ZÉLIA DUNCAN
Nasci em 64. Demorei um certo tempo, o tempo de ficar maiorzinha, pra entender por que, quando eu dizia o ano do meu nascimento, assim como quando digo que sou do signo de escorpião, algum adulto levantava as sobrancelhas e apertava a boca. Consigo ter lembranças nítidas da Copa de 70. Poucas, mas fortes. Morávamos numa vila em Niterói, os vizinhos se juntaram. Não me lembro dos gols, lembro-me das imensas bandeiras, de um verde que parecia muito escuro.
Lembro que às vezes um torcedor distraído e eufórico passava pela criança pequena que eu era e deixava aquela bandeira deslizar sua extensão no meu rosto. Era macia a bandeira, embora me assustasse um pouco aquele contato repentino, fogos estourando de perto, o grito seguido de abraços desajeitados daqueles adultos. Foi a primeira felicidade coletiva que conheci, até o comício das Diretas Já, muitas cores depois. Ninguém ali parecia descontextualizado, todos queriam muito a mesma coisa, todos obtiveram a tal coisa, a taça! A taça do mundo era nossa. Com o brasileiro não há quem possa, cantavam pelas ruas e TVs. O mundo parecia tão bom e tão nosso. Da alegria, das famílias, do bem, dos vizinhos que se amavam incondicionalmente, num tempo em que todos se juravam igualmente campeões. E a seleção brasileira no colo, no centro do coração do povo.
A palavra ditadura nunca foi confortável de se dizer e ouvir, segundo minha percepção já de adolescente. Da mesma leva que embalava o tricampeonato foi tirado o nome do filme “Pra frente, Brasil”, que relata uma história que acontecia no mesmo ano de 1970 (quando eu era aquela criança feliz e harmonizada). O roteiro traz um pacato trabalhador, que é confundido com um ativista político. A confusão lhe custou a vida e muito, muito sofrimento antes disso. O filme de Roberto Farias é de 1982. Foi a primeira vez que revisitei aquela sensação da bandeira macia no rosto. Naquele dia me ardeu na lembrança, me senti uma traidora-mirim da pátria. No filme, o personagem perde a vida, enquanto os gritos de gol superam seus gritos de socorro, bem como seu último suspiro.
Graças à música brasileira, pra onde me mudei, e aos álbuns de Chico, Caetano e Gil, principalmente, fui caindo em mim, e nesse tombo necessário, enxergando com mais realidade os fatos. Na verdade, são nossas histórias pessoais, somadas ao que estava ou não em nossas mamadeiras, que viram os ingredientes do nosso olhar e da nossa forma de perceber o mundo que queremos e podemos ver. É que algumas coisas, as que cerceiam a liberdade, reprimem, perseguem, torturam e tiram a vida de tantas pessoas, sempre achei que seriam unanimemente execradas, por suas consequências óbvias e maléficas, que já sentimos na pele. E que seríamos sempre bons vizinhos, porque nessas coisas que me pareciam e parecem fundamentais, estaríamos juntos, na mesma luta. Mas nada é bem assim.
“Quem é esta mulher, que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar…” Sempre sofri com essa canção, mesmo antes de entender que não se tratava de um menino que se afogou literalmente, mas que essa mulher era Zuzu Angel, cujo filho, assassinado pelos militares e desaparecido pra sempre, transformou sua vida em luto irremediável e numa batalha insana por respostas, que só terminou com sua própria morte, num “acidente” previsto por ela mesma e jamais admitido ou desvendado com a honestidade merecida.
Anda praticamente impossível afinar discursos, travar bons diálogos, ou aprender com as opiniões que divergem. Divergir, hoje, significa declarar guerra, abrir represas de ódio e relações de cimento. O mais impressionante é termos princípios tão diferentes e distantes quando o assunto é tortura e crime. Tudo bem que existam opiniões que nunca vão se encontrar, mas não estarmos juntos, de mãos dadas pra cuspir na desumanidade de quem evoca orgulhosamente o nome de um torturador criminoso, sádico, numa votação dentro de um Congresso Nacional é inacreditável. Já tínhamos engolido nomes de netos, filhos precocemente engravatados, babando por aparecer. Selfies inoportunas, rompantes desproporcionais, desrespeitos de toda ordem. O rei dos réus presidindo a sessão já deveria ser ilegal, e, eu pergunto: exaltar assassinos confessos na hora de um voto tão importante para todos não seria também algo que precisa de uma consequência? Esse mesmo sujeito, Jair Voldemort Bolsonaro, exalta também Eduardo Cunha, o cínico dos cínicos, esfrega na nossa cara esse poder sombrio que os une, o poder de tirar o pudor do armário. O pudor de ser uma criatura da lama virou orgulho de repente. Andamos tão enviesados moralmente que, no Brasil, até o diabo pede misericórdia e todos dizem amém
O Globo, 22 de abril de 2016