October 25, 2015

TV de cachorro

TATI BERNARDI

Quem aqui se lembra como era a vida há cinco anos? A gente acordava, lia o jornal, trabalhava, faltava na academia, via TV, fazia ou não umas coisas (se era namorado recente, talvez a gente transasse; se era marido, talvez a gente lesse; se era nada, talvez a gente saísse) e dormia. Ah, sim, e entremeando esses momentos, a gente se alimentava.

Hoje inverteu tudo. Agora o importante é comer como as celebridades fitness do Instagram ou como os chefs renomados dos reality shows e, nos intervalos, quiçá, trabalhar, respirar, transar, ler e dormir. Hoje eu já acordo com uma espécie de carrasco dentro do meu cérebro: sem pressa, sem glúten, sem farinha, sem açúcar, sem lactose, sem hormônios, sem agrotóxicos, sem sódio, sem sal nenhum, sem gordura trans, sem gordura nenhuma, sem transgênicos, sem parabeno (ops, esse é na maquiagem), sem o animal ter sofrido, sentada, sentindo o sabor, sementes. Às vezes tudo isso me dá tanta tristeza e preguiça que apenas bebo água. Ainda vão inventar a água orgânica. Putz, acabei de procurar água orgânica no Google e... tarde demais!

Quem aqui se lembra como era a televisão há cinco anos? Artistas faziam novelas, seriados, plásticas. Agora eles fazem moqueca de redução de escalope de avestruz cru, salpicão de feijão tropeiro reeditado a partir da espuma de feijão carioca que na verdade é um tofu com algas e penne ao limone, mas a massa do penne é feita de lula que é feita de nozes e o limão é abacaxi revisitado. Todo mundo tem um programa que ensina a cozinhar. Cozinhar hoje é o novo "atacar de DJ". Não foi escalado pra próxima das nove? Não conseguiu nem um papel como amiga da alma penada da novela espírita das seis? Então mostra pra gente a sua versão da panqueca de camarão! Nem tudo está perdido!

Sábado fui almoçar no restaurante de um chef que admiro muito. Um lugar que eu sempre ia e era quase um segredinho meu. Fui avisada logo na entrada por uma produtora: "Estamos documentando a vida dele para um reality e todo mundo que vem aqui pode aparecer no programa". Eu só queria comer. O sucesso é muito brega. Sim, tem que ganhar dinheiro, tem que aproveitar, eu faria o mesmo, mas, ainda assim, o sucesso continua sendo muito brega. Fui comer no restaurante ao lado.

Onde foi parar aquele iogurte que a gente bebia, de manhã, enquanto enfiava uma roupa porque estava atrasada? Tenho a impressão que se eu comer "qualquer coisa" hoje, só pra "resolver a fome", pandinhas bebês morrerão de depressão. Aquele almoço "vou ali na esquina engolir um troço" já já vira crime, homicídio doloso "não tinha a intenção de matar, mas machucou muita gente proferindo aquelas palavras". Hoje a gente vê fotos da Xuxa com crianças, trajando um maiô PP e saia transparente e acha estranho. Que doideira esses anos 80! O que vamos achar, daqui a 20 anos, de um reality que estressa crianças de oito anos para que elas saibam fazer pato trufado?

Que minuto foi esse em que todas as pessoas e programas de TV e revistas e sites e redes sociais decidiram que comida é a coisa mais importante do mundo? Por que vocês vão pra Roma, Paris, Buenos Aires, sei lá, qualquer cidade linda, e só tiram fotos de pratos e cardápios e da cara de espertões que vocês fazem porque estão em algum lugar que o guia Michelin mandou? E os guias que falam sobre pracinhas, pessoas, parques, museus e arquitetura?

FOLHA DE SÃO PAULO, 23 DE OUTUBRO DE 2015

October 21, 2015

Quando se perde a esperança: o terceiro levante palestino pode ser o definitivo


Na maioria dos casos, os novos atentados chamados "terroristas" pelo governo são cometidos por mulheres e adolescentes palestinos que usam pedras, chaves de fenda ou facas de cozinha. Foi o caso de uma mãe de tres filhos e mestranda de 30 anos abatida a tiros em Afula, na Galiléia, ao atacar um soldado.

Em resposta, judeus se armam e atacam aleatoriamente palestinos ou árabes israelenses pelas ruas. Em Kiryat Ata, perto de Haija, um judeu esfaqueou outro por julgar tratar-se de um árabe. Até a esquerda entrou em pânico: Isaac Herzog, líder trabalhista, foi o primeiro a exigir o bloqueio e toque de recolher nos bairros palestinos, logo posto em vigor.

Benjamim Netanyahu fez o Shin Bet revirar a Cisjordânia em busca de bodes expiatórios, mas essa revolta difere das anteriores, principalmente, por não ter liderança, coordenação ou metas. São atos de violência aleatórios, cometidos por mulheres e homens jovens sem filiação política que não explicam seus motivos. Sao indivíduos fartos e sem esperança, contra os quais tanto o Exército quanto a diplomacia são inúteis. De pouco adianta, também, endurecer as penas contra quem se dispõe a jogar a vida fora para expressar sua indignação.

Se não é uma repetição de 1987 e 2000, pode ser mais grave e difícil de enfrentar. Para Aser Schecter, do jornal israelense Haaretz, "não é uma intifada, é a cara do Israel binacional". Se o país se recusar a abrir mão dos territórios ocupados para uma Palestina soberana onde árabes sejam cidadãos livres, é esse o futuro à sua espera.

CARTA CAPITAL - A SEMANA
 edição de 18 de outubro de 2015

October 14, 2015

Cabelo loiro não pode!


Às vezes, juntar coisas como elas aparecem na superfície é um bom mapa para entender forças que atravessam uma questão

Imagine, caro leitor, viver num lugar onde seu filho fosse proibido de pintar o próprio cabelo de loiro. Imagine que essa proibição, ao ser transgredida, pudesse levá-lo a sanções que incluem a possibilidade de morte. Não estamos falando de ficção despótica. Isso acontece hoje, perto de nossos olhos. E tem profunda relação conosco.

Em recentes conversas com jovens de algumas comunidades da periferia do Rio de Janeiro, ao perguntarmos sobre sua percepção da violência em seu entorno, a resposta imediata era de que havia pouca violência. Entretanto, numa pergunta posterior as respostas foram intrigantes: “Aqui pode tudo, só não pode pintar o cabelo de loiro, o pessoal que trabalha tomando conta não deixa.” E uma outra: “Teve um dia em que apareceu um corpo de um moleque todo cortado ali no campinho de futebol, mas isso faz tempo, e o cara tinha aprontado”. A ideia de violência estava totalmente descolada dos acontecimentos que descreviam e ligada à presença ou ausência de tiroteios e furtos. Ao mesmo tempo, numa outra ponta, não é preciso abordar ninguém numa pesquisa com rigor teórico ou em entrevistas documentais para escutar narrativas de senso comum de quem frequenta regiões nobres sobre o tema. Basta acompanhar as redes sociais que flagramos depoimentos carregados de certeza dizendo que o Rio está muito violento com flechas apontadas para culpados decretados: “São esses moleques que não querem nada da vida, sabem muito bem o caminho certo mas não querem”.

Essas duas pontas da mesma questão são pistas para a compreensão de como estamos elegendo a juventude pobre como o perigo da vida urbana. Generalizando, ao depositar nela a responsabilidade de todos os acontecimentos no imaginário e ausentando do debate a negação de direitos sofrida por eles. Esse modo de narrar é difundido por parte da opinião pública. Ao se apostar na espetacularização de determinados eventos que envolvem essa juventude — chamar pequenos furtos de arrastão, por exemplo — cria-se uma vertigem semanal que injeta mais combustível na escolha desses jovens como foco do problema e promove pouca compreensão para um possível pacto de ações que poderiam mudar o rumo dos acontecimentos. E ainda: Quando os jornais estampam na manchete on-line ou impressa “jovens de classe média presos por tráfico de drogas”, ao dar uma notícia sobre jovens brancos, e “traficantes são mortos ao reagirem a prisão”, ao falar de jovens negros envolvidos com o mesmo tipo de atividade, que ao serem presos correm risco de execução longe de qualquer legalidade, está contribuindo para esse imaginário que destina a um determinado CEP da cidade a falta de direitos, a ausência de legalidade, a exclusão e a morte. E mais: ao deixar de noticiar boas práticas de trabalho neste campo nos noticiários, deixa crer que não era um parceiro real pelas mudanças sociais.

O leitor pode dizer que exagero, juntando coisas distintas, e de graus de relevância completamente diferentes. Mas, às vezes, juntar coisas como elas aparecem na superfície é um bom mapa para entender forças que atravessam uma questão. O que quero na coluna de hoje é demonstrar a atual escalada da perigosa escolha do jovem pobre e negro como inimigo número um da vida urbana. Da milícia que proíbe pintar o cabelo ao aparato policial que é mobilizado para ser um seletor de frequência de uma região da cidade até a naturalização com as repetitivas notícias sobre a presença de adolescentes no tráfico de drogas, teimamos em deixar de ver as causas, naturalizamos e aceitamos apenas uma resposta militar para isso.

Isso não significa que nada foi feito. Tivemos avanços nos últimos anos, narrados por esta coluna, inclusive. Políticas públicas, iniciativas e projetos da sociedade civil que apostaram no reconhecimento e fomento das práticas desta juventude e na sua potência de invenção criadora alcançaram espaços importantes. Sobretudo, a cultura, a comunicação, o empreendedorismo, o ativismo, trabalhos de base comunitária e de presença da arte em escolas promoveram bons exemplos com resultados. Todavia, os bons exemplos não são mais suficientes para a dimensão da questão. Precisamos de algo que gere impacto e não apenas resultados. Isso deve ser guiado e articulado pelos governos sem interrupção por conta de fim de mandatos. Porém, devemos nos concentrar num pacto público — não é apenas tarefa dos governos — que coloque como eixo central do desenvolvimento das cidades a garantia de direitos para essa juventude. Deve ser ousado, inclusive, considerando a possibilidade de perdão para aqueles jovens envolvidos em pequenos furtos — sem risco de morte — e a aposta em seus potenciais.

Os jovens populares já deram muitas contribuições para nossas cidades. A cultura juvenil urbana e popular já inventou soluções urbanas (mototáxis) e novos campos da arte (passinho do menor). Não podemos desistir de retribuir e ofertar caminhos de garantia de direitos. Não podemos aceitar a generalização, ela é a base para perversidades de controle territorial. Longe de você?

MARCUS FAUSTINI

O Globo, 14 de outubro de 2015 

October 13, 2015

O mesmo é um vácuo


Nada mudou porque não aprendemos nada

Costumo dizer por aí que a única surpresa garantida dos dias de hoje é o shuffle da sua lista de músicas. De resto, nos assola a sensação de que as tragédias atuais são a colheita do sempre. Escrevo esta coluna há alguns meses, e o tema da cidade como espaço falido por mortes e crimes retorna não como um recalcado, mas como a evidência escancarada de uma sangria aberta há décadas e nunca curada. Seja nos ônibus em Copacabana, seja nas ruas da Maré, nos insurgimos pontualmente contra o nosso eterno extermínio particular. Parece que esquecemos para nos aliviar daquilo que não tem remédio nem nunca terá. Esquecer não para mudar, mas para continuar o mesmo.

Em que momento perdemos o senso de tudo que nos conecta em uma cidade? Quando deixamos de ser a “cidade porosa”, para usar o título do excelente (e tomara que logo traduzido) livro do pesquisador Bruno Carvalho sobre a Cidade Nova e sua diversidade cultural? Quando nos separamos em lados que não somam, quando deixamos um fosso ser criado “naturalmente” por cada um de nós? O arquivo das coisas não nos dá o luxo de esquecermos, de portarmos a “ignorância ensandecida”, de acharmos que o OUTRO sempre é o culpado. Isso já virou uma espécie de doença social, em todos nós, sem limites de classe, de cor, de bairros, de idade. Está lá, escancarado nos textos desde o século XIX, que essa mesma sociedade criou as condições para a inequidade, o crime, as mortes gratuitas e anônimas dos que menos têm, o ódio dos que menos têm pelos que mais têm (e vice-versa), a urbanização da desigualdade. Nada mais nos colará em um desejo comum de vida urbana se não soubermos o absurdo que nos fundou, seja cobiça, luxúria, tristeza, seja casa grande e senzala, seja o céu, o sol e o mar, seja tiro, porrada e bomba. Não há a menor possibilidade de transferirmos para quem quer que seja nossa cota histórica. Não há mais possibilidade da imprensa simplesmente “dar notícias” na busca de um público que tem medo porque medo vende bem. Somos representados como bichos em tocas, acuados por dentro (nossas paranoias pessoais) e com pânico do lá fora (nossas paranoias sociais).

Abra o arquivo, ele hoje é digital, está aí na sua frente, dê uns cliques, aperte os cintos e bem vindo ao reino da memória: em 19 de outubro de 1992, após os primeiros eventos que foram batizados de “arrastões”, eis algumas manchetes dos principais jornais do Rio: “Arrastões levam pavor às praias” (“O Dia”), “Arrastões invadem a orla da Zona Sul (“Jornal do Brasil”), “Arrastões aterrorizam as praias da Zona Sul” (“O Globo”). No dia seguinte, seguiram manchetes ainda parecidas com as de hoje: “Zona Sul vai reagir aos arrastões” (“O Fluminense”) ou “Zona Sul declara guerra ao arrastão” (“O Dia”). Nesse mesmo dia, o “Jornal do Brasil” publica, por fim, a notícia que nos arremessa no abismo de um tempo imóvel e patético: “Moradores culpam as linhas [de ônibus]”. Sim, as mesmas linhas, a mesma massa juvenil sob olhares de condenação por parte dos moradores, nenhuma solução para o transporte público de massa além de ônibus lotados. Aliás, há sim uma solução que muitos esperam há 23 anos: não circular mais na Zona Sul nenhum ônibus vindo da Zona Norte. Muros, grades, câmeras, duras, constrangimentos, violência generalizada. Nada mudou porque não aprendemos nada. O que adiantaram as manchetes? No que colaboraram com o imaginário já classista e divisor do carioca? Pois estamos aqui, no mesmo lugar.

Imaginemos: o rapaz preto e pobre nascido na data dos primeiros arrastões (23 anos atrás) pode viver com a cidade os mesmos erros e permanecer personagem das mesmas manchetes. Décadas em que as crises são as mesmas, as reações violentas são as mesmas, as respostas dos governos são as mesmas, o descaso com a juventude é o mesmo, as falas públicas são as mesmas (agora, porém, amplificadas pelas redes sociais). Porque permanecemos os mesmos, de todos os lados — dos que agridem e dos que são agredidos, dos que roubam e dos que são roubados, dos que são presos pela cor da pele e dos que são vítimas por andarem pelas ruas de seu bairro. Intolerância que acumula violência, que alimenta paranoia que gera intolerância e por aí segue o curso obtuso das coisas.

Textos como este parecem às vezes ecoarem no nada, porque a primeira reação do leitor que não lê é condenar qualquer voz que pede um pouco de sanidade — aqui, no caso, simplesmente prestar atenção ao fato de que para os mesmos problemas temos, há décadas, as mesmas respostas erradas. Não se trata de “apoiar bandidos”, muito menos de proteger quem deva ser culpado pelos seus atos perante uma justiça com igualdade de direitos (para todos, e não de forma seletiva). Trata-se simplesmente de gritar mais uma vez o óbvio: uma cidade é feita por quem a habita, em todas as suas áreas. Não por quem a idealiza em um vácuo cujo peso da história vergonhosa entre nós já deveria ter expandido seu vazio para novas formas de vida.

 Fred Coelho

 
O GLOBO, 23 DE SETEMBRO DE 2015 

October 12, 2015

Gabi

Arthur Dapieve

Como tantos filhos cujos pais se separaram, eu e minha irmã ganhamos um animal de estimação. Meus tios viram filhotes de cachorro à venda numa barraca da Domingos Ferreira e, de noite, nos levaram à casa do feirante para escolher um. Da pequena matilha, uma menina meio pinscher meio fox terrier se insinuou para nós. Foi batizada de Kelly e tornou-se nossa amorosa companheira por bons 15 anos.

Pouco tempo depois, minha irmã viu um gatinho tigrado abandonado debaixo de um carro na Bolívar. Entre as lendas que cercam a convivência entre cães e gatos e o risco real que o bichinho corria em meio aos pneus de Copacabana, ela decidiu resgatá-lo. Depois de certa confusão sobre seu sexo, durante a qual o chamamos de Bruna, foi batizado de Bozó. A ideia era achar quem o adotasse. Kelly o adotou. Viveu 17 anos. 

Quando Bozó morreu, eu já não morava com ele. Estava casado, noutro bairro, e acompanhei pelo telefone a minha mãe e a minha irmã tomarem a difícil decisão de sacrificá-lo. Depois da Kelly, morria o meu outro melhor amigo. Jurei que não queria mais ter animais para não ter de passar de novo pela imensa dor de perdê-los. Diante da perspectiva das tristezas, eu renunciava às alegrias. A metade vazia do copo, sempre.

O fato de minha primeira mulher ter medo de animais ajudou-me a manter essa decisão. A alegria da chegada de nossa filha fez-me esquecer completamente o assunto. Porém, tal qual o casamento dos meus pais, o meu também acabou. E nem a solidão da solteirice e da paternidade à distância me fizeram voltar atrás. Animais, nunca mais.

Comecei a namorar. A moça decidiu dar uma gatinha às filhas. Comprou uma siamesa e batizou-a de Gabi. Não deu muito certo no propósito de fazer companhia às meninas. Parece que a raça não se entende com crianças pequenas. Gabi chegou-se foi à adulta. Fosse como fosse, eram as quatro mulheres lá, em Icaraí. Eu cá, em Laranjeiras.

Um dia, porém, eu e minha namorada decidimos nos casar. Vieram ela, as duas filhas e, naturalmente, a Gabi, então com pouco mais de dois anos. Sou quase um Francisco de Assis. Sempre tive facilidade com animais. Não foi difícil para a Gabi me adotar. Lembrei-me comovido do Bozó e de por que os egípcios veneravam os gatos. “Você paparica demais essa gata!”, brincava minha mulher, que também a adorava.
  
A contemplação da Gabi tornou-se a nossa religião particular. A inteligência, a graça, os olhos muito azuis, a máscara e as luvas pretas... Sua personalidade forte — que as nossas três pequenas detratoras chamavam de “maus bofes” — não nos deixava considerar a sério a hipótese de acrescentar outra divindade peluda ao nosso templo. No entanto, quando a Gabi já tinha quase oito anos, uma amiga precisou achar lares para uma ninhada. Receosos, adotamos um tigrado ruivo e magricela, que chamei de Tigre.

Gabi não só aceitou o Tigre como deixou que ele sugasse suas tetas sem leite. Aberta a porteira, com o passar dos anos, adotamos o Gaudí, gordinho branco de pelo longo, focinho cor de coco queimado, e acolhemos o Bartók, gordinho preto com manchas brancas na barriga e nas axilas. Minha mulher praticamente transformou em hobby as fotografias dos quatro gatos. Eu pensava em Picasso. Els Quatre Gats.

De manhã cedo, um a um, vinham nos dar bom-dia na cama que tomávamos emprestada deles. Se alguma vez na vida eu tive a consciência de estar sendo feliz foi nessas manhãs. Contudo, diferentemente da felicidade pura e simples, da qual se goza e ponto, a consciência de estar sendo feliz arrasta a percepção de que a felicidade acaba. Passei os últimos anos assombrado por essa inevitabilidade biológica.

Aquela nossa felicidade matinal acabou há quase dois meses. Gabi morreu, perto de fazer 19 anos. Teve uma vida longa e, tirando a derradeira semana, uma vida boa. Foi elegante até o final. Partiu quando pegamos no sono. Desde então, não há um único dia em que eu não chore de saudade. Ela estaria aqui, ronronando no meu colo, enquanto escrevo a coluna (uma outra coluna, claro). Ou ali, dormindo na poltrona. No máximo, na porta do escritório, miando para entrar. Ela era a minha companheira de trabalho.

Pergunto-me qual o propósito de um texto assim, texto que não me sentia pronto para escrever até a última sexta, quando li a “cachorreira” Zélia Duncan prantear a morte de Doralice, siamesa de 16 anos. A Cora Rónai e o Artur Xexéo também já homenagearam seus entes queridos e peludos. Noutras folhas, lembro-me de uma crônica antológica do Carlos Heitor Cony, chorando sua cadela Mila, de 13 anos. Trata-se quase de um gênero literário, uma narrativa de encontro, encantamento e despedida.

Ocorre-me que para esse luto sem velório, obituário ou anúncio fúnebre, para essa dor terrível, mas que afeta diretamente apenas um indivíduo, um casal, no máximo uma família, para essa saudade sem expressão social, um texto assim é o modo de comunicar à praça: ei, a Gabi existiu, eu a amava, e fomos muito felizes juntos. 

 Arthur Dapieve Foto: O Globo

O GLOBO, 9 DE OUTUBRO DE 2015

October 9, 2015

O inimigo mora ao lado


Mônica Bergamo
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O inimigo mora ao lado!

O desentendimento entre um casal de professores universitários e um agrônomo em Perdizes que sempre se deram bem vai parar na delegacia. Motivo: os dois votam no PT. E ele tem aversão ao PT
Walquíria Leão Rego tem 70 anos e mora há três décadas no mesmo edifício, numa rua pacata do bairro de Perdizes. A socióloga, que dá aulas de teoria da cidadania na Unicamp, vive no 4º andar e sempre se deu bem com seus vizinhos de baixo: o engenheiro agrônomo José Luiz Garcia, 67, a mulher dele, Marília, e a filha do casal, Ana Luisa. A jovem já deu aulas de inglês para Walquíria. A professora recebeu Marília para comer bolo e tomar chá.

Walquíria já foi filiada ao PT. Hoje é "o que se pode chamar de eleitora fiel". O vizinho nunca gostou da legenda. Mas a diferença não era um problema. "Jamais nos desrespeitaram", diz ela.
O clima de boa vizinhança começou a mudar há cerca de um ano, na época das eleições. Walquíria e o marido, Rubem Leão do Rego, colocaram um adesivo de Dilma no carro, um New Fiesta vermelho. Garcia, que guarda o automóvel na garagem justamente ao lado, colocou o seu: "Fora, Dilma. E leva o PT junto". "Esse adesivo já é um sinal de selvageria. Achei sintomático", diz ela.

Dilma foi reeleita e o ambiente no prédio de Perdizes azedou de vez. O engenheiro, inconformado com o resultado das eleições, que acredita terem sido fraudadas, começou a escrever dizeres contra o PT em cartazes do elevador. Um deles, da Sabesp, alertava sobre a falta de água: "A seca resiste". Garcia escreveu: "O PT também". No dia seguinte, o troco de um morador: "Desinformado".

"Então escrevi: 'Lava Jato', diz o engenheiro. "Aí eles ficaram loucos", segue, referindo-se ao casal petista. Repreendido pela síndica, Garcia desistiu do elevador. "Criei um jornalzinho. Todos os dias eu escrevia notícias numa folha de papel: 'José Dirceu, herói do PT, preso pela segunda vez', 'Lula, lobista dos empreiteiros'. Eles [os vizinhos] tinham que ler. Foram ficando tiriricas. Mas não podiam dizer nada porque o papel estava colado dentro do meu carro."

A tensão foi aumentando. Em 8 de março, dia do primeiro panelaço contra Dilma, o engenheiro "não se contentou em bater panelas", diz Walquíria. "Ele passou minutos gritando, num grau de agressividade, de ódio: 'Petistas filhos da puta, ladrões, corruptos'", conta Walquíria. "O que eu fiz foi gritar como todo mundo", diz Garcia.

Em 16 de agosto, o engenheiro estava com febre e não foi à passeata contra o governo na avenida Paulista. Viu tudo pela TV e só saiu de casa para comprar remédio. Voltou da farmácia "com aquela adrenalina", diz. "E entrei no prédio gritando: 'Fora PT! Fora PT!'." O elevador abriu e dele saiu Rubem, que disse: "O senhor me respeite". Garcia diz que respondeu: "Respeito é para quem merece. O PT não merece".

Walquíria diz que ele, na verdade, gritava: "Eu não respeito petista ladrão, corrupto, filho da puta". "Meu marido ficou lívido", afirma.

Há duas semanas, a filha dela, Daniela, foi visitar os pais e se encontrou com Garcia na garagem do prédio. "Ela tem muito medo dele. E ficou olhando na tentativa de prever algum gesto. Ele vira e diz: 'O que está olhando, sua filha da puta?'. E mostra o dedo [médio] para ela. A Daniela pega o celular, anda na direção dele e diz: 'Faz de novo que eu quero te fotografar!'. Ele dá ré com o carro, ela tem que recuar."

A briga foi parar na delegacia. Daniela prestou queixa dizendo que teve que "se deslocar para uma pilastra para evitar que José Luiz a atropelasse". No fim do depoimento, um investigador, Arnaldo, se aproximou. Armado, disse: "Vocês vão me desculpar. Mas o PT é mesmo o partido mais corrupto da República". Walquíria reagiu: "O senhor é um agente do Estado". E ele: "E qual é o problema de eu achar que a Dilma é uma filha da puta?".

Garcia também foi ao 23º DP, no mesmo dia que Daniela, para dar a sua versão dos fatos. E diz que o casal agora vai ter que provar as acusações que fez. "Disseram até que eu quis matar a filha deles. Pegam um 'negocinho' e transformam num 'negocião'. É o modus operandi do PT." Ele mostra à coluna um vídeo com imagens da garagem e afirma que não colocou a vida de Daniela em risco.
Relatado em blogs, o desentendimento despertou solidariedade de professores e até do Ministério do Desenvolvimento Social ao casal –Walquíria é autora de um livro sobre o impacto do Bolsa Família na vida das mulheres que recebem o benefício.

"Ele não sabe nada de nossas vidas. Nunca se preocupou em saber por que votamos no PT, por que 54 milhões de pessoas votam no partido", diz Walquíria, que afirma se identificar com o projeto social da legenda, de redução das desigualdades. "Na cabeça dele, as pessoas são ignorantes ou ladras e por isso votam no PT."

"Quando um vizinho defende um governo cleptocrata e fobiocrata, ou ele faz parte da cleptocracia ou ele é um idiota total", diz Garcia. "Não tem acordo. Eu vou passar por ele todos os dias e dizer: 'Bom dia, seu petista'?. Acabou o diálogo. Não temos outra opção, não temos como reagir. A maioria silenciosa não aguenta mais. Só que agora não é mais silenciosa."

Ele acredita que a Operação Lava Jato deveria convencer qualquer eleitor a não votar mais no PT. "Eu digo, poxa, será que isso não é suficiente? São evidências, gente. Não são invencionices do [juiz Sergio] Moro. Se o cara não se convenceu até agora, fica difícil. Aí eu já questiono o discernimento dele."

O engenheiro diz que leu na internet a repercussão da briga que protagoniza. "Dizem que é preciso dar um basta [no ódio político]. Eu concordo. Agora, para que seja dado um basta, eles precisam parar de roubar, né?"

Ele se formou em agronomia pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do RJ) e depois estudou nos EUA. Hoje, dá consultorias e cuida de terras que tem em Minas Gerais. Defende a agricultura orgânica. Diz que foi de esquerda na juventude.

"Se depois da queda do Muro de Berlim o cara não se dá conta de que o esquerdismo é uma coisa furada, é burrice. Usar camiseta do Che Guevara, você vai me desculpar! Com todos os livros mostrando que ele era um assassino sanguinário?"

Acredita, no entanto, que a esquerda está mais forte do que nunca. "Falam de recrudescimento da direita. Mas o que está havendo é um recrudescimento do socialismo, com a China rivalizando, a Rússia. E na América Latina tem esse pessoalzinho da Bolívia, da Venezuela."
Para ele, o Brasil não teve uma ditadura entre 1964 e 1985, e sim um "governo militar". "Nós aqui tivemos uma ditadura tropical. Tinha até Congresso e partido político. A ditadura brasileira avacalhou." Não defende, no entanto, a volta dos militares. "Mesmo porque eles acabaram. Agora são um bando comandado por um devasso, o Jaques Wagner [ministro da Defesa, de saída do cargo]. Na internet tem até fotografia dele em baile de Carnaval com duas mulheres se beijando. Isso pra mim é devassidão."

Ele viu a imagem de Wagner na internet. "Ela [a web] possibilitou que as pessoas se informassem. Hoje você tem 'zilhões' de informações para processar. Você vê as coisas acontecendo na televisão, na internet. É evidente que isso aí gera reação."

"Essa raiva... Raiva, não, indignação.... Como é que você separa indignação de raiva? Aí vamos entrar numa questão de semântica", diz ele para explicar o que sente.

A "raiva" surgiu com o mensalão. "Ali foi o começo." Antes disso, já era um crítico do programa Bolsa Família. "Você já viajou pelo Brasil? Você não arruma ninguém mais para trabalhar. Ninguém quer pegar no pesado. Essa não é a receita para um país que quer se desenvolver –criar essa legião de pessoas que têm aversão ao trabalho. O Brasil está ingovernável, numa situação pré-falimentar", diz ele, encerrando a entrevista e pedindo para não ser fotografado.

Entusiasta do Bolsa Família, a professora Walquíria credita à imprensa o fenômeno do que chama de "ódio político". "Este foi o clima que a mídia criou no país."

Ela diz que, por isso, agora vive com medo do vizinho. "Eu não sei o que uma pessoa com esse grau de ódio político é capaz de fazer", afirma.

Há dez dias, a professora voltou ao 23º DP com o advogado Marco Aurélio de Carvalho e o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) para pedir investigação criminal. O policial que xingou Dilma Rousseff foi chamado por seus chefes e obrigado a se desculpar.

Já o engenheiro Garcia permanece convicto de que suas atitudes foram corretas. "Se eles querem que eu peça desculpas, eles não vão conseguir. Eu não sou culpado. Eu jamais vou pedir desculpas, entendeu? Jamais.

FOLHA DE SÃO PAULO, 4 DE OUTUBRO DE 2015

A ameaça das armas

Nossa lei de controle de armas, admirada e copiada no exterior, tem origem popular, como a da Ficha Limpa

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