as autoridades resol-
vam o problema mês a mês, em vez de

vistas ao mesmo tempo. “Os recursos
para convocar 500 mil de uma só vez
simplesmente não existem, e isso tam-
bém afetaria duramente a economia,
pois existe um problema com as reser-
vas de mão de obra”, explica.

 
Há ainda a questão de quão bem os
soldados recém-mobilizados podem
lutar. Uma fonte do exército disse es-
tarem em curso planos para aumentar
o período de treinamento de um para
dois meses, mas ainda não é tempo su-
ficiente para preparar-se para a guerra
de trincheiras. “É mais uma questão de
problemas psicológicos do que de habi-
lidades”, analisa Valentyn, vice-coman-
dante da divisão de artilharia. “Os civis
não têm experiência de estar na frente
de batalha, de ficar longe de casa e dos
entes queridos por tanto tempo.”

 
Milhões de ucranianos que não estão
em combate ajudam no esforço de guer-
ra com trabalho voluntário ou doações,
mas a divisão entre quem teve experiên-
cias muito diferentes ao longo dos últi-
mos dois anos torna-se mais clara. Anas-
tasiia Shuba, advogada que faz parte do
conselho anticorrupção do Ministério
da Defesa – e que frequentemente viaja
para a frente como voluntária para levar
mantimentos às tropas e visitar seu ma-
rido, um oficial comandante no leste –,
disse que cortou o contato com amigos
que pareciam indiferentes ao esforço de
guerra. Após visitas à linha de frente, ela
considera chocante o contraste em Kiev,
onde, apesar dos recorrentes ataques
de mísseis russos, lojas e restaurantes
continuam abertos e as ruas estão mo-
vimentadas. “Meu marido me diz: ‘Esta-
mos aqui exatamente para que todos pos-
sam viver normalmente’. Ele me diz pa-
ra ir às compras, para tirar férias na praia
com o nosso filho”, conta. “Mas é difícil.

 
É claro que nem todos podem lutar ou ser
voluntários, e precisamos de uma econo-
mia funcional. Mas com o país numa situ-
ação tão difícil só um parasita continua-
ria a viver sem pensar em como ajudar.”
Shuba acrescentou, no entanto, que
se recusa a aceitar o pessimismo pre-
valecente sobre os rumos da guerra.

 
“Se você acreditasse em tudo que lê no
TikTok e no Instagram, a única opção
seria se cobrir com um cobertor e raste-
jar até o cemitério. Ser pessimista con-
some muita energia, e eu posso usar es-
sa energia em coisas úteis. Se eu real-
mente começar a acreditar que vamos
perder, vou desmoronar e não conse-
guirei me levantar novamente.”

 
Existem, certamente, alguns pon-
tos positivos no meio da escuridão – o
recente domínio militar da Ucrânia no
Mar Negro, apesar de não ter uma ma-
rinha, e suas audaciosas operações es-
peciais atrás das linhas russas, bem co-
mo o grande aumento da produção do-
méstica de drones, que têm desempe-
nhado um papel fundamental na lu-
ta. Mas o cenário internacional torna
difícil confiar nas perspectivas a lon-
go prazo de libertação do território. A
União Europeia superou finalmente a
oposição de Viktor Orbán, da Hungria,
e ratificou um pacote de financiamen-
to de 50 bilhões de euros, mas um enor-
me pacote dos Estados Unidos continua
paralisado. Mesmo se aprovado, é pro-
vável que Trump mude o tom do deba-
te apenas por se tornar o candidato re-
publicano, quanto mais o presidente.
No terceiro ano da guerra, a cena
política interna também poderá so-
frer uma fratura. A união do primeiro
ano tem se dissolvido progressivamen-
te nos últimos meses, com os oposito-
res políticos de Zelensky tornando-se
cada vez mais veementes e a sensação

de que a política está de volta. O cansaço
tão visível na sociedade é palpável nos
corredores do poder. “Todo mundo es-
tá exausto, física e emocionalmente. O
pavio de todos está muito curto”, des-
creve um diplomata baseado em Kiev,
sobre conversas com líderes políticos.

 
Normalmente, uma eleição presiden-
cial seria marcada para esta primavera,
entre fim de março e junho, embora ha-
ja um amplo consenso de que sua reali-
zação neste momento é impossível. Mas
existe a preocupação de que Zelensky não
tenha encontrado uma nova forma de go-
vernar após o período inicial de consoli-
dação, a fim de trazer mais gente para o
seu lado. “Existem apenas duas pessoas
que tomam decisões neste país”, disse ou-
tro diplomata, referindo-se a Zelensky e
a seu chefe de gabinete, Andriy Yermak.

 
A demissão do chefe do exército
Valerii Zaluzhnyi, no início deste mês,
foi amplamente vista como parcial-
mente motivada pelos altos índices de
popularidade do militar. A mudança
ocorreu sem protestos significativos
por enquanto, com a maioria dos ucra-
nianos compreendendo que a turbulên-
cia interna só favoreceria a Rússia, mas
muitos veem Zaluzhnyi como um po-
tencial futuro desafiante de Zelensky.

 
À medida que se aproxima o aniver-
sário, em 24 de fevereiro, a equipe de
Zelensky fará questão de lembrar aos
líderes ocidentais os primeiros dias da
guerra, quando as tropas russas atacaram
Kiev e muitos no Ocidente assumiram
que os dias da Ucrânia como Estado in-
dependente estavam contados. Apesar da
lenta resposta ocidental, a Ucrânia man-
teve-se firme, e poucos acreditam agora
que a Rússia tenha capacidade para lan-
çar um novo ataque à capital ucraniana.

Numa recente manhã ventosa, não
muito longe da fronteira da Ucrânia
com a Bielorrússia, escavadoras retira-
vam terra lamacenta do solo e um gru-
po de homens trabalhava com pás pa-
ra ampliar uma rede de robustas trin-
cheiras e fortificações de concreto co-
mo parte de uma formidável nova li-
nha de defesa. Há dois anos, colunas
de blindados russos percorreram es-
sa área e encontraram pouca resistên-
cia, enquanto rumavam para Kiev. “Ha-
via alguns caras com Javelins, mísseis
antitanque, na fronteira, mas, fora is-
so, eles simplesmente passaram dire-
to”, disse Oleksandr, soldado ucrania-
no que trabalha nas fortificações. “Is-
so não vai acontecer de novo.”

 
A derrota total da Ucrânia parece ago-
ra um sonho impossível para Vladimir
Putin, mas a vitória total ucraniana, in-
cluindo a recuperação da Crimeia, que
a Rússia anexou em 2014, é igualmen-
te mais difícil de imaginar a curto pra-
zo. As negociações com a Rússia têm si-
do um tema tabu, principalmente por-
que ninguém acredita que Moscou man-
teria qualquer acordo e simplesmente o
usaria como pausa para respirar antes
de pressionar novamente. Lutar indefi-
nidamente também é pouco sustentável.
“Se conseguirmos sobreviver no próxi-
mo ano, provavelmente seremos força-
dos a negociar algum tipo de cessar-fo-
go”, disse Fesenko.

 
Para muitos em combate, concordar
com uma paz frágil e imperfeita seria
uma concessão impensável depois dos
esforços e perdas dos últimos dois anos.
Na linha de frente, Titushko disse que a
ideia de voltar para casa, para uma vida
pacífica, apenas para ser convocado no-
vamente quando a Rússia recomeçasse
as hostilidades, seria demais para supor-
tar. “Em 2014, pensamos que tudo esta-
va acabado e eles voltaram. Agora temos
de acabar com eles de vez”, acredita.


 

CARTA CAPITAL      

 

 

 

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