February 25, 2016

Gás lacrimogêneo no cerrado

vladimir safatle

 Anos atrás, o discurso neoliberal padrão no Brasil afirmava que o Estado deveria deixar de intervir em áreas que não lhe diriam respeito para cuidar apenas daquilo que seria sua vocação natural, a saber, serviços como educação e saúde. Nessa toada, foram privatizados os serviços de transporte, de energia, de telefonia, entre tantos outros.

Os anos passaram e, claro, o discurso também passou. Agora, trata-se de afirmar que quanto mais pudermos tirar a educação e a saúde das mãos do Estado, melhor.

Gerir educação pública significa ter de debater a todo momento diretrizes com professores, ser cobrado pelas decisões equivocadas, ter de financiar um sistema universal e gratuito. Mas simplesmente privatizar escolas era uma operação de alto custo político.

Como explicar que, a despeito dos modelos de privatização branca, os melhores sistemas do mundo são radicalmente públicos?

Alguém poderia descobrir que países como a Finlândia, que aparece normalmente como o primeiro nos processos de avaliação de resultados, tem um sistema totalmente público, subsidiado pelo Estado, radicalmente inclusivo, igualitário, com altos salários para professores e com escolas próximas de seus alunos.

Ele não é muito diferente do que podemos encontrar em países de sólida formação educacional, como a França e a Alemanha.

Inventou-se, assim, as chamadas Organizações Sociais. A princípio, elas foram vendidas como estruturas capazes de dar mais agilidade à gestão, escapando dos entraves criados para entidades públicas. Começaram na área da saúde e agora estão sendo "testadas" na área da educação, a começar pelo Estado de Goiás.

O roteiro nós já conhecemos. O Estado irá terceirizar escolas que já têm boa infraestrutura e qualidade razoável de ensino. Algumas organizações investirão nessas escolas a fim de dar a impressão, à opinião pública, de que o modelo é um sucesso.

Quando a sociedade civil se der conta, ela terá um serviço generalizado com professores precarizados, que podem ser facilmente substituídos e submetidos a planos decididos por burocratas. Os mesmos burocratas que há décadas mudam os rumos da educação brasileira com seus projetos que nunca alcançam bons resultados educacionais. Suas escolas terão taxas de toda natureza e serão dirigidas por entidades que perseguem metas vazias e avaliações que nada dizem respeito a um verdadeiro projeto pedagógico.

Como se não bastasse, o plano goiano prevê ainda que a gestão de 24 escolas seja entregue à Polícia Militar, que será responsável por gestão, segurança e disciplina.

Vejam que interessante: uma instituição cuja extinção já foi recomendada pela ONU por sua ineficiência e violência, que forma policiais objetos da desconfiança de 64% da população brasileira por suas ações eivadas de preconceitos e banditismo, em suma, a Polícia Militar que some Amarildos será responsável pela gestão da escola do seu filho. Difícil conceber ideia mais absurda.

Em qualquer lugar minimamente sensato do mundo, mudanças dessa natureza seriam objeto de longas discussões com alunos, professores e pais. No Brasil, e em especial nos Estados governados pelo tucanato (Paraná, São Paulo, Goiás), decisões educacionais são impostas, inventa-se diálogos que nunca ocorreram, joga-se gás lacrimogêneo contra estudantes, prende-se professores que protestam.
Este é um país no qual a elite, que deveria ser taxada de maneira pesada para capitalizar o Estado e permiti-lo oferecer a seus cidadãos ensino público de qualidade, governa servindo-se de uma classe política corrompida (Goiás que o diga) e procurando de todas as maneiras livrar-se de obrigações de solidariedade social.

Já vimos em São Paulo como políticas dessa natureza escondem um fato bruto simples: o Estado tem gastado menos com educação. Talvez porque tenha outras prioridades mais importantes, como a sobrevivência financeira do partido no poder.

Quando comecei a dar aulas, há quase 30 anos, meu primeiro emprego foi como professor substituto na Escola José Carlos de Almeida, em Goiânia. Era uma dessas antigas grandes escolas construídas em um espaço nobre da cidade, ao lado de uma escola privada.

Ela tinha tudo para se impor como escola modelo. No ano passado, depois de ficar um ano fechada e esquecida, a instituição foi ocupada por alunos que se cansaram de nunca serem ouvidos sobre seu próprio destino.

Talvez essa escola expresse de maneira quase pedagógica o destino e descaso da educação nacional. Não por acaso, essa história começou a mudar quando a população começou a dizer "não".

FOLHA DE SÃO PAULO, 19 DE FEVEREIRO DE 2016 

February 16, 2016

Janio de Freitas: Carnaval da guerra


Parecia Carnaval, um tanto estilizado pelas multidões mais afeitas a espectadoras imóveis dos shows de rock do que à ginga do samba e à graça das marchinhas. Parecia, mas era guerra. Mais uma, não bastando Eduardo Cunha versus governo, Lava Jato versus corrupção na Petrobras, PSDB contra PT, imprensa contra Lula, e as muitas menos prestigiadas pelos bombardeios.

Duas combatentes, entrevistadas como diretoras de um bloco, diziam coisas sem nexo: trabalham o ano inteiro na organização do bloco, apesar dos seus diplomas universitários só se ocupam do bloco, organizá-lo exige muitas reuniões de trabalho. Mas o bloco nada tem de especial, nem fantasias próprias, nem alegorias, nada. Só gente, gente, gente. E cerveja, cerveja, cerveja. Mas tem novidades, sim. Inovações de verdade.

Uma nova profissão: fundador e diretor de bloco, antes ocupação amadora, tornou-se profissão. Emprego sem risco de demissão. O velho “general da banda” só deu samba, mas ser general ou generala de bloco dá dinheiro. É que os fabricantes de cerveja trouxeram para as ruas a guerra até então disputada só na TV e nos bares.

O grande aumento do número de blocos no Rio e em São Paulo neste ano, apoiado no grande aumento do incentivo “jornalístico” para o comparecimento das massas, foi fabricado e financeiramente bancado por indústrias de cerveja. Um programa desenvolvido ao longo do ano. Cada multidão com nome de bloco veio a ser, na verdade e sem saber, como uma reunião inumerável de pontos de venda: a multidão de consumidores acompanhados pela multidão de carrocinhas, carrinhos, triciclos vendendo latas de cerveja. E aí a chave do negócio: em cada bloco, cerveja de um só fabricante. Exclusivo, aliás, de numerosos blocos, áreas de concentração e de dispersão.

Para as cervejeiras envolvidas, uma operação em tudo bem sucedida. Para a guerra entre o marketing, promotor de vendas, e os consumidores, desinformados e compelidos, uma evidência a mais de que a liberdade de escolha e a educação para o gosto consciente estão irrefreavelmente derrotadas. E, no entanto, eram valores da cidadania.

JÃNIO DE FREITAS
Folha de São Paulo, 9 de fevereiro de 2016 
 

February 14, 2016

Carnaval de rua? Onde?


Álvaro Miranda
 
Diferentemente do clichê repetido a cada ano, o carnaval de rua morreu. O fenômeno atual, de grandes multidões pelas ruas, cheiro de urina, furtos de celulares, tensões, empurra-empurra, brigas de playboys, trânsito bloqueado, falta de policiamento e outros transtornos, parece atender mais a convocações publicitárias de grandes fabricantes de cerveja do que ao desejo de brincar, cantar e dançar numa das festas brasileiras mais emblemáticas.

Como apaixonado pelo carnaval, morador da Tijuca, não posso deixar de compartilhar o desabafo sincero e pertinente da jornalista Cora Ronai, moradora de Ipanema. Óbvio que esses e os demais bairros pertencem aos seus moradores e a toda população da cidade.

Lamentavelmente, o que não nos pertence mais, uma vez roubado sabe-se lá por que interesses nada a ver com as alegrias do Momo, é o espírito do verdadeiro carnaval de rua.

Chega a ser curioso, por exemplo, turmas de jovens gritando no interior do metrô frases desconexas, sem cantar uma música de carnaval, nova ou antiga. E, claro, invariavelmente, com um litro de vodca na mão. Estarrecedor e amedrontador a presença de grupos de jovens musculosos ávidos por encontrar pretextos para uma briga.

Patético o casal beijando-se, encostado na grade de um edifício da Vieira Souto, em Ipanema, durante a passagem do Simpatia é Quase Amor, enquanto o celular do rapaz era furtado por outro jovem, que fugia dançando com a maior cara de pau.

Sem falar da situação insólita de um policial que teve sua arma furtada durante o desfile de um bloco. Não bastassem essas e outras bizarrices, o maior absurdo tem sido a crença de que fatos assim já se tornaram normais como parte da folia. Como se fossem consequências naturais de um suposto aumento do contingente de foliões.

Assim, essas multidões nas ruas atestariam por si só o tal renascimento do carnaval de rua. Isso, como se uma pretensa “evolução” dessa festa consistisse na simples movimentação sem sentido, sem música e sem dança dessas turbas gigantescas de jovens bêbados, drogados ou ainda brigões.

Chega a ser irônico, por exemplo, alguns pequenos blocos desconhecidos tentarem realizar suas festas meio que escondidos, sem muita divulgação de horário e até de locais. Com razão, porém também sem muito êxito. Penso que é hora de mais “Bum bum paticumbum prugurundum” para a nossa folia de rua.

De um pouco mais de carnaval e menos tumulto. Carnaval não é sinônimo de multidão anódina ou de bagunça. Que o digam os desfiles da Marquês de Sapucaí. Lá o couro come, e ninguém vai se meter a fazer bagunça. A exemplo do enredo do Império Serrano de 1982, fica aqui uma sugestão para os dirigentes de blocos e ligas de blocos. A carioquice cordial e alegre agradece e o Brasil também.

O GLOBO, 13 DE FEVEREIRO DE 2016 

February 9, 2016

O Carnaval e o menino


carlos heitor cony

"No grande teatro da vida vão levar mais uma vez a revista colossal: Pierrô, Arlequim e Colombina vão a preços populares repetir o Carnaval." Na voz de Mário Reis, que serviu de modelo para o sucesso de João Gilberto, a marchinha estava em todos os lugares e ruas de Paquetá, onde passei parte da minha infância. 
 
Não entendia nada dos personagens da Commedia dell'arte, muito menos dos jornais da época que xingavam o Carnaval de "tríduo momesco". Eu não sabia quem eram Pierrô, Arlequim e Colombina, muito menos o que era tríduo momesco. O pai não achava os preços tão populares assim, mas não me faltavam o lança-perfume, o saquinho de confetes e a abominável máscara de morcego, que era a fantasia oficial dos meninos de Paquetá.

Eu não tinha coragem de dizer que não gostava daquilo. Mas o pai se entusiasmava com qualquer novidade. Lá pelas quatro horas da tarde me botava uma túnica preta e a tal máscara de morcego que fedia a papelão e cola. Me mandava para a praia dos Tamoios que assumia o papel de "grande teatro da vida". Esbarrava com outros morcegos bem mais animados do que eu. Procurei me esconder atrás da Pedra da Moreninha, onde estavam gravados em bronze os versos de Hermes Fontes: "Paquetá é um céu profundo que começa neste mundo e não sabe onde acabar".

De repente esbarrei com uma caveira, provavelmente um menino como eu, fantasiado de morte, os dentes arreganhados, a túnica branca com enorme cruz preta no peito e nas costas. Corri tanto, que não podia gritar. Pior de tudo, não sabia onde devia ir.

Estou correndo até hoje. Amigos reclamam que ando depressa demais, achando que não dou importância a eles. Eu próprio não sei para onde estou indo, continuo fugindo da caveira que mutilou minha memória.

FOLHA DE SÃO PAULO,  7 DE FEVEREIRO DE 2016

 

February 8, 2016

Em farra da cultura, interesse privado orientou política pública



 

 MATHEUS MAGENTA

A farra da cultura com as tetas públicas está perto do fim. Hoje, todos têm direito de captar recursos via Lei Rouanet, de estilistas e seus desfiles de moda em Paris a artistas de rua. "Mas (escreva aqui o nome do artista) precisa mesmo disso?". "A lei é para todos." Antes moral, o debate deve passar a ser legal.

Caso entre em vigor, a decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) de vetar esses recursos para projetos culturais com "potencial lucrativo" causará a maior transformação no segmento cultural brasileiro desde os anos 1990, na criação da Rouanet. Quem consegue se bancar deixaria de mamar.
O mecanismo atual é simples. Pessoas físicas e jurídicas podem destinar parte do imposto devido para um projeto à sua escolha. O governo chancela as propostas a partir de critérios técnicos, sem avaliações estéticas. Em duas décadas, 196 mil foram apresentadas e 106 mil, aprovadas.

Quase R$ 17 bilhões renunciados depois, o que se vê é interesse privado orientando uma política pública, especialistas em formatar projetos adequados à burocracia do Ministério da Cultura e artistas e produtores que privilegiam o próprio umbigo ao público.

A decisão do TCU implode fundamentos da produção atual. Nela, se bem-sucedida na captação de recursos, uma exposição quita as contas antes da estreia e transforma bilheteria em sinônimo de lucro. Escritores vivem de livros lidos por ninguém e filmes se pagam mesmo com cinemas vazios.
INDEPENDÊNCIA
 
Parte do setor cultural defende que a arte deve ignorar a lógica de mercado. A produção deve atender critérios estéticos, não espectadores, distribuidores ou editores. Nesse caso, os recursos públicos são essenciais.

Quem, portanto, não precisaria desse dinheiro? Parece fácil responder tendo em vista empresas com receita de R$ 553 milhões em 2014 e captação de R$ 15 milhões naquele ano via Lei Rouanet para versões de musicais da Broadway.

Mas o que dizer da turnê de um músico assíduo em Sescs ou de um sertanejo fora das paradas? Venda de ingressos e anunciantes e patrocinadores são suficientes para bancá-la? Não está claro o que é o "potencial lucrativo". Para o TCU, o Ministério da Cultura sabe fazer a distinção. A pasta nega —para ela, todo projeto é potencialmente lucrativo.

A disputa entre os projetos, no entanto, é predatória e orientada por critérios mercadológicos —os mesmos ignorados por parte da produção. Por que um banco destinaria parte do seu Imposto de Renda para uma peça teatral montada na rua, sendo que um festival de música tem mais impacto e visibilidade?

Na prática, o "potencial lucrativo" se afunila em interesses dos grandes patrocinadores. Mas o veto ao patrocínio de grandes eventos culturais abre três caminhos. O patrocinador pode redirecionar recursos para projetos menores, fugir com seu capital ou começar a tirar dinheiro da própria carteira. Hoje, os mecenas privados fortalecem suas imagens às custas do erário —na Rouanet, a cada R$ 10, menos de R$ 0,50 saíram de bolsos privados.

Há também uma brecha bem-vinda no horizonte. O barateamento dos ingressos reduziria a previsão de receitas e ampliaria a necessidade da vaca de divinas tetas chamada Lei Rouanet.

FOLHA DE SÃO PAULO, 5 DE FEVEREIRO DE 2016

ilustração: Fido Nesti 



February 5, 2016

Sobre o aborto

Cora Rónai:

Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência

A epidemia de zika e o aumento explosivo do número de casos de microcefalia puseram na ordem do dia o debate sobre a descriminalização do aborto. Da escuridão, às vezes, nasce a luz: tenho a impressão de que, em menos de um mês, foram publicados mais artigos e entrevistas sobre o assunto do que nos dez anos anteriores. Amaldiçoado com uma das classes políticas mais cínicas e calhordas do mundo, que foge de qualquer tema que possa desagradar aos religiosos, o Brasil está se devendo essa discussão há tempos — mas a simples menção da palavra “aborto” basta para que os nossos legisladores, salvo raras e heroicas exceções, virem para o lado e façam cara de paisagem. Pouco importam, para eles, as vítimas da sua covardia. Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência.

Interromper uma gravidez, em qualquer situação, é prerrogativa da mulher. A maioria dos países do Primeiro Mundo — aqueles que melhor resolveram as suas desigualdades econômicas e sociais — já reconheceu isso. O aborto é legal, sem restrições, em toda a América do Norte, na Europa (com as significativas exceções da Polônia e da Irlanda), na Austrália e numa boa parte da Ásia, para não falar em países que nem são tão desenvolvidos assim, mas que têm feito um esforço nesse sentido, como nosso vizinho Uruguai ou a África do Sul. Em outros, como Índia, Japão ou Islândia, foram estabelecidos limites de tempo para a interrupção da gravidez, mas mesmo esses limites podem ser flexibilizados em casos de doença grave da mãe ou do feto, ou circunstâncias socioeconômicas adversas. Eles entendem que a maternidade é um compromisso para a vida inteira, e que um aborto é muito menos traumático, individual e coletivamente, do que uma criança indesejada.

O Brasil, porém, está alinhado com o Afeganistão, a Somália, a Líbia, o Sudão, o Mali, o Burundi, o Iêmen ou o Haiti, países onde a vida humana, caracteristicamente, vale muito pouco. Até Paquistão e Arábia Saudita, que tratam as suas mulheres feito lixo, têm leis melhores do que as nossas, para não falar numa quantidade de países da África subsaariana, como Zâmbia, Namíbia ou Quênia.

Um excelente mapa interativo do Center for Reproductive Rights mostra a legislação sobre o aborto no mundo. Ele pode ser visto em goo.gl/340WF.
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Digo que o Brasil precisa discutir o aborto, mas eu mesma, pessoalmente, não tenho mais ânimo para isso. Sei que existem pessoas boas genuinamente angustiadas com a sorte dos fetos alheios, para além de dogmas religiosos e falsos moralismos, mas essas pessoas têm sido minoria nas discussões acaloradas da internet.

Nessas discussões, as pessoas que mais se dizem horrorizadas com as mortes de fetos — chamando-os de “crianças” para maior efeito dramático, fingindo desconhecer o fato de que “crianças”, ao contrário de embriões, conseguem sobreviver fora do corpo da mãe — são estranhamente insensíveis às mortes das mulheres obrigadas a abortar em condições sub-humanas. Para elas, a vida, tão preciosa dentro do útero, deixa de ter valor do lado de fora. Defendem a inviolabilidade da vida, e sustentam que a legislação brasileira, retrógrada ao extremo, basta para qualquer mulher; não veem contradição nenhuma em defender o aborto em casos de estupro e em gritar que toda vida é sagrada. Mas, se é, que diferença há entre os fetos gerados por estupro e os fetos gerados por amor? As “crianças” não são todas iguais?

Hipocrisia é o nome do jogo.
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Defender a criminalização do aborto é fechar os olhos para o fato de que quase um milhão de abortos são realizados anualmente no Brasil, com cerca de 200 mil internações decorrentes de procedimentos mal feitos; é ignorar as estatísticas mundiais que mostram que o número de abortos se mantém estável quando a legislação muda a favor da mulher; é contribuir para a desigualdade social, porque mulheres ricas continuarão fazendo aborto sempre que necessário.

Mas defender a criminalização do aborto é, acima de tudo, um ato de inacreditável soberba, que põe todos os “juízes” acima da mulher que optou por interromper a gravidez. Ora, fazer aborto não é uma decisão fácil ou leviana; nenhuma mulher faz aborto por esporte. Qualquer uma que chega a essa decisão já pensou muito, e já pesou, dentro da sua capacidade, os prós e contras da questão — mas os senhores e senhoras que a condenam acham que conhecem melhor as suas condições e os seus sentimentos do que ela mesma, e se acreditam no direito de castigá-la.

Quem pede a legalização do aborto não pede a ninguém que aborte ou seja “a favor do aborto”; pede apenas que seja dado às mulheres o direito de decidirem o seu futuro por si mesmas, sem correr riscos de saúde desnecessários, e sem que Estado ou Igreja se metam onde não são chamados.
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Este assunto me tira do sério muito mais do que qualquer outro (ou, vá lá, quase qualquer outro) porque nele vejo, além da hipocrisia, muita maldade, falta de compaixão e todo o tipo de chicana moral e religiosa para continuar mantendo as mulheres na posição de submissão em que foram mantidas ao longo dos séculos.

A verdade é simples: a criminalização do aborto é um crime contra a mulher.

O GLOBO, 4 DE FEVEREIRO DE 2016