December 30, 2016

FIA rompe 118 contratos com ONGs que atendem crianças e jovens

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RIO - Em um único dia, a Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), ligada à Secretaria estadual de Assistência Social, rompeu 118 contratos com instituições que atendem crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, física, em situação de vulnerabilidade ou com deficiências. A medida praticamente desmantelou os serviços da entidade, acabando com uma rede que presta 45 mil atendimentos ao ano. Restaram apenas 14 contratos com organizações que trabalham como abrigos.

Na publicação no Diário Oficial em que anunciou o fim dos contratos, o presidente da FIA, José Augusto Rocha, citou o decreto de junho que declarou estado de calamidade financeira no estado e alegou que a fundação “não está conseguindo honrar tempestivamente com os compromissos pactuados”. A dívida com as 118 instituições chega a mais de R$ 20 milhões. Funcionários da FIA afirmam que as organizações não recebem pagamentos há oito meses e que seus profissionais estão trabalhando voluntariamente.

— É a pior situação nestes anos todos. A criança, pela Constituição Federal, é prioridade. Até no estado de calamidade pública. Mais de 45 mil atendimentos vão ficar prejudicados. E como vão ficar essas instituições sem o dinheiro do governo? Elas não sabem o que fazer, estão desesperadas — disse assistente social Elza Velloso, servidora da FIA há 40 anos.

Em nota, a FIA afirmou que “precisou suspender os convênios”. Uma das instituições que tiveram o contrato rompido foi a única ONG responsável pelo Núcleo de Atendimento a Crianças e Adolescentes (Naca) na capital, no Grajaú. Em setembro, O GLOBO mostrou que, sem receber recursos, a instituição — responsável por emitir laudos de situações de violência contra crianças, para respaldar decisões judiciais — tinha uma fila de espera que chegava a 160 casos.

Em nota, a deputada Tia Ju (PRB), presidente da Comissão da Criança, do Adolescente e do Idoso da Alerj, disse que estuda meios de acionar a Justiça para reverter a decisão da FIA. “Fiquei estupefata quando soube que a FIA suspendeu mais de cem termos de colaboração com instituições conveniadas. É inacreditável e inaceitável que o governo acredite que resolverá os erros de gestão cortando programas sociais fundamentais”, criticou
.
Para Rogério Souza, presidente da Associação de Servidores da FIA, a decisão é um “descalabro”:
— Você percebe que o social, a criança, o adolescente e o idoso são prioritários só no discurso político.

November 4, 2016

No enem, desidratar a resistência pesou mais do que se abrir ao diálogo

Flávia Oliveira

 

É a política, não a matemática

Em vez de dialogar com os estudantes, o MEC preferiu adiar o Enem

Matematicamente, a conta é tão simples que está na grade curricular do ensino fundamental. É de 2,2% a proporção de estudantes que farão o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) um mês depois do previsto, em razão das ocupações nas escolas. São 191.494 num universo de 8,6 milhões de inscritos; dois em cada cem. Difícil crer que o aparelho burocrático do Ministério da Educação não teve tempo ou habilidade para remanejar os locais de prova de dois centésimos dos estudantes. Por trás do adiamento está a decisão política de retaliar a reação dos jovens à medida provisória da reforma do ensino médio e aos efeitos da PEC 241 (renumerada no Senado para PEC 55) no orçamento da educação.

Responsável pela aplicação do Enem, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Texeira (Inep) anunciou na noite da última terça-feira o adiamento da prova para alunos lotados em 304 unidades ocupadas no Brasil até 31 de outubro. São três centenas de estabelecimentos tomados numa rede que soma 190 mil escolas públicas e privadas, segundo o Censo Escolar 2013 do próprio MEC. Paraná, com 74 colégios, e Minas Gerais, com 59, são os estados mais afetados; cerca de 84 mil farão a prova mês que vem. No Rio, pouco mais de sete mil alunos serão submetidos ao exame nos dias 3 e 4 de dezembro, em vez de no próximo fim de semana. 

O movimento de ocupação de escolas brasileiras germinou em São Paulo, um ano atrás, contra a reorganização dos ciclos de ensino pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A intenção era transferir 300 mil alunos, distribuindo-os em escolas dedicadas aos anos iniciais e finais do ensino fundamental e ao nível médio. Com isso, 92 unidades fechariam as portas. Os protestos começaram nas ruas e desaguaram nas ocupações. 

Uma cartilha elaborada por estudantes chilenos e argentinos inspirou os ativistas do Brasil. Em 2011, secundaristas ocuparam mais de 700 escolas no Chile para cobrar passe livre nos transportes públicos e melhorias na educação. Qualquer semelhança... O documento recomenda realização de assembleia para organizar a entrada na escola e divisão dos alunos em comissões com tarefas predeterminadas, como limpeza, alimentação, segurança, imprensa. Sugere ainda que faixas de protestos sejam postas na frente dos colégios para tornar públicas as razões do movimento. Salvo radicalizações isoladas, é essa a tônica das ocupações.

O movimento se espalhou por São Paulo, alcançou Goiás, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais. As reivindicações mesclam agendas locais e questões nacionais. No Rio, por exemplo, os protestos de alunos começaram no início do atual ano letivo, em razão da crise aguda nas finanças do governo fluminense. Professores, com décimo terceiro e salários parcelados, ficaram em greve por quase cinco meses. Estudantes tomaram escolas em apoio aos docentes, mas também por mudanças no currículo e na qualidade na educação. Hoje, o movimento está concentrado em unidades do tradicional Colégio Pedro II, da rede federal, contra medidas do governo de Michel Temer, caso da MP do ensino médio e da PEC do teto de gastos. A pauta nacionalizou-se.

As autoridades lidaram mal com as ocupações desde o primeiro momento. O governo de São Paulo, em vez de dialogar, preferiu usar a polícia contra os estudantes, criminalizando o movimento. Errou ao empurrar o debate sobre educação para delegacias. No Distrito Federal, uma decisão judicial determinou o corte de água, luz e gás e proibiu a entrada de alimentos numa escola de Taguatinga tomada por alunos em 27 de outubro. Reprime-se muito, dialoga-se pouco com a juventude que engatinha no ativismo político. 

Agora, diante do movimento robusto de oposição às medidas federais na educação, o MEC preferiu o adiamento do Enem para parte dos inscritos. Fração no conjunto de estudantes aptos à prova, os 191 mil prejudicados — ou beneficiados, sob o ponto de vista de quem enxerga um mês a mais de estudos em relação aos demais — estão em quantidade suficiente para lançar a opinião pública contra os manifestantes. Fora do Enem deste fim de semana estão brasileiros em número equivalente à população de cidades médias como Angra dos Reis ou Nova Friburgo (RJ), Araçatuba, Ferraz de Vasconcelos ou Santa Bárbara d’Oeste (SP), Guarapuava (PR), Lauro de Freitas (BA), Sobral (CE), Luziânia (GO), Parauapebas (PA). 

É pouca gente no conjunto da população, mas muita gente a ter a vida prejudicada pelos ativistas. Os estudantes com a prova adiada e suas famílias têm motivos de sobra para se indignar. O que está mal explicada é a ação tão drástica do governo. Uma semana atrás, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) mineiro, em acordo com ocupantes de sete escolas, demarcou o espaço de mobilização e garantiu a realização do segundo turno das eleições municipais, sem transtornos. No Enem, desidratar a resistência pesou mais do que se abrir ao diálogo.

O GLOBO, 4 DE NOVEMBRO DE 2016 

October 16, 2016

Trumpismo sobrevierá



Adriana Carranca

É possível que as chances de Donald Trump chegar à Casa Branca tenham sido enterradas com os escândalos sexuais envolvendo o republicano. Enquanto estavam no campo das ideias e das palavras, as ofensas podiam ser compreendidas como verborragia de um falastrão inconsequente em busca de popularidade e votos a qualquer custo. Quando mulheres decidiram denunciar abusos praticados pelo magnata, os argumentos contra Trump ganharam outro peso.

Nas últimas duas semanas, líderes republicanos desembarcaram da campanha, doadores pediram o dinheiro de volta, um representante da ONU declarou que o candidato, se eleito, seria uma ameaça ao mundo. 

Foto: REUTERS/Carlo Allegri
 
Donald Trump
Trump. Soluções equivocadas
Trump pode sair de cena, mas o trumpismo sobreviverá. Ele foi o mais votado da história nas primárias republicanas – o recorde anterior era de George W. Bush, em 2000. Mais de 40 milhões mantêm-se fiéis a ele, apesar de seus comentários racistas, xenófobos, machistas, de sua inexperiência política e de todas as acusações sobre ele, da sonegação de impostos aos abusos sexuais. É o equivalente à população da Espanha ou da Argentina, disposta a validar tudo com o voto.
É preciso compreender este fenômeno. À espera do discurso de Trump na Pensilvânia, na terça-feira, um homem bradava o slogan do magnata: “Trump fará os EUA grandes de novo”. Em outro palanque, uma mulher esperava para ouvir o candidato vestindo uma camiseta com a frase: “Trump, fale baixarias para mim”. Isso, um dia depois de o New York Times publicar o depoimento de mulheres que teriam sido abusadas sexualmente por ele.

Lou Dobbs, âncora da Fox Business Network, compartilhou para seus 800 mil seguidores no Twitter o link de um site conservador e o post que revelavam o endereço e o telefone de Jessica Leeds, uma das vítimas. Criticado, ele apagou tudo. Também esta semana, a página da Wikipédia da democrata Hillary Clinton foi vandalizada com imagens de pornografia e mensagens pró-Trump.
 
As mulheres que acusaram o republicano de abuso o fizeram após o candidato declarar, no segundo debate, que o áudio em que foi flagrado contando vantagem por abusar de mulheres era apenas “conversa de vestiário”. Duas falaram ao New York Times. Uma ex-repórter da revista People revelou que Trump tentou abusar dela em 2005 e uma ex-candidata a Miss Teen EUA disse ao BuzzFeed que ele invadiu o camarim onde elas se trocavam. A CBS divulgou um vídeo de 1992 em que Trump faz comentários insinuantes sobre uma menina de 10 anos.

Trump reagiu desenterrando casos de abuso sexual contra o ex-presidente Bill Clinton. Seus eleitores logo saíram às ruas exibindo cartazes e inundaram as redes sociais com posts dizendo: “Hillary é casada com um estuprador”, mas ignorando as acusações contra o próprio Trump. Sobre o áudio de 2005, um engenheiro elétrico, eleitor de Trump, comenta: “A única coisa que a gravação mostra é que ele é um heterossexual saudável.”

Em uma série de entrevistas conduzidas pelo New York Times, quase todos desconsideraram as acusações contra Trump, questionando as intenções das acusadoras. Uma das entrevistadas disse acreditar que Trump agiu “como todos os homens ricos agiam décadas atrás”, referindo-se ao relato de uma mulher que o acusou de tocar seus seios e colocar a mão por baixo de sua saia. “São oportunistas. Nenhum homem ataca uma mulher a menos que ela pareça estar pedindo”, disse.

A maioria dos eleitores se mostrou cética sobre as denúncias. Alguns justificaram as acusações com teorias conspiratórias. Outros disseram que o comportamento de Trump não importava, que ele deveria ser eleito por tudo o que representa. Mas o que Trump representa? No longo prazo, o resultado das eleições é menos relevante para o futuro dos EUA do que responder a esta pergunta.

August 7, 2016

Pra tudo começar na sexta-feira

Apesar de todas as mazelas, existe um Brasil que canta e é feliz e que o mundo viu na cerimônia de abertura da Rio-2016


MARCELO BARRETO

  É um desafio ter orgulho de um país que figura no topo dos rankings de má distribuição de renda e corrupção enquanto vai para a parte de baixo da tabela em índices que medem a qualidade de vida, a saúde, a educação, a segurança de seus cidadãos. Mas o Brasil é mais do que isso. É também esse Brasil que canta e é feliz que o mundo viu na cerimônia de abertura da Rio-2016.

Seguindo os passos de Londres e deixando para trás o gigantismo de Pequim, a cidadesede quis mostrar o processo de criação de um país ainda em formação. O que se viu sobre a tela gigante no gramado do Maracanã não foi, é verdade, uma denúncia do extermínio da população indígena ou da vergonha de termos sido os últimos a abolir a escravidão. Mas também não foi uma romantização do cadinho de raças. Se a palavra-chave da concepção artística era gambiarra (menos desgastada pelo uso do que “jeitinho brasileiro”), a do roteiro poderia ser transformação.

O país do futuro exaltou também alguns dos grandes nomes do seu passado e do seu presente. É sempre uma estratégia arriscada. Cada um terá sua lista de ausências — a minha começa por Machado de Assis, que o mundo pode não conhecer tão bem quanto Gisele Bündchen, mas radiografou a alma brasileira que a cerimônia quis mostrar. A parte esportiva ficou sem Pelé, que poderia ter sido lembrado de outra forma mesmo sem estar presente fisicamente. Nosso maior atleta não é olímpico, e ainda não temos lendas dos Jogos como Michael Phelps, que passou carregando a bandeira americana. Mas temos gente que gosta genuinamente do esporte, que entende a importância dessa forma de expressão do ser humano. De Nalbert a Flávio Canto, eles estavam lá, aplaudindo a sorridente chegada de Guga, talvez o maior exemplo desse amor.

No fim, a simplicidade de Vanderlei Cordeiro de Lima, um ex-boia fria que se transformou na encarnação do espírito olímpico em Atenas, resolveu com delicadeza a ausência do Rei. A simplicidade de Vanderlei foi o fecho perfeito para uma festa plebeia, que teve uma mulher nordestina como porta-bandeira do Brasil, que se preocupou com a inclusão de crianças e portadores de deficiência, que celebrou a cultura negra. E que, sem medo de clichê, acabou em samba.
Não concordo com a visão expressa no “New York Times” de que a cerimônia escondeu por quatro horas os problemas de um país mergulhado numa terrível combinação de crise política com estagnação econômica. Essa abordagem deprimida de que não se deve festejar nos momentos difíceis, típica dos países do Primeiro Mundo, nunca pegou no Brasil. Por aqui, meu compadre Aydano André Motta diz que o ano é aquele longo e aborrecido intervalo entre dois carnavais. A festa faz parte do nosso calendário, nos anos bons e nos ruins.

A alegria do esporte também pode coexistir com as outras coisas da vida. Por que cidades e países movem mundos e fundos para organizar grandes competições esportivas?, perguntam o jornalista Simon Kuper (um grande crítico do COI e da Fifa) e o economista Stefan Szymanski em “Soccernomics”, um livro que tenta explicar com fórmulas matemáticas os grandes dilemas do futebol. E, depois de fazerem as contas, concluem: porque querem ser felizes por algumas semanas.

Respeito quem pensa que não se deve gastar o que se gasta para isso. Respeito quem não gosta de carnaval ou de Olimpíada. Respeito quem acha que o Brasil e o Rio de Janeiro não têm motivos para festejar. Mas na sexta-feira à noite, no Maracanã, eu fui feliz.l

August 6, 2016

Olimpiada: Quanto mais Franco, melhor


Esportes com torneios profissionais bilionários ficam espremidos nos parâmetros da Olimpíada. Ou melhor, eles não cabem

É uma pena que os membros da “família olímpica” e demais responsáveis pelo megaevento quadrienal não tenham o hábito de exercitar a franqueza do norte-irlandês Rory McIlroy. Se o fizessem, haveria menos sobressaltos, desperdício, cinismo e desvios de propósito nas cidades-sedes.
McIlroy, como se sabe, é um dos grandes astros do golfe da atualidade. Ocupa o quarto lugar no ranking mundial e é um dos profissionais de ponta que optaram por ignorar a reestreia do golfe, ausente dos Jogos desde 1904.
Ele fez o oposto de Jordan Spieh, o atual número 1 do mundo que se escudou em tortuosas justificativas para explicar o forfait. Enquanto o americano Spieh se dizia dilacerado por ter de assistir de casa ao torneio no Rio, o norte-irlandês manifestou pouco interesse em acompanhar a competição olimpica do esporte que pratica. Nem à distância.
— Provavelmente vou assistir a provas de atletismo, natação, coisas assim, modalidades que realmente importam — contou ao “New York Times". Para ele, olímpicos são atletas que treinam sem trégua, muitas vezes de forma anônima, para poderem competir no evento máximo de seu esporte — os Jogos.
Já para golfistas profissionais que disputam o topo do ranking, a Olimpíada pode ser um transtorno no recheado calendário de torneios altamente rentáveis e valorizados.
Ao votar pelo retorno do golfe após um hiato de 112 anos, os membros do Comitê Olímpico Internacional (COI) quiseram ampliar a curiosidade e o interesse globais pela modalidade apostando na popularidade dos Jogos e na participação dos maiores golfistas.
Tudo indica, porém, que terá sido um tiro no pé, cujo preço o Rio acabará bancando sozinho. Se, de fato, essa ressurreição olímpica for efêmera e a modalidade sequer sobreviver os Jogos de 2020 , o já tão polêmico e danoso campo de golfe esculpido na Barra se transformará num monumento a veleidades passageiras.
— Não decidi jogar golfe para disseminar a prática — resumiu McIlroy — Me esforcei para vencer torneios, e vencer os que mais contam.
Esta semana, o próprio mundo do golfe profissional foi surpreendido com uma notíciabomba: a Nike, maior fabricante mundial de material esportivo, vai fechar sua linha de tacos e bolas, mantendo apenas a linha de indumentária. A concorrente alemã Adidas já havia feito o mesmo poucos meses antes. Desde que o incomparável Tiger Woods arruinou sua vida pessoal em 2009 , perdendo o toque mágico que fizera dele o primeiro esportista bilionário da história, o circuito PGA se esforça sem êxito a recuperar o lustre.
Também na reintrodução do tênis como esporte olímpico na Olimpíada de Seul, em 1988 , houve uma ostensiva abstenção de grandes astros mundiais, a começar por John McEnroe, e pelos mesmos motivos. Esses motivos não mudaram de lá para cá, apenas estão mais edulcorados: o que vale são os grandes torneios do Grand Slam. Mesmo aficionados capazes de recitar os dez últimos vencedores de Wimbledon ou Roland Garros têm dificuldade para lembrar quem levou o ouro na final em Atlanta, Sydney ou em Atenas, três olimpíadas atrás.
Há quatro anos, o ala/armador Dwyane Wade, nome idolatrado do Miami Heat e quarto maior salário da NBA, foi outro que falou bem claro sobre a dimensão de uma Olimpíada no universo de jogadores de elite. Foi o primeiro a fazê-lo, por sinal.
Somados os patrocínios à época, Wade embolsava US$ 27 milhões ao ano (hoje ganha mais). Não era, portanto, um necessitado quando decidiu defender a tese que gerou torrentes de indignação a poucos meses do início dos Jogos de Londres.
Maior pontuador nas partidas que consagraram a seleção dos Estados Unidos em Pequim (2008), Wade explicou não querer mais brincar de olimpíada: achava errado competir apenas pelo amor à pátria, sem ser remunerado.
Seu arrazoado tinha lógica. Formulada em tom mais polido e conteúdo menos cru, é a mesma que levou colossos como LeBron James e Stephen Curry a não participar do Rio-2016.
Quem atravessa a extenuante temporada da NBA até o final tem apenas duas semanas de descanso antes de se juntar à seleção americana, se convocado, para iniciar o treinamento olímpico. É muito pouco para recompor a família, relaxar o corpo, limpar a cabeça.
— Não se trata de só jogar em troca de dólares — explicou Wade — É que você faz um monte de coisas por uma Olimpíada, inclusive vender camisas. Realmente acho que deveríamos ser compensados.
Ele apenas esqueceu de acrescentar que, à parte o bônus de U$ 25 mil que todo medalhista de ouro do Time USA recebe, ele tem contrato anual de U$ 12 milhões com a Nike, fabricante das tais camisas de basquete cujas vendas dão um salto durante os Jogos.
(Se existisse uma justa escala salarial olímpica, o nadador Michael Phelps, sozinho, seria capaz de afundar os cofres do COI com suas 18 medalhas de ouro, 22 no total, e outras mais a caminho esta semana).
Em resumo, assim como uma Olimpíada parece sufocar a vida urbana de cidades-sedes como o Rio, Atlanta ou Atenas, esportes com torneios profissionais bilionários ficam espremidos nos parâmetros que a tornam tão universal e única. Ou melhor, eles não cabem. A seleção americana do astro maior Kevin Durant (U$ 56,2 milhões de faturamento em 2015) só sairá do transatlântico Silver Cloud onde está alojada para entrar em quadra.
Na sua forma atual, escreveu na “New Yorker” o editor Reeves Wiedeman, os Jogos Olímpicos produziram a versão capitalista de um sistema esportivo bem azeitado, à base, essencialmente, de mérito. Para fazer parte do 1% que se sobressai é necessário sair vencedor tonitruante em um esporte de grande audiência, ou conquistar a vitória de alguma forma dramática, memorável. Ainda assim há remuneração para os 99% restantes. E ela não tem preço. Participar de uma Olimpíada ainda vale bem mais do que o custo de ter chegado até lá.

DORRIT HARAZIM

 

o globo, 6 de agosto de 2016  

May 27, 2016

Falsa ruptura


PAULO SÉRGIO PINHEIRO 
Os primeiros dias do governo interino não deixaram dúvidas -seus objetivos se limitam a acalmar os mercados e a garantir governança com uma sólida base legislativa. Aos opositores, a total indiferença.
Quando os protestos, mesmo pacíficos, chegam perto dos atuais donos do poder, sobram cacetadas, jatos de água e gás por tropas de choque da Polícia Militar.

As gravações do agora ex-ministro Romero Jucá reveladas pela Folha expõem uma conspiração para a tomada do poder, revelando como os mais baixos recônditos do sistema político brasileiro prosseguem firmes em sua esperança de sufocar a consolidação do Estado de Direito e da democracia no país.

O impeachment surge como um sinistro pacto a portas fechadas urdido pelas forças mais retrógradas, desesperadas para manter seu poder. Uma aberração institucional que custará muito caro ao Brasil.

A reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, foi um acidente inaceitável para o establishment econômico e político brasileiro. Dilma era o risco permanente. Seja risco aos mercados, que sabiam que sua única base real estava à esquerda, seja o risco aos corruptos de sempre, que não sentiam ter um escudo seguro.

Entregando a cabeça de Dilma, acreditavam que tudo voltaria ao normal: ordem e progresso, como nos bons tempos da ditadura militar.

O demorado e bizarro julgamento das pedaladas fiscais nos obriga a discutir uma patética infinidade de detalhes num processo que já estava decidido. Não por qualquer sombra de análise jurídica, mas nas idas e vindas dos mais dignos representantes de nossa elite ao Palácio do Jaburu, residência ocupada pelo presidente interino Michel Temer.

A ausência de mulheres no ministério do governo interino é o exemplo maior do grotesco descolamento da realidade do grupo que agora nos governa. O rebaixamento dos ministérios de Ciência e Tecnologia e Direitos Humanos foi também um caminho totalmente natural para um grupo que viveu e floresceu eternamente na sombra dos gabinetes, a léguas de distância do pensamento crítico e da sociedade civil organizada.

Para agregar um caráter ainda mais sinistro, a administração interina conseguiu também nomear para a secretaria de Segurança Institucional o general do Exército Sérgio Etchegoyen, justamente o único oficial de alta patente que, abertamente, confrontou o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Ao fim e ao cabo, a chegada do PMDB ao poder representa a tentativa de sobrevivência da base mais profunda que deu sustentação à nossa transição democrática lenta, gradual e, como agora vemos, insegura.

A grande vítima da conspiração reinante é, ironicamente, a Constituição de 1988 que o presidente interino disse defender. Vários projetos de lei já estão no Congresso para desmontar os direitos conquistados na esteira da constitucionalidade.

Espero que rapidamente acordemos desse transe e novas eleições sejam promovidas para reestabelecer um mínimo de espaço para nossa tão desmoralizada República.

E que as futuras gerações estudem com afinco os infinitos erros da minha geração, que lutou contra a ditadura e se iludiu tantas vezes com aparentes mudanças que, na verdade, jamais lograram transformar o autoritarismo profundamente incrustado no sistema político e na sociedade.
 FOLHA DE SÃO PAULO, 25 DE MAIO DE 2016

May 26, 2016

Temer, a solução que virou problema

elio gaspari

 

Temer pareceu uma solução e tornou-se um problema porque depois da revelação do conteúdo da escandalosa conversa do senador Romero Jucá com o ex-colega Sérgio Machado, cobriu-o com os seguintes adjetivos: "competente", dotado de "imensa capacidade política" e "excepcional" formulador de medidas econômicas.

Segundo Temer, o ministro "solicitou" seu afastamento. Tudo bem, fez isso depois de se aconselhar com Elvis Presley, que está vivo. Sua ausência estaria relacionada com "informações divulgadas pela imprensa". Falso. O repórter Rubens Valente não divulgou apenas informações, transcreveu áudios e colocou-os na rede. Jucá tentou embaralhar a discussão e foi prontamente desmentido pela própria voz.
Temer nomeou Jucá para o Ministério do Planejamento sabendo quem ele era. O doutor celebrizou-se comemorando de mãos dadas com o notável Eduardo Cunha o fugaz rompimento do PMDB com o governo.

É impossível acreditar no que o governo disse na segunda-feira, mas é plausível supor que Temer e Jucá, homem de "imensa capacidade política", compartilhem visões da crise. O senador foi repetidamente apresentado como um dos cinco grandes conselheiros do vice-presidente, integrante do seu "Estado-maior".

Em sua conversa com Machado, Jucá produziu um retrato perfeito e acabado da oligarquia política ferida pela Lava Jato: "Tem que resolver essa porra. Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria".

Pergunte-se, o que quer "essa porra"? "Acabar com a classe política para ressurgir, construir uma nova casta, pura."

Desde que aderiu à fritura de Dilma Rousseff, Temer deu diversos sinais de antipatia objetiva e simpatia retórica pela Lava Jato. Pena.

Um trecho da fala de Jucá é significativo e preocupante:
"Estou conversando com os generais, comandantes militares. Está tudo tranquilo, os caras dizem que vão garantir. Estão monitorando o MST, não sei o quê, para não perturbar."
Jucá teve seu momento de vivandeira.

Os "caras" garantem a ordem no cumprimento da Constituição e não precisavam conversar com o doutor para reiterar esse compromisso. É bom que monitorem o MST e aquilo que Lula chamou de "o exército" de João Pedro Stédile. Contudo, salta aos olhos que para Jucá era conveniente misturar a manutenção da ordem com uma trama política escandalosa em relação à qual os militares nada podem fazer, pois a Lava Jato é assunto do Judiciário.

Felizmente Machado era um grampo ambulante. Ele chocou o país com a conversa e haverá de chocá-lo muito mais revelando o que sabe do PSDB, do PMDB e da Transpetro, que presidiu por dez anos, abençoado por Lula e pelo PT.

A primeira quinzena do atual governo pode ser malvadamente comparada à lua de mel de Marcello Mastroianni com Claudia Cardinale no filme "Il Bell'Antonio".

A ideia de que o atual governo possa aumentar impostos, mexer em leis trabalhistas e alterar os prazos para as aposentadorias de quem já está no mercado de trabalho é uma perigosa ilusão.

Se Temer tivesse formado o ministério de notáveis prometido pelo seu departamento de efeitos especiais, talvez isso tivesse sido possível. Jucá, um investigado pela Lava Jato, deixou o ministério e no seu lugar, interinamente, ficou um cidadão investigado pela Operação Zelotes.

O GLOBO, 25 DE MAIO DE 2016

ilustração andré mello 



May 11, 2016

CONTINUAREMOS


Em um país em transe, a ampliação potente da democracia — indo muito além da frágil falácia da transformação social como simples ampliação do acesso a bens de consumo — pressupõe o falar de muitas vozes, o descortinar de miradas e a ousadia de experimentar rumos que libertem as mulheres e os homens da nossa crônica doença do desencanto, nascida na negação da potência do que podemos ser.

Somos um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos capatazes, cultura do estupro, naturalização de linchamentos e coisas do gênero.

Acontece que, no meio de tudo isso e ao mesmo tempo, produzimos formas originais de inventar a vida onde amiúde só a morte poderia triunfar. Um Brasil forjado nas miudezas de sua gente, alumbrado pela subversão dos couros percutidos, capaz de transformar a chibata do feitor em baqueta que faz o atabaque chamar o mundo. Um Brasil produtor incessante de potência de vida, no arrepiado das horas e no chamado de uma pluralidade de deuses bonitos como as mulheres e os homens.


A luta por esse segundo Brasil, ao meu juízo, não me enreda porque acho que ela será vitoriosa: eu estou na briga porque acho que ela é necessária. 


Continuarei na rinha pela revolução do despacho na encruza, do reconhecimento do poder das senhoras e da alteridade da fala: língua do congo, canto nagô, virada de bugre na aldeia. Escrevo pela necessidade de outras gramáticas de compreensão do Brasil. Minha arma é o alfange do deus que é meu pertencimento, o senhor do mariô que mora em mim, iluminando, ao cortar os intolerantes, o meu mundo na viração da vida plena.


É hora de temperar a porta brasileira com dendê e apimentar o padê dessa canjira.


LUIS ANTONIO SIMAS

May 8, 2016

De boca na mortadela



Marcio Tavares D’Amaral

Dois países não podem conviver no mesmo território

“Nós” e “eles” prevaleceu. O tempo vai passar, haveremos de nos lembrar do tempo em que nos fazíamos boa companhia, e há de se restaurar um “nós” hoje (provisoriamente?) posto na geladeira. Preservado no frio da cordialidade suspensa. Apesar de tudo, melhor a geladeira. Ou dá bicho, e temos de nos jogar fora. No lixo de um ódio que, então, terá se tornado nosso novo modo de ser povo. Essa, sim, seria uma derrota. Uma para chorar. Se é que o ódio encontra motivos para chorar.

Hoje, tudo que se diga que vise ao estabelecimento de algum frangalhozinho de verdade encontra inevitavelmente a cantilena enjoada das crianças que precisam justificar junto à mãe os sopapos que meteram no irmão: “Foi ele que começou!”. Ainda vamos assistir a isso por muito tempo. Aliás, quem começou o quê? De que estamos falando quando a presidente da República e seu partido são acusados de terem “começado”? Lembro-me sempre do mapa de saída das eleições de 2014: o azul do Brasil e o vermelho da Nova Cuba. O impeachment começou ali. Dois países não podem conviver no mesmo território. Um deles fatalmente é invasor. E aos invasores, a guerra. Fez-se a guerra. O começo mais recente foi ali.

Já muito se disse, mas repito: num regime presidencialista a eliminação de um presidente é uma violência constitucional. Constitucional, mas violência. No parlamentarismo, o primeiro ministro, chefe do governo, não é eleito. Seu partido saiu das eleições em condições de governar, e o primeiro ministro será aquele ou aquela que tiver a sorte, ou o azar, de estar na posição eventual de líder da maioria. Primeiro ministro não tem mandato. Pode ser convidado a ir para casa por qualquer motivo, o mais tolo que seja, desde que a favor desse motivo se forme uma maioria eventual. De ocasião. O motivo pode ser tão bobo quanto não gostar de mortadela.

“Não gostar”, no regime presidencialista, não serve. Não tem nada a ver. A violência constitucional de jogar no chão uma pessoa eleita por prazo determinado precisa de fundamentos tão firmes que mesmo quem seja cego para eles possa ver. Fundamentos, nesse caso, significa: fatos gravíssimos, crimes inequívocos, vinculáveis direta e pessoalmente ao, ou à, presidente. É preciso haver um nexo gritante de causalidade. Dito de maneira simples: o fato não precisa só ser criminoso — ele precisa ser prévio. Já estar lá. Ser descoberto. E aí, porque há fato e possível atribuição de autoria, instaurar-se um processo.

Essa estrutura necessária é uma das formas que restaram do antigo amor que tivemos à verdade, e, parece, está em extinção junto com as baleias e os micos-leão dourados. Em falta de nome melhor, proponho chamá-la de “modelo judiciário da verdade”. Funciona assim. Dá-se um fato estranho. Ele não é natural, como uma tsunami, nem casual, como um pé torcido na travessia de uma rua movimentada. Alguém o produziu. É preciso saber com certeza quem. E estabelecer um certíssimo vínculo causal entre o fato e o feito. E então, sim, avaliá-lo. Conhecer sua verdade. Nutrir-se do gosto bom da verdade.

Quando esse fato pode ser considerado um crime, instaura-se um processo. É no processo que se verifica o objeto e se demonstra, ou não, a autoria. Isso quer dizer: se estamos falando da verdade, o objeto precede o processo. Se não é do desejo de verdade que se trata, a vontade de processo antecede. Fica no ar, equilibrando-se em nada, à procura do que possa morder. E como o equilíbrio em nada é muito desconfortável, morde na primeira aparência de objeto que venha ao seu campo de visão. O desejo de processo, quando é prévio, não está interessado na verdade, tem gosto de sangue. Há quem goste. Quando se trata de política, é uma perversão. Já muito se disse que na guerra a primeira vítima é a verdade. Quando a guerra é política, a primeira vítima é a democracia. E a democracia é só o que se interpõe entre a convivência, desejada ou tolerada, não importa, e a incivilidade. Entre a legitimidade, que pode até ser contestada, e a usurpação inconteste. Quando o processo antecede o objeto, o resultado é sempre uma violência. E não há Constituição que a cubra e legitime.

Há muitíssimas coisas que vão mal no Brasil. Crimes a rodo, lançados na roda todos os dias. São fatos. Antecedem os processos que precisam ser abertos para apurá-los. Justificam esses processos. E as sanções que decorrem deles. Que são necessárias e bem-vindas. Mas o que temos visto é um processo babando à busca de um objeto qualquer. Encontrou um, pulou sobre ele. Era do passado, não servia. Pegou outro. A fome era grande, e o desejo de verdade, nenhum. Montou-se um processo retardado, frágil, que só passaria mesmo movido por uma maioria eventual. Como no parlamentarismo. E deu-se o bote.

Caiu-se de boca na mortadela. Francamente.

 
O GLOBO, 23 DE ABRIL DE 2016 

May 7, 2016

Ocupação



Flávia Oliveira


Os professores da rede estadual do Rio de Janeiro entraram em greve no início de março. Foi reação aos cortes orçamentários impostos pelo governador licenciado Luiz Fernando Pezão, diante do caixa minguado, que já não dá conta de salários, aposentadorias, pensões. Três semanas depois, alunos do Colégio Prefeito Mendes de Moraes, na Ilha do Governador, ocuparam a unidade, em ato para apoiar a paralisação dos docentes e cobrar melhorias na rede pública de ensino. Na sexta-feira imprensada no feriadão de 21 de abril, quando a ocupação completara um mês, estive na escola.

Foi o Movimento Mapa Educação que organizou a roda de conversa com os secundaristas. Fomos Átila Roque, diretor da Anistia Internacional Brasil, Maria Antonia Goulart, do Movimento Down, e eu. O encontro, inicialmente, duraria hora e meia. Em verdade, passou de três horas, tamanho o apetite dos alunos por ouvir e, principalmente, serem ouvidos. Naquela tarde de outono infernal num auditório sem refrigeração, ficou provado que ocupação, definitivamente, rima com educação.

Antes do debate, que reuniu 30 jovens, circulamos pela escola. As instalações são confortáveis, exceto pela piscina mal cuidada. Os estudantes isolaram secretaria, laboratório de ciências, biblioteca. No corredor principal, montaram uma bancada com livros doados pós-ocupação. Eles varrem, limpam, cozinham. Não houve danos ao patrimônio público.

Os alunos não isolaram a escola. Professores que não aderiram à greve entram e lecionam; cursos ali sediados foram mantidos. Voluntários têm orientado atividades extracurriculares (de plantio de horta a oficinas de grafite e hip-hop) indisponíveis no calendário regular. No feriadão, foi organizada a minimaratona de rodas de conversa sobre democracia, cidadania, direitos humanos. Superada a desconfiança inicial, o encontro se transformou numa conversa franca sobre temas que preocupam a juventude, mas a escola ignora.

Os estudantes perguntaram sobre racismo, integração de pessoas com deficiência, machismo, feminismo, família, acolhimento, ativismo, futuro, direitos, caminhos. Os jovens brasileiros carecem de políticas públicas; estão expostos às maiores taxas de desemprego; são sobrerrepresentados no sistema carcerário; registram os maiores índices de evasão escolar. Rapazes são as principais vítimas de homicídios; moças não são informadas sobre como evitar a gravidez na adolescência. É perturbador constatar o quanto o diálogo anda afastado do ambiente escolar, o quanto a construção de pontes entre autoridades, sociedade civil, professores e estudantes não parece ser prioridade do sistema educacional.

No mês de mobilização estudantil, mais de 70 escolas foram ocupadas no Estado do Rio. As seguidas demandas por atividades letivas resultaram na ação “Doe uma aula” (aqui o link: http://bit.ly/1VBT8rl). Trata-se de uma campanha virtual em que cidadãos de qualquer formação se inscrevem para transmitir conhecimentos aos alunos da rede pública. É iniciativa não apenas bem-vinda, mas com potencial de se estender para os tempos sem greve.

Na última segunda-feira, a professora Anick Elias, de Língua Portuguesa, postou numa rede social a experiência do aulão especial de redação para o Enem 2016 que deu no Colégio Estadual Dom Helder Câmara, no Engenho de Dentro, ocupado havia uma semana. Na saída, uma aluna uniformizada pediu que ela falasse com a mãe ao telefone.

“Alô, professora? Está tendo aula mesmo? Ela disse que está na escola, que está tendo aula, mas eu não acreditei. Aula com greve? Nunca vi isso”, indagou a mãe ressabiada. “Fique tranquila. Estamos em greve, mas está tendo aula. Os alunos estão cuidando da escola. Eles fazem a comida, cuidam da limpeza, organizam o horário das atividades e acertam as aulas com os professores”, respondeu Anick.

O diálogo seguiu: “Tudo o que a gente quer é ver o filho estudando. Se a senhora está dizendo, fico mais tranquila”, devolveu a mãe. “Fique tranquila. Mas fique orgulhosa também. Sua filha está aprendendo mais do que em qualquer ocasião. Venha vê-la, venha sentir orgulho de sua menina”, completou a mestre.

Ao fim do depoimento, Anick Elias escreveu que o episódio ensinou a professora, aluna e mãe o significado da expressão comunidade escolar. Dois dias depois, a Secretaria estadual de Educação anunciou a antecipação para maio das férias escolares marcadas para agosto, sob o argumento de preservar o calendário letivo.

Ontem, alunos do também ocupado Colégio Estadual André Maurois, na Gávea, informaram que, desde o início da semana, estão sem créditos no passe de ônibus. Sem o vale transporte, os estudantes não terão como chegar às escolas. As ocupações serão desidratadas. E as autoridades fluminenses perderão a oportunidade de compreender (e aplicar) o conceito de comunidade escolar. É pena.


O GLOBO, MAIO DE 2016

May 3, 2016

Uma ponte para o passado


Em meio à profunda crise pela qual passa o Brasil, Michel Temer e seu partido, o PMDB, preparam-se para assumir o Palácio do Planalto e já discutem a composição do novo governo. Fingem não ter qualquer responsabilidade pelo governo Dilma e apresentam-se como salvadores da pátria. Até parece que nunca estiveram no poder e com as mãos em ministérios estratégicos, como Agricultura e Energia, por tanto tempo.

O partido tem até um rascunho de plano de governo: o documento “Uma ponte para o futuro”, produzido em outubro. Esse programa difere em quase tudo do plano de governo apresentado em 2014 por Dilma Rousseff. E supera o plano da quase-ex-presidente em pelo menos um detalhe: a ausência total de menções a desenvolvimento sustentável.

Nas 19 páginas do documento peemedebista, as expressões “meio ambiente”, “mudança climática”, “energia renovável” e “baixo carbono” não aparecem. Nenhuma vez. A ausência de qualquer menção a compromissos com estas agendas estratégicas é um péssimo agouro.

O pacote de maldades do PMDB, disfarçado de agenda para “reconstruir o Estado”, traz, entre outras, medidas como desvinculação de gastos da União com saúde e educação, desindexação de salários (inclusive o mínimo), ajuste fiscal, privatizações e desregulamentação ampla, geral e quase irrestrita. É neste ponto que se insere a única e indireta menção ao meio ambiente na “Ponte para o futuro:” a proposta de aumento da “segurança jurídica (...) para a realização de investimentos, com ênfase nos licenciamentos ambientais”. Nem precisa ser tão bom entendedor para saber que a frase significa flexibilizar os licenciamentos.

Quem duvida pode olhar o documento-irmão da “Ponte para o futuro”, a Agenda Brasil, de Renan Calheiros, que cria a figura do licenciamento ambiental “a jato” para obras de “interesse nacional”. Nada mais absurdo e nada mais PMDB. No Brasil da Samarco, de Mariana e do Rio Doce, quanto pior, melhor.

Os dois documentos refletem uma concepção de meio ambiente do século 19, totalmente apartada do desenvolvimento. Ou que, quando aparece, é como um entrave, que precisa ser eliminado para o bem do “ambiente de negócios”. Tal visão é um risco e um desperdício.

Um risco porque não é mais possível falar em desenvolvimento no Brasil sem fatorar os impactos das mudanças climáticas. Só no ano passado, 28% dos municípios brasileiros decretaram estado de emergência ou calamidade por desastres naturais ligados ao clima mais hostil. Do planejamento energético à produção de alimentos, tudo precisa ser revisto. Nenhuma retomada do crescimento poderá ser sustentada se não for também sustentável.

Um desperdício porque existem oportunidades para superar a crise econômica em setores como o de biocombustíveis, energias renováveis e agropecuária de baixa emissão de carbono. Que o diga a indústria de energia eólica nacional, que gerou cem mil empregos no ano passado enquanto o país mergulhava numa recessão de 3,8%, e que prevê a geração de mais 50 mil novos postos de trabalho em 2016, mesmo com agravamento da crise econômica.

Os governantes e aspirantes a governantes do Brasil fariam bem em olhar para a China neste momento. O país asiático, que entende de crescimento como ninguém, acaba de publicar seu Plano Quinquenal apostando em quatro eixos: serviços, inovação, redução das desigualdades e sustentabilidade ambiental — gerar empregos de qualidade no setor de tecnologias limpas.

O PMDB é um partido que sempre gostou muito de construir grandes obras, iguais às investigadas na Lava-Jato. Mas as pontes que seus caciques ora propõem ao Brasil nos conduzem ao passado, não ao futuro.

Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima

O GLOBO, 3 DE MAIO DE 2016

April 29, 2016

A taça do mundo

ZÉLIA DUNCAN

Nasci em 64. Demorei um certo tempo, o tempo de ficar maiorzinha, pra entender por que, quando eu dizia o ano do meu nascimento, assim como quando digo que sou do signo de escorpião, algum adulto levantava as sobrancelhas e apertava a boca. Consigo ter lembranças nítidas da Copa de 70. Poucas, mas fortes. Morávamos numa vila em Niterói, os vizinhos se juntaram. Não me lembro dos gols, lembro-me das imensas bandeiras, de um verde que parecia muito escuro.

Lembro que às vezes um torcedor distraído e eufórico passava pela criança pequena que eu era e deixava aquela bandeira deslizar sua extensão no meu rosto. Era macia a bandeira, embora me assustasse um pouco aquele contato repentino, fogos estourando de perto, o grito seguido de abraços desajeitados daqueles adultos. Foi a primeira felicidade coletiva que conheci, até o comício das Diretas Já, muitas cores depois. Ninguém ali parecia descontextualizado, todos queriam muito a mesma coisa, todos obtiveram a tal coisa, a taça! A taça do mundo era nossa. Com o brasileiro não há quem possa, cantavam pelas ruas e TVs. O mundo parecia tão bom e tão nosso. Da alegria, das famílias, do bem, dos vizinhos que se amavam incondicionalmente, num tempo em que todos se juravam igualmente campeões. E a seleção brasileira no colo, no centro do coração do povo.

A palavra ditadura nunca foi confortável de se dizer e ouvir, segundo minha percepção já de adolescente. Da mesma leva que embalava o tricampeonato foi tirado o nome do filme “Pra frente, Brasil”, que relata uma história que acontecia no mesmo ano de 1970 (quando eu era aquela criança feliz e harmonizada). O roteiro traz um pacato trabalhador, que é confundido com um ativista político. A confusão lhe custou a vida e muito, muito sofrimento antes disso. O filme de Roberto Farias é de 1982. Foi a primeira vez que revisitei aquela sensação da bandeira macia no rosto. Naquele dia me ardeu na lembrança, me senti uma traidora-mirim da pátria. No filme, o personagem perde a vida, enquanto os gritos de gol superam seus gritos de socorro, bem como seu último suspiro.

Graças à música brasileira, pra onde me mudei, e aos álbuns de Chico, Caetano e Gil, principalmente, fui caindo em mim, e nesse tombo necessário, enxergando com mais realidade os fatos. Na verdade, são nossas histórias pessoais, somadas ao que estava ou não em nossas mamadeiras, que viram os ingredientes do nosso olhar e da nossa forma de perceber o mundo que queremos e podemos ver. É que algumas coisas, as que cerceiam a liberdade, reprimem, perseguem, torturam e tiram a vida de tantas pessoas, sempre achei que seriam unanimemente execradas, por suas consequências óbvias e maléficas, que já sentimos na pele. E que seríamos sempre bons vizinhos, porque nessas coisas que me pareciam e parecem fundamentais, estaríamos juntos, na mesma luta. Mas nada é bem assim.

“Quem é esta mulher, que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar…” Sempre sofri com essa canção, mesmo antes de entender que não se tratava de um menino que se afogou literalmente, mas que essa mulher era Zuzu Angel, cujo filho, assassinado pelos militares e desaparecido pra sempre, transformou sua vida em luto irremediável e numa batalha insana por respostas, que só terminou com sua própria morte, num “acidente” previsto por ela mesma e jamais admitido ou desvendado com a honestidade merecida.

Anda praticamente impossível afinar discursos, travar bons diálogos, ou aprender com as opiniões que divergem. Divergir, hoje, significa declarar guerra, abrir represas de ódio e relações de cimento. O mais impressionante é termos princípios tão diferentes e distantes quando o assunto é tortura e crime. Tudo bem que existam opiniões que nunca vão se encontrar, mas não estarmos juntos, de mãos dadas pra cuspir na desumanidade de quem evoca orgulhosamente o nome de um torturador criminoso, sádico, numa votação dentro de um Congresso Nacional é inacreditável. Já tínhamos engolido nomes de netos, filhos precocemente engravatados, babando por aparecer. Selfies inoportunas, rompantes desproporcionais, desrespeitos de toda ordem. O rei dos réus presidindo a sessão já deveria ser ilegal, e, eu pergunto: exaltar assassinos confessos na hora de um voto tão importante para todos não seria também algo que precisa de uma consequência? Esse mesmo sujeito, Jair Voldemort Bolsonaro, exalta também Eduardo Cunha, o cínico dos cínicos, esfrega na nossa cara esse poder sombrio que os une, o poder de tirar o pudor do armário. O pudor de ser uma criatura da lama virou orgulho de repente. Andamos tão enviesados moralmente que, no Brasil, até o diabo pede misericórdia e todos dizem amém

O Globo,  22 de abril de 2016

April 28, 2016

A segunda vitima

Verissimo

 

Era improvável que a Dilma usasse alguns dos poucos minutos da sua participação na conferência sobre o clima nas Nações Unidas para falar no golpe que ameaça seu governo, mas o pânico se instalou mesmo assim. Ela iria denegrir a pátria diante do mundo! Houve uma mobilização geral para contestar o ainda não dito. Os ministros do Supremo Celso de Mello e Gilmar Mendes se apressaram a declarar que, ao contrario do que a Dilma poderia dizer na ONU, o impeachment em curso estava longe de ser um golpe. Estranho açodamento de quem, cedo ou tarde, terá que julgar questionamentos jurídicos do que está ou não está acontecendo no Brasil. Mas não importava a inconfidência espontânea dos magistrados, importava a negação do que a Dilma diria. Antes que ela dissesse.

O Senado mandou o senador Aloysio Nunes atrás da Dilma, com a missão de rebater o que ela falasse, fosse o que fosse. E a Câmara, que não tinha dinheiro para pagar a passagem de uma testemunha de acusação do Eduardo Cunha na sua comissão de ética, subitamente encontrou uns trocados no bolso de outra calça e mandou dois deputados a Nova York, também para desmentir a Dilma. Não se sabe exatamente o que os dois fariam, se Dilma pronunciasse a palavra “golpe”. Pulariam das suas cadeiras e gritariam “mentira!”? Começariam a cantar o Hino Nacional para abafar a voz da traidora? Nunca saberemos. Dilma não disse o que todos temiam que ela dissesse. Depois, em particular e para jornalistas, falou em golpe à vontade. Mas na ONU, diante do mundo, frustrou a expectativa de todos. O pânico foi em vão. Os dois deputados brasileiros teriam sido barrados na entrada do plenário da ONU, mas isso eu não sei se é verdade. Teria sido um final adequado para a farsa.

Dizem que a primeira vítima de uma guerra é sempre a verdade. Se for assim, a segunda vítima é certamente o senso do ridículo.

O GLOBO, 28 DE ABRIL DE 2016

April 23, 2016

Olympia

Jean Carlos Novaes


Tenho amigos e clientes Engenheiros e Arquitetos. Conheço vários que vem em longa carreira na Prefeitura e nas faculdades do Rio. Alguns, certamente os melhores. A Geo-Rio tem uma equipe experiente, porém subutilizada. A maior parte das obras feitas pela Prefeitura do Rio, que tem um interesse político-econômico do Prefeito Eduardo Paes, são aprovadas ao arrepio da lei. Poderia citar aqui uma dezena delas. Tive a oportunidade de participar de algumas reuniões do Conselho Municipal de Meio Ambiente do Rio durante o procedimento de licenciamento da obra do Golf Olímpico, e o que vi lá foi o rolo compressor do Prefeito passando por cima de toda a equipe técnica, empurrando goela abaixo da população uma obra absolutamente imoral, ilegal e criminosa. 

Uma obra como a da ciclovia da Niemeyer, em primeiro lugar, não deveria ter sido sequer realizada, pois, os Costões Rochosos são considerados pela Constituição Estadual e Lei Orgânica como Área de Proteção Permanente, isto é, aquela área só poderia receber intervenções em hipóteses bem restritas. De qualquer maneira, qualquer obra a ser realizada numa área dessas deveria ser precedida de Estudos de Impacto Ambiental e de Audiências Públicas. A população tinha o direito constitucional de dizer se preferia uma ciclovia de 45 milhões ou outra obra, ou quem sabe melhorias nas escolas ou nos hospitais. Nos parece que num Estado e Cidade falidos como o nosso, essa ciclovia - que mais parece a reencarnação da Perimetral -, estava longe de ser uma prioridade, considerando-se a forma como foi concebida: sem estudos ou pareceres que indicassem a necessidade de uma obra desta envergadura naquele local. Criar espaços para a utilização de bicicletas é andar na direção correta. Entretanto, o que não dá para engolir é a utilização dos motivos corretos (criar ciclovias) para os fins errados: marketing político em ano eleitoral e a execução de obras grandiosas para camuflar superfaturamentos, que ordinariamente é o que ocorre. 


Assim sendo, considerando-se que as “obras olímpicas” foram levadas a toque de caixa, com um olho no calendário esportivo e o outro, num interesse maior no “faturamento” e nos “dividendos” que iam gerar para os “Parceiros” da administração da ‪#‎Rio2016‬, financiadores das campanhas de Eduardo Paes e de Pedro Paulo, me parece desfocado procurar responsabilidades apenas no âmbito da concepção ou execução de projetos, ainda que tudo aponte nessa direção. 


Quem “encomendou” essas obras e fez de tudo para aprová-las, passando por cima do devido processo legal, não estava nenhum pouco preocupado com detalhes tão óbvios como a onda do mar. Não é de hoje que várias vozes têm se levantado contra o “golpe” diário que nossas leis sofrem, contra a subtração de direitos, contra a falta de transparência e contra a “apatia” do Ministério Público Estadual e a complacência do Judiciário. Desta forma, reduzir responsabilidades ao nível puramente técnico em casos específicos não nos parece contribuir para o “aperfeiçoamento” do sistema de controle das obras públicas e, inevitavelmente, nos conduzirá a outros infortúnios como esse.

April 22, 2016

A salvação já começou

bernardo mello franco

 

Os petistas ainda não limparam as gavetas, mas o novo regime já começou a implantar sua doutrina de salvação nacional. O primeiro na fila de resgate é o deputado Eduardo Cunha. Depois de seis meses de manobras, ele está prestes a se livrar de vez do processo por quebra de decoro parlamentar. 

A nova fase da Operação Salva Cunha foi deflagrada no domingo. Enquanto o país assistia ao show do impeachment, aliados negociavam um ponto final às investigações contra o peemedebista. A ideia é premiá-lo com uma "anistia" pelo empenho para derrubar Dilma Rousseff. "Todo mundo sabe que sem Eduardo Cunha não teria impeachment", disse o deputado Paulinho da Força. "Ele merece ser anistiado", defendeu.

Horas depois de ser chamado de "gângster", "bandido", "canalha" e "ladrão" em rede nacional, o presidente da Câmara acordou fortalecido na segunda-feira. Ontem seu aliado Waldir Maranhão levou a pizza ao forno.

Com o Congresso esvaziado, escalou um colega para anunciar novas amarras ao Conselho de Ética. Mesmo que o processo vá adiante, Cunha já tem maioria para trocar a cassação por uma pena mais branda.

Para isso, conta com a cumplicidade da oposição, que parou de atacá-lo, e do velho aliado Michel Temer, prestes a se tornar usufrutuário da faixa presidencial. O Supremo continua a lavar as mãos. O pedido para afastar Cunha está na corte desde dezembro, sem data para ser julgado.

Em outra frente, os salvacionistas articulam um enterro para o processo de cassação da chapa Dilma-Temer no TSE. No dia 13, o ministro Gilmar Mendes ressuscitou a ideia de se

 

 

 

O golpe no exterior


Fernando Molica

É compreensível que a oposição tente jogar na conta da Dilma a responsabilidade pelas muitas reportagens e editoriais de importantes jornais, revistas e TVs internacionais que criticam o processo de impeachment. Mas chega a ser constrangedor que jornalistas brasileiros afirmem que colegas do New York Times, Wall Street Journal, Le Monde, Guardian, CNN e Economist (para citar apenas os principais) estejam sendo enganados pela presidente.

Chega-se a dizer que os repórteres desses veículos são desinformados, inocentes, incapazes de separar a realidade do discurso oficial. Engraçado é que as reportagens internacionais que eles publicaram sobre o Petrolão eram sempre destacadas por aqui e tomadas como exemplos de verdade absoluta. Parece que, agora, nossos coleguinhas internacionais ficaram idiotas e governistas.

Li vários artigos e reportagens que saíram nos últimos dias na imprensa internacional. Em linhas gerais, iam na mesma linha: Dilma não é acusada de roubo; o presidente da Câmara e centenas de deputados respondem a processos; o vice-presidente articula para chegar ao poder; a votação do impeachment foi constrangedora; o afastamento da presidente tem tudo para piorar a situação econômica do país. Uai, alguma novidade nisso tudo, tem alguma mentira aí? Vale citar que os colegas gringos não negaram a roubalheira na Petrobras, a corrupção no governo petista e as tais pedaladas fiscais.

Alguns de nossos colegas brasileiros afirmam que, ao falar em golpe, Dilma transforma o Brasil numa republiqueta, algo que afetará os investimentos estrangeiros, que aumenta a insegurança institucional. Bem, a sessão de domingo e os votos em nome de Deus, dos netos, da família e do torturador não ajudaram a melhorar nossa imagem, né? E, caramba, ao falar em fraude nas eleições, ao dizer que as urnas eletrônicas tinham sido manipuladas, o PSDB também contribuiu para nos atrelar aos países mais folclóricos da região. Até hoje a derrota nas urnas não foi deglutida, o que contribui para aumentar a instabilidade política.

Ao falar em "golpe", Dilma e seus aliados apenas reforçam o caráter político do processo de impeachment, uma característica ressaltada o tempo todo pela oposição - citada até mesmo para justificar a necessidade de o STF não entrar no mérito do eventual impedimento da presidente, afinal de contas, impeachment é um processo político (quantas vezes não ouvimos isso nas últimas semanas?). Enfim, se a oposição pode (e pode mesmo, é do jogo) tratar do tema politicamente, é razoável que o governo também possa.

É muita inocência também achar que os petistas não iriam lutar contra o impeachment, que iriam ficar quietos. Claro que fariam barulho. O governo é acusado de, ao resistir ao impeachment, manter o país na confusão por, pelo menos, mais seis meses (tempo do julgamento de Dilma pelo Senado), mas a oposição também contribuiu para o caos, principalmente depois da eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara, ajudou a piorar um governo que já era muito ruim. Enfim, o processo é político, os lados em disputa têm o direito de usar suas armas.

O DIA , 22 DE ABRIL DE 2016 

April 18, 2016

Nada para comemorar


O bolão do impeachment é a cara do Brasil que acha que tem algo a comemorar no dia de hoje
Dorrit Harazim

Aviso a quem festejar com arroubos cívicos o final da votação de hoje no Congresso, fadada a culminar com o triunfo de um dos brasis em confronto: nada há a comemorar. Este domingo 17 de abril em que o país assiste à etapa-chave do rito de impeachment da presidente Dilma Rousseff representa um dia de derrota nacional. Para todos, inclusive quem festejar até o sol raiar.

Um país que desde 1945 só conheceu quatro transmissões de faixa entre presidentes eleitos deveria ter tido mais zelo por suas instituições antes de permitir que elas sejam testadas com atalhos constitucionais.

Ao contrário do que ocorreu no impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, 24 anos atrás, as parcelas de responsabilidade por este domingo amargo acabarão sendo amargas para todos.
A começar para a disfuncional ocupante do Palácio do Planalto, encalacrada em pedaladas fiscais, responsável por uma economia em ruínas, abandonada por eleitores fieis até seis meses atrás, e respingada pelo lamaçal de corrupção do petrolão. Dilma decepcionou, mas manteve intacta sua honestidade pessoal.

As responsabilidades se estendem ao comando do PT, que até hoje não achou necessário tratar a militância com maturidade e com ela debater o mensalão e o petrolão. Já são duas as gerações de companheiros que aguardam em vão essa prestação de contas.

No momento a responsabilidade maior se concentra nos 513 bípedes que nos representam na Câmara dos Deputados, somados aos 81 com assento no Senado Federal.

Ali os instalamos através de eleições legislativas de representação proporcional, e dali exercerão seu poder de voto e veto ao mandato da presidente sitiada. Ao resto do país cabe o papel duplo de protagonista e plateia desse capítulo em aberto da História do país.

“Aqueles que abrem mão de liberdades essenciais para obter alguma pequena segurança temporária”, ensinou Benjamin Franklin séculos atrás, “não são merecedores nem de liberdade nem de segurança”.
Pois o Congresso Nacional está coalhado dessa espécie que nada merece. A começar pelo presidente da Casa e chefe da fila julgadora, Eduardo Cunha, cuja lista de crimes levantados pela Operação Lava-Jato empalidece as acusações arroladas para justificar o impeachment de Dilma Rousseff.
Segundo dados da Transparência Brasil citados por Simon Romero, do “New York Times”, 60% das excelências do Congresso têm no currículo acusações de corrupção, fraude eleitoral, sequestro, homicídio ou desmatamento ilegal.

Um terço da tribo legislativa também tem a biografia entrelaçada às delações premiadas da Lava-Jato e talvez sonhe em ver tudo apagado na euforia de um admirável mundo novo — o Brasil pós-Dilma.
Certamente nunca ouviu as palavras do americano — “Aqueles que abrem mão de liberdades essenciais...”

A cena que melhor retrata o déficit cívico de Brasília e ofende os milhões de brasileiros angustiados com o descarrilamento da vida nacional foi produzida esta semana pelo Corregedor da Câmara, deputado Carlos Manato, e seu companheiro de partido Paulinho da Força, ambos do Solidariedade.
Foi uma cena que pode ter parecido inofensiva diante do drama maior, ou bem humorada em meio à tensão política. “Não passou de brincadeira”, disseram seus autores. Nem eles nem os demais congressistas que dela participaram sequer perceberam o quanto ela foi insultuosa, quase obscena.
Sem qualquer constrangimento Manato e Paulinho, ambos favoráveis ao afastamento da presidente da República, iniciaram um bolão entre os colegas sobre o placar da votação do impeachment. Cada aposta custava R$ 100.

Manato, cuja campanha foi abastecida em parte com dinheiro de empresas envolvidas na Lava-Jato, tem por função, como corregedor parlamentar, “manter o decoro, ordem e disciplina no âmbito da Câmara dos Deputados”. Esta semana, ele circulou pelos corredores da Casa com uma pasta que continha a lista e o dinheiro arrecadado.

Quanto ao deputado Paulo Pereira da Silva, um dos principais aliados de Eduardo Cunha, o ar rarefeito de Brasília deve tê-lo feito esquecer o real valor de R$ 100 para um trabalhador no resto do país.

O bolão do impeachment é a cara do Brasil que acha que tem algo a comemorar no dia de hoje.

O GLOBO, 17 DE ABRIL DE 2016 

April 17, 2016

Não haverá mais conciliação

vladimir safatle

 

"Quem não é criminoso enfrenta com dignidade o devido processo legal. O delinquente faz de tudo para escapar do julgamento. Apenas o delinquente esbraveja, grita". De todas as pérolas do inesgotável Compêndio de Bolso do Autoritarismo Nacional que ilumina boa parte das opiniões correntes nos dias atuais, estas afirmações emitidas na semana passada pelo sr. Eros Grau, ex-ministro do STF, merecem ser gravadas em mármore pela sua clareza. Ao lê-las, foi difícil não lembrar imediatamente dos versos do poeta Torquato Neto: "Leve um homem e um boi ao matadouro. Aquele que gritar é o homem, mesmo que seja o boi".

Uma das especificidades da democracia é ser o regime político capaz de reconhecer que a crítica das leis e de processos legais injustos não é sinal de "delinquência". A democracia admite que a configuração atual das leis pode comportar injustiças e que, por isto, o direito não é, nunca foi, nem nunca será a expressão imanente do que tem legitimidade. Ao contrário do que acreditam alguns, não foram as leis que criaram os homens, mas os homens que criaram as leis. Eles as criaram em contextos específicos nos quais se fez valer o sistema de interesse hegemônico à época. Otto von Bismarck, que tinha ao menos a virtude da honestidade, lembrava: "Leis são como salsichas. Melhor não saber como são feitas". Por isto, é correto dizer: não são as leis que nos unem, mas a certeza de termos caminhos no interior da vida social para fazer valer a justiça. Quando tais caminhos desaparecem, não há mais união possível.

Como se não bastasse, a democracia reconhece, entre outros, o caráter falível da aplicação da lei por pessoas muitas vezes movidas por interesses particulares. Ela nos lembra que só mesmo aqueles animados por uma passividade bovina confundiriam a justiça não apenas com o regime atual das leis, mas com a interpretação atual fornecida pela opinião dos juízes.

No entanto, a afirmação do sr. Grau tem a vantagem de explicitar qual deve ser o regime de imposição da autoridade daqui em diante. Quem questionar o processo legal, por mais que tal processo seja distorcido, interessado, com mais furos do que um queijo suíço, só poderá ser visto como delinquente. Pois com o fim da Nova República através de um golpe farsesco travestido de impeachment, não será mais possível esperar que toda a população brasileira tenha um campo mínimo de conciliação no qual encontraríamos procedimentos que todos aceitem. O golpe quebrará de vez o pacto, dividindo o país clara e definitivamente em dois. A partir de então, valerá apenas a força.

Contra isto, há de se dizer com clareza: não há razão alguma para se submeter a um governo que será ilegítimo, fruto de um "processo legal" que está mais para uma verdadeira comédia do Pai Ubu. Pois esse processo de impeachment tem, ao menos, três desvios que destroem totalmente sua legitimidade.

Primeiro, um dos princípios elementares da justiça é: "quem tem conflitos de interesse não pode julgar". 31 deputados indiciados na Comissão de Impeachment, lutando por sua sobrevivência, e um presidente da Câmara que é réu, tendo apresentado a proposta de impeachment para retaliar o partido da presidente em sua decisão de votar pela sua investigação no Conselho de Ética (sic), não podem julgar nada em lugar nenhum do mundo, apenas no Brasil. Segundo, o argumento das "pedaladas fiscais" não é suficiente para um impeachment, pois não posso afastar um presidente (a mais brutal de todas as penas) por práticas admitidas anteriormente e, principalmente, praticadas atualmente por outros membros do poder executivo sem maiores consequências. Por fim, não é possível afastar a presidente e empossar um senhor que assinou, na condição de presidente em exercício, decretos similares aos que levaram a presidente a perder o cargo.

Em 2013, em uma impressionante demonstração de vitalidade popular, o país deixou claro que procurava reinventar sua democracia e seu modelo de desenvolvimento econômico. Três anos depois, a casta política nacional, com sua capacidade ímpar de sobrevivência, foi capaz de produzir uma espécie de "contrarrevolução" na qual ela se conserva, chama para o governo aqueles que perderam todas as últimas eleições de que participaram e fornece, em troca, o sacrifício de seu sócio mais novo para saciar a ira de uma parte da população. Imaginar que todo o país se unirá na celebração desta farsa é não entender nada da história que se abre a partir de agora.

FOLHA DE SÃO PAULO, 1 DE ABRIL DE 2016




 

April 16, 2016

O governo Temer não existirá

vladimir safatle

 

A partir de segunda-feira (18), o Brasil não terá mais governo. Na democracia, o que diferencia um governo do mero exercício da força é o respeito a uma espécie de pacto tácito no qual setores antagônicos da população aceitam encaminhar seus antagonismos e dissensos para uma esfera política. Esta esfera política compromete todos, entre outras coisas, a aceitar o fato mínimo de que governos eleitos em eleições livres não serão derrubados por nada parecido a golpes de Estado.

É claro que há vários que dirão que o impeachment atual não é golpe, já que é saída constitucional. Nada mais previsível que golpe não ser chamado de golpe em um país no qual ditadura não é chamada de ditadura e violência não é chamada de violência. No entanto, um impeachment sem crime, até segunda ordem, não está na Constituição. Um impeachment no qual o "crime" imputado à presidenta é uma prática corrente de manobra fiscal feita por todos os governantes sem maiores consequências, sejam presidentes ou governadores, é golpe. Um impeachment cujo processo é comandado por um réu que toda a população entende ser um "delinquente" (como disse o procurador-geral da República) lutando para sobreviver à sua própria cassação é golpe. Um impeachment tramado por um vice-presidente que cometeu as mesmas práticas que levaram ao afastamento da presidenta não é apenas golpe, mas golpe tosco e primário.

Temer agora quer se apresentar como líder de um governo de "salvação nacional". Ele deveria começar por responder quem irá salvar o povo brasileiro dos seus "salvadores". Seu partido, uma verdadeira associação de oligarquias locais corruptas, é o maior responsável pela miséria política da Nova República, envolvendo-se até o pescoço nos piores casos de corrupção destes últimos anos, obrigando o país a paralisar todo avanço institucional que pudesse representar riscos aos seus interesses locais. Partido formado por "salvadores" do porte de Eduardo Cunha, Renan Calheiros, José Sarney, Sérgio Cabral e, principalmente, o próprio Temer. Pois nunca na história da República brasileira houve um vice-presidente que conspirasse de maneira tão aberta e cínica para derrubar o próprio presidente que o elegeu. Em qualquer país do mundo, um político que tivesse "vazado" o discurso no qual evidencia seu papel de chefe de conspiração seria execrado publicamente como uma figura acostumada à lógica das sombras. No Brasil de canais de televisão de longo histórico golpista, ele é elevado à condição de grande enxadrista do poder.

Mas não havia outra chance para tal associação de oligarcas conspiradores. Afinal, eles sabem muito bem que nunca chegariam ao poder pela via das eleições. Esta Folha publicou pesquisas no último domingo que demonstravam como, se a eleição fosse hoje, Lula, apesar de tudo o que ocorreu nos últimos meses, estaria à frente em vários cenários, Marina em outros. O eixo central da oposição golpista, a saber, o PSDB, não estaria sequer no segundo turno. Temer, que deveria também ser objeto de impeachment para 58% da população, oscilaria entre fantásticos 1% e 2%. Estes senhores, que serão encaminhados ao poder a partir de segunda-feira, têm medo de eleições pois perderam todas desde o início do século. Há de se perguntar, caso fiquem no poder, o que farão quando perceberem que poderão perder também as eleições de 2018.

Os que querem comandar o país a partir de segunda-feira aproveitam-se do fato de o país estar em uma divisão sem volta. Eles governarão jogando uma parte da população contra a outra para que todos esqueçamos que, na verdade, são eles a própria casta política corrompida contra a qual todos lutamos.

Diante da crise de um governo Dilma moribundo, outras saídas, como eleições gerais, eram possíveis. Elas poderiam reconstituir um pacto mínimo de encaminhamento de antagonismos. Mas apelar ao poder instituinte não passa pela cabeça de quem sempre sonhou em alcançar o poder por usurpação.

Diante da nova realidade que se anuncia, só resta insistir que simplesmente não há mais pacto no interior da sociedade brasileira e que nada nos obriga à submissão a um governo ilegítimo. Nosso caminho é a insubmissão a este falso governo, até que ele caia. Este governo deve cair e todos os que realmente se indignam com a corrupção e o desmando devem lutar sem trégua, a partir de segunda-feira, para que o governo caia e para que o poder volte às mãos da população brasileira. Àqueles que estranham que um professor de universidade pública pregue a insubmissão, que fiquem com as palavras de Condorcet: "A verdadeira educação faz cidadãos indóceis e difíceis de governar". Chega de farsa.

FOLHA DE SÃO PAULO, 15 DE ABRIL DE 2016 

 

April 15, 2016

Temer: o não dito


Flávia Oliveira


Um discurso pode ser medido tanto pelo que exibe quanto pelo que esconde

O vice-presidente Michel Temer, açodado pela perspectiva de assumir a nação, teve o áudio em que se manifestaria ao país como virtual substituto de Dilma Rousseff tornado público na mesma segunda-feira em que deputados se preparavam para votar o relatório pró-impeachment na comissão especial da Câmara. Temer alegou que o vazamento fora acidental, mas confirmou que os quase 14 minutos de gravação expressavam seus pensamentos sobre um futuro governo. As prioridades apresentadas no curto e apressado pronunciamento sugerem uma agenda liberal, no sentido conservador do termo. Mas o que ficou de fora também diz muito sobre o que o Brasil pode esperar de uma gestão, até aqui, vice.

Um discurso pode ser medido tanto pelo que exibe quanto pelo que esconde. O áudio de Temer foi interpretado mais pelo gesto do que pelo conteúdo. Não faltou quem comparasse o ato ao do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, então candidato a prefeito de São Paulo, que na véspera do pleito posou para fotos sentado na cadeira de mandatário. A eleição acabou vencida por Jânio Quadros, que antes de ocupar o assento desinfetou-o, numa provocação ao adversário.
Esta colunista prefere associar Temer a outro episódio igualmente famoso, batizado de Lei Ricupero. Nos meses seguintes ao lançamento do Plano Real, em 1994, o então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco teve uma conversa com um jornalista captada por antenas parabólicas antes da transmissão oficial da entrevista. No bate-papo informal, Rubens Ricupero declarava: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde”. Acabou deixando o cargo quatro dias depois.

A sociedade brasileira há de decidir se foram boas ou ruins as omissões de Temer. O certo é que não foram poucas. O vice-presidente — lembrou na primeira hora o mestre Janio de Freitas — não tratou da Operação Lava-Jato no pronunciamento. Tampouco mencionou a palavra corrupção. Foi um par de ausências indigestas num país que, faz dois anos, se lança contra sucessivos escândalos de promiscuidade público-privada e toma as ruas a cobrar decência e repudiar malfeitos dos políticos.
Temer também deixou de citar a estabilidade fiscal como meta de governo. Passou batido pelo tema que teria dado argumentos técnico e jurídico ao processo de impedimento de Dilma Rousseff. Não foram as pedaladas fiscais e seus danos às contas públicas ponto central da petição assinada pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal? Faria sentido, então, que o virtual sucessor da presidente se comprometesse com a austeridade na gestão orçamentária. Em vez disso, o vice sinalizou para governadores afogados em crises financeiras a renegociação das dívidas com a União: “Há estudos referentes à eventual anistia e revisão dos juros sobre a dívida das partes federadas. Nós vamos levar isso adiante”.

No áudio em que delineou seu “governo de salvação nacional”, Temer se dirigiu a parlamentares de todos os partidos, ao capital privado local e estrangeiro, a beneficiários de programas sociais. Aos trabalhadores avisou que dará andamento a reformas que incentivem a harmonia com os empregadores, referência sutil à flexibilização da legislação. Por três vezes, falou em sacrifícios ao povo brasileiro. Prometeu recuperar investimentos e demarcou como áreas prioritárias para o Estado a segurança, a saúde e a educação, nessa ordem.

Temer não fez referência ao tripé câmbio flutuante, metas de inflação e estabilidade fiscal, que faz a alegria do mercado financeiro na gestão macroeconômica. Dada a ênfase concedida ao setor privado no áudio, não é errado inferir que o compromisso com a ortodoxia está subentendido. Afinal, são referências presentes no documento “Ponte para o futuro”, divulgado em fins de 2015 como Bíblia do PMDB para a economia. Ainda assim, a única menção à inflação — outro incômodo para os brasileiros, principalmente os mais pobres — foi rasa. O vice atribuiu a carestia ao “descrédito do país, que leva à ausência do crescimento, do desenvolvimento”
.
Se presidente for, o vice prometeu manter Bolsa Família, Pronatec, ProUni e Fies. Nada disse sobre Minha Casa, Minha Vida, programa habitacional do governo do qual é o primeiro na linha sucessória há seis anos. Tampouco sobre territórios indígenas. Não tratou do sistema de cotas em universidades ou concursos públicos. Não reservou uma palavra à agenda de direitos civis de negros, mulheres, LGBTs. Temer, em seu discurso, ignorou reivindicações caras à sociedade civil organizada, historicamente identificado com a agenda petista. São omissões que podem tanto significar mera desatenção, como também esconder a aproximação de um futuro governo com os setores mais conservadores do Congresso Nacional. O não dito preocupa.

 O GLOBO, 14 DE ABRIL DE 2016

April 14, 2016

Golpe brasileiro ameaça democracia


MARK WEISBROT 

A presidente Dilma Rousseff está ameaçada de impeachment, mas não há evidências que a vinculem a qualquer esquema de corrupção. Em vez disso, ela é acusada de manipular as contas públicas, algo que presidentes anteriores já haviam feito.

Para traçar uma analogia com os Estados Unidos, quando os republicanos se negaram a elevar o teto da dívida, em 2013, a administração Obama recorreu a vários truques de contabilidade para adiar o prazo final no qual se alcançaria o limite. Ninguém se incomodou com isso.

A campanha do impeachment, que o governo descreveu corretamente como golpe, é um esforço da elite brasileira tradicional para obter por outros meios aquilo que não conseguiu conquistar nas urnas nos últimos anos.

O ex-presidente Lula é acusado de receber dinheiro de empresas investigadas por corrupção para fazer discursos e reformar um imóvel que ele afirma não ser dele. Mesmo que as acusações sejam verdadeiras, não há prova de vínculo com corrupção.

O juiz Sergio Moro, entretanto, lidera uma bem executada campanha de difamação de Lula. O magistrado teve que pedir desculpas ao Supremo Tribunal Federal por ter divulgado grampos telefônicos de conversas entre Lula e Dilma, Lula e seu advogado e até mesmo entre a mulher de Lula e os filhos deles.

É claro que o Partido dos Trabalhadores não estaria vulnerável a essa tentativa de golpe se a economia não estivesse em recessão profunda. Mas também a esse respeito a mídia está claramente equivocada, defendendo mais cortes nos gastos públicos e mais juros altos
.
O Brasil precisa, pelo contrário, de um estímulo sério para fazer sua economia pegar no tranco. O principal obstáculo à recuperação é o poder dos grandes bancos.

O Brasil está pagando juros de quase 7% de seu PIB sobre a dívida pública, mais que a Grécia no auge de sua crise. Mas o Brasil não tem crise de dívida nem apresenta qualquer risco significativo de moratória. Seus juros usurários são o resultado do poder político de seus próprios bancos, que hoje desfrutam um "spread" recorde de 34% entre suas taxas de empréstimos contraídos e concedidos.
A simples redução dos juros sobre a dívida pública para o nível de alguns anos atrás criaria condições para um estímulo importante.

O governo dos EUA vem guardando silêncio sobre esta tentativa de golpe, mas há poucas dúvidas quanto à sua posição. Ele sempre apoiou golpes contra governos de esquerda no hemisfério, incluindo, apenas no século 21, o Paraguai em 2012, Haiti em 2004, Honduras em 2009 e Venezuela em 2002.
O presidente Obama foi à Argentina para derramar-se em elogios ao novo governo de direita,
pró-EUA, e a administração reverteu sua política anterior de bloqueio de empréstimos multilaterais ao país. E hoje, no Brasil, a oposição é dominada por políticos favoráveis a Washington.

Seria mais uma coisa lamentável se o Brasil perdesse boa parte de sua soberania nacional, além de sua democracia, com este golpe sórdido.

MARK WEISBROT é codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e Política, em Washington, e presidente da Just Foreign Policy, organização norte-americana especializada em política externa 

FOLHA DE SÃO PAULO, 14 DE ABRIL DE 2016 

A ilusão


Luis Fernando Verissimo

 

Gosto de imaginar a História como uma velha e pachorrenta senhora que tem o que nenhum de nós tem: tempo para pensar nas coisas e para julgar o que aconteceu com a sabedoria — bem, com a sabedoria das velhas senhoras. Nós vivemos atrás de um contexto maior que explique tudo mas estamos sempre esbarrando nos limites da nossa compreensão, nos perdendo nas paixões do momento presente. Nos falta a distância do momento. Nos falta a virtude madura da isenção. Enfim, nos falta tudo o que a História tem de sobra.

Uma das vantagens de pensar na História como uma pessoa é que podemos ampliar a fantasia e imaginá-la como uma interlocutora, misteriosamente acessível para um papo.

— Vamos fazer de conta que eu viajei no tempo e a encontrei nesta mesa de bar.

— A História não tem faz de conta, meu filho. A História é sempre real, doa a quem doer.

— Mas a gente vive ouvindo falar de revisões históricas...

— As revisões são a História se repensando, não se desmentindo. O que você quer?

— Eu queria falara com a senhora sobre o Brasil de 2016.

— Brasil, Brasil...

— PT. Lula. Impeachment.

— Ah, sim. Me lembrei agora. Faz tanto tempo...

— O que significou tudo aquilo?

— Foi o fim de uma ilusão. Pelo menos foi assim que eu cataloguei.

— Foi o fim da ilusão petista de mudar o Brasil?

— Mais, mais. Foi o fim da ilusão que qualquer governo com pretensões sociais poderia conviver, em qualquer lugar do mundo, com os donos do dinheiro e uma plutocracia conservadora, sem que cedo ou tarde houvesse um conflito, e uma tentativa de aniquilamento da discrepância. Um governo para os pobres, mais do que um incômodo político para o conservadorismo dominante, era um mau exemplo, uma ameaça inadmissível para a fortaleza do poder real. Era preciso acabar com a ameaça e jogar sal em cima. Era isso que estava acontecendo.

Um pouco surpreso com a eloquência da História, pensei em perguntar qual seria o resultado do impeachment. Me contive. Também não ousei pedir que ela consultasse seus arquivo e me dissesse se o Eduardo Cunha seria presidente do Brasil.

Eu não queria ouvir a resposta.

O GLOBO, 14 DE ABRIL DE 2016 

 

A fala do trono de Temer


elio gaspari




Corrupção. Faltou não só a palavra, faltou qualquer referência ao tema. Pode ter sido esquecimento, o que não é pouca coisa, pois nesse caso Michel Temer seria o único brasileiro capaz de falar durante 14 minutos sobre a crise política, pedindo um governo de "salvação nacional", sem qualquer referência às iniciativas que feriram a oligarquia política e econômica brasileira.

Uma coisa é o destino da doutora Dilma. Bem outra são a Lava Jato e suas subsidiárias que estão encurralando oligarcas. É insultuoso supor que uma pessoa queira defenestrar a doutora e o PT para travar a Lava Jato, mas quem quer freá-la pode achar que uma troca é boa ideia. É necessário reconhecer que a cena do deputado Eduardo Cunha e do senador Romero Jucá de mãos dadas e braços erguidos comemorando o rompimento do PMDB com o Planalto mostra para onde vão os interesses de uma banda da oligarquia. Cunha é réu de um processo no Supremo Tribunal e Jucá está sendo investigado pelo Ministério Público.

Se houvesse qualquer referência ao combate à corrupção no seu discurso de posse presuntiva, Temer mostraria coragem e disposição de incomodar correligionários. Esqueceu-se, tudo bem, mas não deve pedir aos ouvintes que não percebam. Como se sabe desde que a palavra impeachment entrou no vocabulário politico, tirar Dilma é uma coisa, quem botar no lugar é outra.

Desconte-se a trapalhada que tornou público o áudio de Temer. Ele informou que recolheu-se "há mais de um mês". Seria um exemplo de recato se tivesse amparo nos fatos. O vice-presidente gosta de palavras raras e construções solenes. Só isso o leva a falar em "senadores da melhor cepa e sabedoria". Ou em "estudar isso com detença". O doutor parece competir com o governador Geraldo Alckmin na produção de platitudes. Coisas como "não quero que isto fique em palavras vazias", "temos absoluta convicção", "a classe política unida com o povo", "o Estado não pode tudo fazer". Finalmente: "temos que preparar o país do futuro". O tucano paulista acrescentaria: "com firmeza e determinação".

Os 14 minutos de Temer não embutiram uma plataforma, mostraram um palanque. Diante da ruína produzida pela doutora Dilma, antecipa "sacrifícios". Oferece intenções e diálogo. Num ponto, porém, ele se deteve:

"Sei, por exemplo, no tópico da Federação, da grande dificuldade dos Estados e municípios nos dias atuais. Há estudos referentes à eventual anistia ou perdão de uma parte das dívidas e até uma revisão dos juros que são pagos pelas unidades federadas. Vamos levar isso adiante."

Decifrando a promessa para governadores encalacrados e prefeitos falidos: "Vamos levar isso adiante". (Faltou definir "isso".)

Decifrando os números: Estados e municípios querem repactuar os contratos de R$ 402 bilhões de dívidas já renegociadas com a União. Neste ano horrível, a simples revisão dos juros pode tirar R$ 27 bilhões da União. (O Supremo Tribunal concedeu uma liminar que poderá beneficiar todos os governadores e prefeitos, mas a sentença ainda depende do pleno da Corte.)

Governo de "salvação nacional". Salvação de quem?

O GLOBO, 13 DE ABRIL DE 2016 

ilustração ANDRÉ MELLO