December 19, 2010

The making of Trout Mask Replica



Critically acclaimed as Van Vliet's magnum opus, Trout Mask Replica was released in June 1969 on Frank Zappa's newly formed Straight Records label. By this time, the Magic Band had enlisted bassist Mark Boston, a friend of French and Harkleroad. Van Vliet had also begun assigning nicknames to his band members, so Harkleroad became "Zoot Horn Rollo", and Boston became "Rockette Morton", while John French assumed the name "Drumbo", and Jeff Cotton became "Antennae Jimmy Semens". Van Vliet's cousin Victor Hayden, "The Mascara Snake", performed as a bass clarinetist Van Vliet wanted the whole band to "live" the Trout Mask Replica album. The group rehearsed Van Vliet's difficult compositions for eight months, living communally in a small rented house in the Woodland Hills suburb of Los Angeles. Van Vliet implemented his vision by asserting complete artistic and emotional domination of his musicians. At various times one or another of the group members was put "in the barrel," with Van Vliet berating him continually, sometimes for days, until the musician collapsed in tears or in total submission to Van Vliet. Drummer John French described the situation as "cultlike  and a visiting friend said "the environment in that house was positively Manson-esque." Their material circumstances also were dire. With no income other than welfare and contributions from relatives, the group survived on a bare subsistence diet, and were even arrested for shoplifting food (with Zappa bailing them out). French has recalled living on no more than a small cup of beans a day for a month. A visitor described their appearance as "cadaverous" and said that "they all looked in poor health." Band members were restricted from leaving the house and practiced for 14 or more hours a day.

Physical assaults were encouraged at times, along with verbal degradation. Beefheart spoke of studying texts on brainwashing at a public library at about this time, and appeared to be applying brainwashing techniques to his bandmembers: sleep deprivation, food deprivation, constant negative reinforcement, and rewarding bandmembers when they attacked each other or competed with each other. At one point Cotton ran from the house and escaped for a few weeks, during which time Alex Snouffer filled in for him and helped to work up "Ant Man Bee". French, who had thrown a metal cymbal at Cotton, ran after him yelling that he too wanted to come. Cotton later returned to the house with French's mother, who took him away for a few weeks, however he later felt compelled to return as did Cotton. Mark Boston at one point hid clothes in a field across the street, planning his own getaway.

John French's 2010 book Through the Eyes of Magic describes some of the "talks" which were initiated by his actions such as being heard playing a Frank Zappa drum part ("The Blimp (mousetrapreplica)") in his drumming shed, and not having finished drum parts as quickly as Beefheart would have liked. French writes of being punched by band members, thrown into walls, kicked, punched in the face by Beefheart hard enough to draw blood, being attacked with a sharp broomstick, and eventually of Beefheart threatening to throw him out of an upper-floor window. He admits complicity in similarly attacking his bandmates during "talks" aimed at them. In the end, after the album's recording, French was ejected from the band by Beefheart throwing him down a set of stairs with violence, telling him to "Take a walk, man" after not responding in a desired manner to a request to "play a strawberry" on the drums. Beefheart installed a hanger-on, Jeff Bruschelle, as the new Drumbo (playing on French's drumset) and did not include French's name anywhere on the album credits as a player or arranger.

from the Wikipedia

Reação ao WikiLeaks põe internet em risco



Ronaldo Lemos

SÓ SE FALA em WikiLeaks. Faz sentido. O assunto é fascinante e cheio de paradoxos. O site virou emblema das ‘novas mídias’. Mas, sem o apoio da ‘velha mídia’, sua importância seria muito menor.

É curioso ver como os jornais ficam orgulhosos em fazer parceria com o site. Na semana passada, ‘O Globo’ colocava na capa que havia se tornado ‘um dos sete jornais a publicar o conteúdo do WikiLeaks’.

Com isso, o site virou um divisor de águas: há os jornais que estão com ele e os que não estão. É um exercício de poder extraordinário: chamou toda a imprensa a tomar posição e tornou-se impossível ignorá-lo.
Muita gente tem falado que o site mostra como a internet é ‘incontrolável’. Minha visão é diferente.

A reação ao WikiLeaks periga acelerar a transformação da internet de rede aberta em rede fechada e controlável. As forças para que isso aconteça ficaram muito mais fortes depois dos vazamentos.

Vale lembrar que todos os endereços da internet são controlados por uma entidade norte-americana chamada ICANN. Até agora, ela tem mantido uma posição de neutralidade, dizendo que não intervirá.
O problema é que a ICANN é ligada ao Departamento de Comércio dos EUA. Se a coisa apertar, é fácil para o governo americano exercer sua influência.

Além disso, leis cabulosas para controlar a internet estão vindo por aí. Um exemplo é o projeto COICA, que avança rápido. Sob o pretexto de evitar violações dos direitos autorais, ele dá poderes ao governo americano de retirar qualquer site do ar, sem aviso prévio.

Mesmo sites fora dos EUA (como os sites brasileiros que terminam em ‘.com.br’, ‘.org.br’, ‘.net.br’ e assim por diante) ficariam sujeitos à lei americana.

Sob o pretexto de proteger direitos autorais, o governo americano passaria a ter controle total sobre a rede.
O WikiLeaks veio mudar a regra do jogo. Mas a reação a ele pode acabar mudando a internet para pior.

Folha, 13 de dezembro de 2010


December 16, 2010

Segurança do Rio apura desvio de armas e drogas

DIANA BRITO
HUDSON CORREA

A cúpula da Segurança do Rio investiga desvios de dinheiro e armas do tráfico de drogas, além de facilitação de fuga de traficantes, supostamente informados com antecedência por policiais sobre as operações.

Com 1.600 homens envolvidos na ação, as polícias Militar e Civil não relataram nenhuma apreensão de dinheiro nem apresentaram números e a descrição exata das armas apreendidas.

Um dos indícios de irregularidade é que o Exército, com 800 militares, relatou a apreensão de “US$ 50 mil mais R$ 20 mil” no sábado, totalizando R$ 106 mil.

Mas, na versão da 22ª Delegacia de Polícia, na Penha, a quantia apreendida pelo Exército foi menor: de US$ 27 mil mais R$ 29 mil (total de R$ 75,1 mil) . Procurado de novo, o Comando Militar do Leste não quis comentar.

A Polícia Federal, que participou com 300 policiais, informava ter apreendido R$ 39.850 de um traficante.
Uma autoridade que pediu para não ter o seu nome divulgado disse que está havendo no Alemão “uma verdadeira caça ao tesouro”, o que está deixando vários policiais indignados.

Suspeita-se que o dinheiro que deveria ter sido apreendido tenha saído da favela em mochilas de policiais, enquanto carros de polícia eram usados para levar pertences como televisores.

Contrariados por presenciar esses furtos, integrantes do Bope (Batalhão de Operações Especiais) atiravam nas telas de TVs que estavam sendo levadas, disse uma fonte à Folha.

Sobre as armas, uma pessoa envolvida na operação disse que a PF apreendeu em menos ações mais armas, de maior poderio e mais novas.
Ontem, a secretaria disse que apreendeu 135 armas -velhas, em sua maioria.
Só em dois carros do traficante Negão, a PF achou oito fuzis, sendo dois AK 47, um AR-15 e um FAL 762, além de oito pistolas e um revólver. Todos em bom estado.
O Bope ainda entregou mais 11 armas apreendidas, incluindo dois fuzis. 30, à PF, enquanto poderia entregar o armamente à Polícia Civil.

Além da "caça ao tesouro", há indícios de que, enquanto o cerco ao Alemão estava sendo montado, policiais, em troca de dinheiro, teriam avisado traficantes sobre a ação permitindo a fuga dos líderes.

Em agosto, a Folha revelou que a Secretaria de Segurança investiga a existência de uma “caixinha” do tráfico da Rocinha para pagar policiais que dão informações sobre ações contra o tráfico.

Folha, dezembro de 2010




 

December 14, 2010

Tudo isto é COMPLEXO


Ao percorrer Alemão e Penha, Folha ouve relatos de violência policial e de alívio após o sumiço dos traficantes do morro


PLÍNIO FRAGA
DO RIO

Tudo isto é Complexo:

1) policiais conhecidos como Xavier, Birrô, The Flash e Júnior do Ipase, do 16º BPM, andam por ruas da favela da Vila Cruzeiro com a intenção de instalar uma nova milícia;
2) porcos estão comendo corpos de traficantes mortos pela polícia na mata da serra da Misericórdia;
3) traficantes, que estavam cercados pela polícia, fugiram de madrugada por escadaria escondida em beco que desemboca no número 270 da estrada do Itararé;
4) traficantes cercados desde sexta-feira pagaram R$ 1 milhão por cabeça para saírem de favela dentro de blindados da polícia;
5) moradores agora dizem que, sem traficantes, podem mandar os filhos à escola;
6) a polícia de fato assumiu o território antes controlado pelo tráfico, apreendeu grande parte do estoque de drogas e armas e assim aniquilou o que antes era o quartel general do CV.

Complexo é a palavra que abarca região de dezenas de favelas e define o emaranhado de acusações e problemas que ganharam voz livre desde domingo. Foi quando a policia e as Forças Armadas concluíram a expulsão de traficantes que dos Complexos do Alemão e da Penha.

A Folha passou cinco horas ouvindo moradores e circulando nas favelas da Penha e do Alemão.



Uma menina de 14 anos disse ter sido constrangida e agredida verbalmente por PMs por causa da tatuagem.
Tosca -feita com agulha e sumo da castanha de caju, que queima em vez de desenhar- diz apenas "D. V.".
Ela conta que os policiais chamaram-na de "vagabunda" e de "puta de traficante" por ter tatuado o que leram como "CV". Ela diz que não: são apenas as iniciais do nome do namorado ("D.") e de seu próprio ("V").

Se houve os que fugiram, os relatos sobre os que morreram sem que os corpos tenham aparecido se repetem. "Uma mãe me contou que foi pegar o corpo do filho lá no alto da mata. Viu outros dois corpos que estavam sendo comidos pelos porcos", diz Celso de Sousa Campos, o Binha, líder comunitário.

Moradores também elencam milicianos do conjunto habitacional Ipase, no bairro vizinho de Vicente de Carvalho, que já circulam pela Vila Cruzeiro, para tentar estabelecer o domínio da milícia. Dão nomes: Xavier, Birrô, The Flash e Júnior do Ipase. Como o policiamento quase todo foi deslocado para o vizinho Alemão, temem que esteja sendo preparado o terreno para a implantação da milícia. "Igualzinho no filme "Tropa de Elite 2'", assinala um morador.

X-9 EM AÇÃO

Não há mais vestígios de traficantes ou sequer ameaça de tiroteios. Vê-se grupos de policiais trabalhando. Muitos orientados por informantes, conhecidos como X-9. Normalmente são moradores, ex-traficantes que decidiram colaborar, familiares de quem trabalha no que o eufemismo da favela chama de "movimento".

Andam camuflados da cabeça (tocas ninja e óculos escuros) aos pés (coturnos de policiais). Usam casacos e coletes à prova de bala. Uma X-9 leva a polícia até a casa de outra mulher. Aponta uma foto de uma funkeira com tatuagem nas costas. A polícia pede para que a dona da casa levante a blusa.

A X-9 confirma: é ela. Após a saída da polícia, a mulher dá sua versão de como foi a abordagem. "Ele me disse: fala, piranha! Está me olhando de cara feia por quê? Seu macho foi embora? Agora todo mundo que deu para eles vai ter de dar para a gente também. Então o sr. vai me matar, respondi. Perguntaram se lá em casa tinha arma guardada. Eu disse: pode procurar. Se achar, me leva."

Uma senhora disse ter sido xingada porque policiais fizeram da cobertura de sua casa ponto de observação. "Todo dia tem um montão de homem na laje e eles nem pedem licença", reclama.

Outra afirma que um policial levou seu celular. "Disse que precisava checar se tinha ligação de traficante."

Um morador diz que os policiais tomaram-lhe R$ 400, que guardava perto da cama. "Sou biscateiro, mas o dinheiro era meu", chora. Um outro observa: "Por que você acha que está cheio de polícia andando no morro com mochila? Não é munição que eles levam ali não."

BILHETES

A dona de um salão de beleza, depois de ter por duas vezes a porta arrombada na procura por bandidos, colocou um bilhete: "Por favor, se quiser vasculhar o salão, não precisa arrombar de novo. É só ligar para esses números que os proprietários vêm abrir educadamente."



Outro comerciante fixou o cartaz com a frase: "A loja de roupa íntima já foi vistoriada pela Polícia Civil".

 A mãe de uma criança autista e tetraplégica de 11 anos diz que levaram de uma prima, que é sua vizinha, um tênis e uma camisa. "Ela não pagou nem a primeira prestação da fatura do cartão."

Seu filho ficou tetraplégico por falta de oxigenação na gravidez. Autista, estudava em classe especial em Ramos, mas a diretora dissolveu a turma, colocando os alunos com necessidades especiais junto dos demais.
"Meu filho não fala e não tem como acompanhar uma turma de sexta série. Então, deixei de levar para a escola. Tinha que descer e subir o morro empurrando a cadeira de rodas. Vamos ver se agora fazem uma escola mais perto", diz, esperançosa.

As queixas de roubos feitos pela polícia se repetem tanto que Binha, o líder comunitário da Vila Cruzeiro, conta rindo: "Já tem morador preparando um bolo de chocolate bem gostoso para deixar em cima da mesa. Eles roubam tudo. Até comida. Então tem gente querendo colocar veneno no bolo, porque olho grande morre pela boca."


A vida sob o tráfico também acumulava horrores. Adolescentes e até meninas consideradas bonitas eram andavam pelas ruas com restrição, porque os pais temiam que fossem tomadas à força para serem namoradas de traficantes, como aconteceu por diversas vezes, de acordo com moradores.

O tráfico torturava e matava aqueles que trouxessem contrariedade ou suspeita, por exemplo, de passar informações para a polícia ou facções adversárias. Deste tipo de terror, o complexo agora está livre.

Folha, 1 de dezembro de 2010

September 5, 2010

O direito ao riso


Gaudêncio Torquato 
O Estado de S.Paulo - 29/08/10

O que aconteceria se Lula, mesmo com 80% de aprovação popular, tivesse adiado o tradicional carnaval de fevereiro para o mês de abril, em homenagem a um de seus ministros, o mais querido (quem seria?), se acaso este deixasse nosso meio às vésperas da festança do Rei Momo? O povão de Salvador, do Recife, do Rio de Janeiro e de outras capitais, fazendo coro ao seu herói, teria começado o fuzuê apenas dois meses depois? Pouco provável. Mais certo seria apostar na repetição da História. Em fevereiro de 1912, às vésperas do carnaval, morria o Barão do Rio Branco, a figura mais insigne da história de nossa diplomacia. Ministro das Relações Exteriores desde o governo Rodrigues Alves, ganhou homenagem póstuma do marechal Hermes, presidente da República, com o adiamento do carnaval. O que fez a turba? Foi para as ruas em fevereiro, brincou em abril e ainda gozou a decisão presidencial solfejando a estrofe do jornal A Noite: "Com a morte do Barão,/ tivemos dois carnavá./ Ai que bom, ai que gostoso,/ se morresse o marechá."


A galhofa, o deboche, o toque irreverente são traços marcantes do caráter nacional. Quando represados por uma engrenagem de normas e proibições, sempre encontram o jeitinho das águas e acabam se infiltrando nas frestas das rochas para seguir seu fluxo. A imagem vem a propósito da proibição de usar o humor para caricaturar a política, neste momento em que candidatos se apresentam à avaliação do povo, que escolherá em outubro os novos quadros da democracia representativa. O impedimento abarca conceitos como "trucagem, montagem ou outro recurso de áudio e vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação". Ao fim e ao cabo, trata-se de impor sanções aos humoristas.
A simples comparação entre passado e presente mostra que o atual momento político-institucional tem imposto freios à criatividade. Basta um rápido olhar no ciclo dos governantes que habitaram a República no Catete. Foram figuras emolduradas pelos humoristas da época. A historiadora Isabel Lustosa apresenta a galeria que começa com o Biriba (Prudente de Moraes), passando pelo Patriarca do Baranhão (Campos Sales), Papai Grande (Rodrigues Alves), Tico-Tico (Afonso Pena), Moleque Presepeiro (Nilo Peçanha), Dudu e a Urucubaca (Hermes da Fonseca), Tio Pita (Epitácio Pessoa), Seu Mé (Artur Bernardes), Rei da Fuzarca (Washington Luis), chegando a Gegê (Getúlio Vargas) e JK. O cotidiano dos governantes era satirizado por um conjunto de revistas e jornais ilustrados. Mesmo perfis carrancudos aguentavam o tranco. Getúlio, então, era muito gozado pela vontade de se perpetuar no poder. Em outubro de 1945, por exemplo, botava-se em sua boca a piada: "Meu candidato é o Eurico; mas, se houver oportunidade, Eu Fico."
Qualquer pedaço de nossa História registra criativa contribuição do humor como ferramenta de crítica social. É verdade, porém, que ele tem perdido substância, de um lado, porque a política se distanciou da sociedade e, de outro, porque o próprio corpo legislativo, para salvaguardar a imagem, procurou esculpir um conjunto de normas para restringir a semântica e a estética da arte humorística. Sob a hipótese de que o chiste possa embalar perfis com o celofane da desmoralização, os legisladores acabaram criando uma camisa de força que delimita o espaço criativo de uma arte que satiriza o universo político desde a Idade Média. O paradoxo é inevitável: em plena sociedade da informação, sob o escudo dos direitos individuais e coletivos, entre eles o de liberdade de manifestação do pensamento, cerne da democracia, apertam-se os elos da expressão artística. Um absurdo dentro do Estado democrático. Por que orientação tão canhestra tem assento na mesa central de nossa democracia? Pela simples razão de que os representantes se valem da pletora dos direitos da cidadania para apontar prejuízos ao seu conceito ao se verem desenhados nas telas do humor. Seu argumento é de que os pincéis tornam alguns nomes "ridicularizados", quebrando-se a harmonia da igualdade para todos.
Tal visão não resiste a uma análise. Há mecanismos de defesa para quem se sinta ofendido na honra pessoal. Afora a legislação eleitoral, existem as legislações penal e cível, que podem ser avocadas por quem se achar injustiçado. Ademais, vale lembrar que o objeto da arte humorística não é a infâmia ou a injúria, mas a graça, a brincadeira, a descontração, elementos que conduzem as audiências ao universo diversionista. Neste ponto, retorna-se à contradição: quanto mais a sociedade organizada avança em sua luta por igualdade de direitos, mais se expandem as restrições ao universo da locução. Se cada grupamento quiser impor um sistema próprio de regras para determinar o que entende por direitos, acabaremos por ter um arcabouço capenga em torno da defesa social. O escopo da igualdade e da cidadania não se forma a partir de restrições, numa banda, e ganhos corporativos, noutra. A defesa sobre "o que é politicamente correto" soçobra quando gera, em outra esfera, consequências incorretas. Numa sociedade democrática, o direito ao riso não pode ser contido pela defesa da mordaça.
Voltemos ao passado. Antonio Carlos Magalhães, governador da Bahia, perguntou um dia a Jânio: "E aquela história de que o senhor gostava de ver filmes de bangue-bangue nas madrugadas de Brasília para aliviar as tensões do governo, é verdade?" Jânio respondeu: "É verdade, ficava até as 3 da manhã. Papapapapa... para ter a sensação de estar matando parlamentares." Hoje, uma história assim seria impensável. Nem mesmo o idolatrado Lula, um contador de causos, teria coragem de fazer tal analogia.
P. S.: A decisão do ministro Carlos Ayres Britto, do STF, de suspender a proibição do humor na eleição merece aplausos. Aguardemos o exame do mérito do caso em plenário.
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO 

August 22, 2010

Passeata Humor sem Censura

O decreto lei que proíbe os humoristas de falarem sobre os políticos durante o período eleitoral tem mexido com o humor dos comediantes, que não estão achando a menor graça. Indignados com a proibição, os humoristas cariocas que estrelam o stand up comedy “Comédia em Pé”, Fabio Porchat, Claudio Torres Gonzaga Fernando Caruso, Paulo Carvalho e Léo Lins, estão convocando todos os colegas de profissão, bem como a população, para participarem da passeata “Humor sem Censura”, que acontece no próximo dia 22 de agosto (domingo), a partir das 15 horas, na Praia de Copacabana, para protestar a favor da liberdade de expressão no humor.


Os humoristas do “Comédia em Pé” e seus amigos fazem a concentração da passeata em frente ao Copacabana Palace. Na sequência, os manifestantes seguem a pé até o Leme, onde fazem a leitura do Manifesto “Humor sem Censura”, quando recolherão assinaturas para um abaixo-assinado, que será entregue ao ator Sérgio Mamberti, Presidente da Funarte, que o encaminhará ao Ministro da Cultura, Juca Ferreira, no propósito que o MinC (Ministério da Cultura) leve essas considerações ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), para que se reverta esta censura.


As trupes do Rock Bola, Pânico, Casseta & Planeta, Os Caras de Pau, Melhores do Mundo (DF), Zorra Total, Clube da Comédia (SP), Os Barbichas (SP) e Plantão de Notícias já confirmaram participação na passeata. Também marcam presença Danilo Gentili e a trupe do CQC, Marcos Mion e a galera de Os Legendários, Marcelo Adnet e Comédia MTV, além dos humoristas Bruno Mazzeo, Leandro Hassum, Paulo Bonfá, Fabiana Karla e do cartunista Chico Caruso. Sites de humor, como Kibe Loco, Jacaré Banguela, Anões em Chamas, dentre outros, também estarão representados no evento. Ainda estão sendo convocados todos os redatores de humor da TV, rádio, imprensa escrita e humoristas dos espetáculos em cartaz.


A indignação dos humoristas é decorrente da recente resolução do TSE, que proíbe os programas humorísticos a fazerem piadas ou ridicularizarem quaisquer candidatos, partidos políticos e/ou coligações. A resolução nº 23.191/2009 é uma atualização da Lei Eleitoral nº 9.504/97, originalmente promulgada em 1997, que normatiza como deve ser a propaganda eleitoral, registro de candidatos, realização de coligações, dentre outras condutas. Segundo o Decreto, as emissoras de TV que descumprirem a lei estão sujeitas ao pagamento de multa que pode chegar ao valor de R$ 100 mil reais e, no caso de reincidência, o valor pode ultrapassar os R$ 200 mil.


É a primeira vez que os principais grupos de humor brasileiros se reúnem em uma parceria pela cidadania e que se convoca a população através da internet. “Estamos lutando para exterminar qualquer resquício de censura que ainda exista, somos a favor da democracia, e portanto, da liberdade de expressão. Essa lei é o exemplo de que se não ficarmos atentos todo o tempo, o fantasma da ditadura pode voltar a nos assombrar. Deixem que as pessoas decidam por elas mesmas de qual piada devem rir”, afirma Fábio Porchat, do Comédia em Pé.


Seguem alguns trechos do Artigo 28, do Decreto Lei:

Art. 28.  A partir de 1º de julho de 2010, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário (Lei nº 9.504/97, art. 45, I a VI):

I – transmitir, ainda que sob a forma de entrevista jornalística, imagens de realização de pesquisa ou qualquer outro tipo de consulta popular de natureza eleitoral em que seja possível identificar o entrevistado ou em que haja manipulação de dados;
II – usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido político ou coligação, bem como produzir ou veicular programa com esse efeito;
III – veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido político ou coligação, a seus órgãos ou representantes; (...)

§ 4º Sem prejuízo do disposto no parágrafo único do art. 45 desta resolução, a inobservância do disposto neste artigo sujeita a emissora ao pagamento de multa no valor de R$ 21.282,00 (vinte e um mil duzentos e oitenta e dois reais) a R$ 106.410,00 (cento e seis mil quatrocentos e dez reais), duplicada em caso de reincidência (Lei nº 9.504/97, art. 45, § 2º) (...)

cartaz de NANI

August 16, 2010

O óbvio ululante

Jogadores excepcionais não simplesmente se somam, mas se multiplicam

José Miguel Wisnik

Hoje eu quero simplesmente fazer a festa do óbvio ululante. O óbvio ululante, neste caso, é: nada como a seleção brasileira de futebol ser uma seleção brasileira de futebol. Nada como chamar para jogar melhor quem melhor sabe jogar. Nada como aceitar o poder da renovação. Nada como não querer impedir que isso aconteça. As circunstâncias do amistoso contra os Estados Unidos, na última terça-feira, assim logo depois da Copa, fizeram com que a partida assumisse, quisessese ou não, um caráter de prova e de contraprova.

Como se comportaria então aquela parte do futebol brasileiro que Dunga renegou, chamada em peso por Mano Menezes, agora com volantes jovens e inteligentes como Lucas e Hernanes a se somarem a Ramires, com um cérebro cheio de vislumbres e um domínio pleno da bola como os de Paulo Henrique Ganso, com atacantes ágeis e surpreendentes como Neymar e Alexandre Pato a se somarem a Robinho?

Com um dia e meio de treino, o resultado foi melhor que a encomenda, e está longe de se resumir no placar de dois a zero. O que se viu foi uma troca rápida e contínua de passes que mantinha a posse de bola e inventava entradas súbitas e verticais, com deslocamentos, dribles oportunos e cruzamentos precisos. Imobilizar e inibir as iniciativas de um adversário como os Estados Unidos (cujos componentes jogaram a Copa e não fizeram má figura) a partir de uma postura atacante e destemida é algo que depende do talento em todos os fundamentos.

Mas é justamente a aliança entre o toque de bola refinado e a inteligência imediata das variações do espaço do campo que produz, quando a c o n t e c e , u m efeito de lumin o s a a l e g r i a , gritando em sua obviedade: jogadores excepcionais não simp l e s m e n t e s e somam, mas se multiplicam. Essa evidência vai c o n t r a a q u e l a atitude mental que não se permite passar além da conta de somar e de diminuir, da troca de um por um e de seis por meia dúzia.

Nesse sentido, essa jovem seleção brasileira que gratificou o nosso gosto pelo futebol é, pela atitude, uma espécie de Santos Futebol Clube mais encorpado, a confirmação daquilo que o time santista trouxe de volta como afirmação de um campo de possibilidades que faz da incompatibilidade entre beleza e resultado uma falsa questão.

O Santos, aliás, que fez de seu ano até aqui uma demonstração viva desse fato, já tinha por isso mesmo suscitado ou ressuscitado a figura rodriguiana do “idiota da objetividade”.

(Vocês estão vendo que a minha festa do óbvio ululante é também uma homenagem ao Nelson Rodrigues cronista de futebol e ao inclassificável João Saldanha técnico de futebol e escritor). Há muito tempo o “idiota da objetividade” parecia aposentado por não ter muito com o que contrastar: o mundo do futebol dominante parecia ser uma extensão da ideia de que toda aventura do princípio do prazer está condenada ao brejo. É que o “idiota da objetividade” extrai prazer exatamente da maneira fingidamente realista com que investe no desejo desse fracasso.

É ele que está me dizendo agora, por exemplo, que esse jogo com os Estados Unidos foi apenas um episódio sem maior significação, uma partida sem compromisso, valendo nada, contra um time nem tão bom nem tão interessado, com o Brasil lançando estreantes que deverão ser substituídos oportunamente pelos verdadeiros titulares, mais experientes.

Como se a gente não soubesse que as verdadeiras dificuldades estão pela frente, que o efeito atual da surpresa encontrará oponentes mais fortes e mais avisados (Mano Menezes tem consciência disso), que o time jovem deverá s e r m e s c l a d o com a experiência, que só vai crescer evidenciando também suas fragilidades e contradições, que nada está ganho.

Mas nada está g a n h o n u n c a , nem para sempre — gozemos d u r a n t e . N ã o acredito literalmente na objetividade das estatísticas futebolísticas, mas sei que elas podem trazer indícios interessantes e sintomáticos. A seleção da E s p a n h a , p o r e x e m p l o , mostrou uma qualidade rara nesta Copa, que a fez campeã: a posse de bola, a troca rápida de passes, superando o número de 500 por jogo, traduzindo-se em belos deslocamentos, cortaluzes e domínio territorial.

Leio no entanto sobre os números do jogo do Brasil algo que confirma a impressão: a amostra de passes rápidos da seleção brasileira nesse jogo supera os 600, com um altíssimo grau de acerto (93%), superior à excepcional média espanhola, acrescido ainda de oportunidades de gol, finalizações e dribles inesperados que, como sabemos, não foram o forte da Espanha campeã. No perfil da vocação futebolística brasileira, a conferir em outros campos, a eficácia cresce sintomaticamente com a própria gratificação da liberdade de criação, e não o contrário.

Hoje sou todo a alegria do desafogo, porque o tamanho dessa potencialidade criativa e lúdica estampada no jogo — óbvia e ululante como potencialidade — esteve na sombra e à míngua

O Globo, 14 de agosto de 2010

August 14, 2010

Horário eleitoral sem graça

HELIO DE LA PEÑA



Deixar o humor de fora do processo eleitoral não eleva o nível das campanhas, não esclarece o povo e não torna os políticos mais respeitáveis


"E se a gente fizesse um jingle dizendo que agora o Lula está apoiando o Collor, e que o Collor apoia a Dilma?". Essa ideia poderia ter surgido numa reunião do "Casseta", do "Pânico" ou do "CQC".
Mas não, o jingle existe e faz parte da campanha eleitoral de 2010.
Segundo as novas regras do TSE, os humoristas estão proibidos de fazer piadas sobre os candidatos.

Mas eles podem. O que é isso?
Reserva de mercado?

A lei eleitoral nº 9.504/97 impede que emissoras de rádio e TV utilizem "trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que de qualquer forma degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação".

A intenção era manter o debate eleitoral em bom nível, coibindo os candidatos de produzir propagandas que, ao invés de propostas, apresentem retratos grosseiros e caricatos de seus adversários. E o que nós, humoristas, temos a ver com isso?

Ao estender o rigor da lei aos programas humorísticos, ficamos proibidos de abordar um dos temas mais importantes da vida pública neste ano. Não podemos por o dedo nesta ferida, a população não pode rir da política, tem que levá-la mais a sério que os próprios políticos.

A impressão que temos é que os candidatos são uns pobres indefesos, vítimas das piadas. Os políticos brasileiros estão protegidos por uma legislação absurda e exagerada. É como se os coitados estivessem sofrendo de "bullying" praticado pelos humoristas.

Eles estão quase aparecendo nas propagandas eleitorais acompanhados dos pais para que não zoemos com eles. Não podemos criticá-los ou receberemos uma advertência na caderneta. Completamente diferente do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo.

A última campanha presidencial foi marcada pelo humor e pelo deboche. A comediante Tina Fey ganhou as páginas da imprensa mundial fazendo uma hilária imitação da Sarah Palin, candidata a vice na chapa de John McCain.

A própria Sarah fez uma participação no programa "Saturday Night Live" e não atribui sua derrota a esse fato. Ela tem certeza de que o público sabia que se tratava apenas de um programa de humor e que nada do que fosse falado ali era para ser levado a sério.

Deixar o humor de fora do processo eleitoral não eleva o nível das campanhas, não esclarece a população e não torna nossos políticos mais respeitáveis. Pelo contrário, enfraquece o debate, tira a corrida presidencial das conversas nas esquinas e nos cafés das empresas.

Impede o candidato de rir de si mesmo e, quem sabe, corrigir o rumo de sua campanha. Não estamos lutando pelo direito de difamar ou ferir a honra de ninguém, mas amordaçar nossos candidatos Dilmandona, José Careca e Magrina da Silva é um gol contra a democracia.

Impedir que a Sabrina Sato convença os presidenciáveis a dançar o "Rebolation", proibir que o "CQC" utilize recursos gráficos para nos fazer rir dos políticos é patético. Definitivamente, não é esta a forma de conscientizar o eleitorado da importância do pleito.

O público conhece os programas humorísticos e sabe quais são suas propostas. Cabe ao políticos apresentar as suas com seriedade, de forma que o povo não as confunda com as dos humoristas.


HELIO DE LA PEÑA é humorista do "Casseta & Planeta", exibido pela TV Globo.


Folha, 8 de agosto de 2010

July 27, 2010

"Estão levando muito a sério o humor"

Fabio Brisolla

O humorista do Casseta & Planeta critica as limitações da Lei Eleitoral, que obriga o programa da Rede Globo a tratar o noticiário político de forma distante, pelas beiradas. E lamenta não poder brincar com assuntos relevantes da forma como gostaria.

Como vocês estão lidando com as restrições contidas na Lei Eleitoral?

HELIO: Estamos diante de um momento fundamental para a vida do país e a cobertura de humor sofre restrições justamente agora. É um problema muito sério para a gente. Somos obrigados a ter tanto cuidado com essas regras que não podemos tirar proveito do assunto. Não podemos brincar com uma notícia na proporção que ela tem para a população.

Qual é a saída para continuar falando de eleição?
HELIO: Procuramos inventar personagens fictícios. Lançamos, por exemplo, o polvo da Copa como candidato à Presidência. Já criamos a Dilmandona, o José Careca e a Magrina Silva, mas tivemos que encostá-los no momento em que os candidatos estão mais em evidência. Isso é uma tentativa de tomar conta da cabeça do eleitor.

O Casseta & Planeta sempre procurou abordar os assuntos do noticiário da semana. Ficou mais difícil?
HELIO: Sem dúvida. Um programa de humor, além de brincar com o fato, realça o fato. Leva as pessoas a questionarem: por que será que os caras estão falando isso? E esse papel, não podemos fazer.

Algum partido chegou a reclamar das imitações dos presidenciáveis apresentadas durante a pré-campanha?
HELIO: Não, porque sempre tomamos cuidado. Quando citamos um candidato, os outros dois apareciam também. Nunca houve intenção de prejudicar um ou outro candidato. Por ser uma emissora com visibilidade, os partidos tendem a achar que a Globo pode influir no resultado. E aí acabam levando muito a sério o que é só um programa de humor.

Na Copa, o acesso de humoristas aos jogadores da Seleção foi negado. Agora, vocês têm a lei eleitoral pela frente...
HELIO: Pois é... Dunga não nos dava bom dia. Agora, nem os candidatos podem nos dar bom dia. Mas vamos driblando e fazendo nossas piadas.

O Globo, 25 de julho de 2010

July 12, 2010

Ezequiel Neves, produtor musical, 74 anos



foto de Ana Branco


O ano era 1976. Um foca chega à precária redação da revista “Rock: A história e a glória”, da qual Ezequiel Neves era um dos editores, ao lado de Ana Maria Bahiana e Tárik de Souza, e pergunta ao então já lendário crítico musical se ele também fazia literatura.

Com o habitual raciocínio veloz e sarcástico, e o tom de voz sempre alguns decibéis acima do normal, Zeca Jagger (um dos pseudônimos que costumava usar na época) responde: “Garoto, tudo o que eu escrevo é ficção!” Personagem fundamental para a cultura brasileira das últimas quatro décadas, Ezequiel Neves morreu no início da tarde de ontem, aos 74 anos, no mesmo dia em que, há 20 anos, também partiu seu maior parceiro e amigo, o cantor Cazuza. O produtor estava internado desde janeiro na Clínica São Vicente, na Gávea, lutando contra um tumor no cérebro, e seu corpo será cremado, provavelmente, amanhã.

Com seu humor ferino e sua fértil imaginação, Ezequiel fez “novo jornalismo” muito antes de o gênero ser reconhecido. E em quase duas décadas de atuação no setor, passando pela grande imprensa (revistas “Playboy” e “Pop” na Editora Abril, “Jornal da Tarde”, de São Paulo) e pela alternativa (a edição pirata da “Rolling Stone”, que circulou no início dos anos 70, as revistas “Som Três” e “Música do Planeta Terra”, o “Jornal da Música”), fez escola, inspirando dezenas de jovens a ingressarem no jornalismo cultural. Carreira que o próprio tratou de abandonar, trocando-a pela de produtor musical (e eventual letrista) a partir do início dos anos 80, quando apostou no talento bruto do Barão Vermelho. Foi devido à insistência de Ezequiel que João Araújo, então presidente da gravadora Som Livre, concordou em lançar o grupo que tinha como cantor e letrista seu filho, Cazuza, ao lado de Roberto Frejat (guitarra), Guto Goffi (bateria), Dé Palmeira (baixo) e Maurício Barros (teclados).

Além de ter coproduzido os discos do Barão e os da carreira solo de Cazuza, Ezequiel foi o coautor de clássicos do rock brasileiro como “Por que a gente é assim?”, “Codinome beija-flor” e “Exagerado”.

No período em que atuou como produtor da Som Livre, também trabalhou com ícones da MPB como Elizeth Cardoso e Cauby Peixoto. Ele ainda colaborou em programas musicais da Rede Globo e foi corroteirista do filme “Rio Babilônia”, dirigido por Neville de Almeida, de quem era amigo desde a juventude, em Belo Horizonte.

Uma figura fascinante — e também incômoda para muitos, o verdadeiro “Exagerado” de sua parceria com Cazuza e Leoni —, José Ezequiel Moreira Neves viveu intensamente.

Nascido em Belo Horizonte, em 30 de novembro de 1935, filho de um cientista e parente de Tancredo Neves, cedo se envolveu na vida cultural da capital mineira. O escritor Silviano Santiago, contemporâneo de Ezequiel em Belo Horizonte, conta que, na adolescência, o amigo sonhava uma carreira literária: —Encontrei Ezequiel quando tínhamos 15 anos, ele conhecia literatura muito mais do que todos em nosso grupo. Era afilhado espiritual de uma musa dos escritores dos anos 1940, Vanessa Neto.

Uma contista, sobrinha de Lúcio Cardoso, linda e carismática, que mostrou muita coisa a ele. Andávamos tateando, e Ezequiel já desfilava a sua cultura literária.

Seus contos traziam influências de Clarice Lispector e Jean Cocteau.

Entre 1956 e 58, Ezequiel publicou alguns desses contos na revista literária “Complemento”, que co-editou junto a Silviano Santiago e o escritor Ivan Ângelo. Ele também frequentava assiduamente o Clube de Cinema; o Teatro Experimental, dirigido por Carlos Kroeber; e o grupo de dança de Klaus Vianna e Angel Vianna. Entre os jovens artistas e intelectuais de Belo Horizonte circulavam ainda o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, os atores Jonas Bloch e Rodrigo Santiago e o hoje deputado federal Fernando Gabeira.

Graças ao teatro, em 1965, Ezequiel Neves trocou Belo Horizonte por São Paulo, após atuar com seu grupo mineiro numa montagem de “Sonhos de uma noite de verão”, de Shakespeare. Em seguida, integrado ao elenco do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), trabalhou com Cacilda Becker e participou de uma montagem de “Zoo story”, de Edward Albee. Ainda em São Paulo, foi para o grupo de Antunes Filho, em “A megera domada”, e, depois, atuou em “Julio Cesar” ao lado de Jardel Filho.

Apesar do talento para o teatro, a paixão pela música bateu mais alto. Em fins dos anos 60, o disco de estreia do grupo The Doors converteu-o ao rock — até então, ele só ouvia jazz, de Billie Holiday e Frank Sinatra a Miles Davis, e artistas brasileiros como Elizeth Cardoso e João Gilberto, paixões que a acompanharam até o fim — e, aos poucos, Ezequiel trocou o palco pelas redações, virando crítico de música do recém-criado “Jornal da Tarde” (então o veículo vespertino do “Estado de São Paulo”). Em entrevista ao GLOBO, ao completar 60 anos, Ezequiel Neves relembrou, com sua habitual sinceridade, essa passagem: — Tomei um ácido lisérgico e descobri que, se eu não conseguia ser eu mesmo, não tinha porquê tentar ser outros personagens. A experiência aconteceu em 1969, ainda tentei ficar no palco até 1970, quando fui para Londres fazer teatro. Foram três meses de desbunde. Na volta, ainda fiz “A última peça”, de José Vicente. Um espetáculo totalmente anárquico, todo mundo fumava maconha e tomava ácido. Para mim, foi realmente a última peça.

Em 1971, nova mudança.

Ezequiel aceitou o convite de Luiz Carlos Maciel e veio para o Rio com a missão de co-editar a versão brasileira, e pirata (sem licença dos donos nos Estados Unidos) da revista “Rolling Stone”, que durou um ano. Em seguida, ao lado de Ana Maria Bahiana e Tárik de Souza, criou a revista “Rock: A história e a glória” (que, em 1976, daria lugar ao “Jornal de Música”). É desse período os pseudônimos Zeca Jagger (homenagem ao seu maior ídolo, Mick Jagger, dos Rolling Stones), Zeca Zimmerman (este, o sobrenome de batismo de Bob Dylan) e Angela Dust.

Incansável festeiro, sempre a mil por hora, Ezequiel conviveu nos últimos cinco anos com um tumor benigno no cérebro, enfisema e cirrose.

Sem filhos, deixa duas irmãs em Belo Horizonte, sobrinhos e sobrinhos netos. E muitos órfãos entre os amantes do rock no Brasil.

O Globo, 8 de julho de 2010

May 25, 2010

Somos todos desempregados

João Paulo


Por muito tempo, o ideal da economia de mercado era a sociedade de pleno emprego. Em tal paraíso sociológico, as pessoas teriam autonomia, dignidade e liberdade. A remuneração garantida funcionaria como colchão ético, um estado de segurança que permitiria a cada cidadão fazer planos, pensar no futuro, não barganhar seus princípios. A consequência dessa realidade seria uma sociedade pacificada, capaz de produzir serviços de qualidade, que seriam adquiridos no mercado. No caso dos produtos ditos sociais, como saúde e educação, eles seriam fornecidos por um Estado rico em razão da própria funcionalidade da economia. Um jogo de ganhador-ganhador.

O chamado Estado de bem-estar social era herdeiro desse projeto. Capitalista na produção e socialista na distribuição, parecia trazer para seu núcleo o melhor dos dois mundos. Da mesma forma que incorporava ideologias aparentemente antagônicas – como liberalismo e igualitarismo –, o funcionamento desse modelo social colocaria no mesmo processo ferramentas típicas da democracia liberal e do socialismo. Assim, o pleno emprego só se manteria operante com forte estrutura sindical; a democracia de massas só se manteria com a liberdade de organização.

De uma hora para outra, o equilíbrio se rompeu. Antes de a chamada social-democracia surgir como solução, o emprego era quase um problema para o setor produtivo. As pessoas trabalhavam, no sistema fordista, como peças de máquina que precisavam ser vigiadas. Todas as teorias aplicadas ao campo do trabalho eram voltadas para controle, estandartização, obediência, verticalismo e reforço da autoridade. Quanto mais ditador, melhor patrão. Assim, o pleno emprego não era visto como ameaça, apenas como um estágio de maior cobrança de competência dos feitores.

A fase seguinte foi a de esgarçamento desse olhar controlador, apostando na capacidade de manifestação das pessoas, na busca de climas de cooperação, nas chamadas parcerias produtivas. Nesse tempo, falava-se em círculos de controle de qualidade, os empregados eram chamados de colaboradores, todo mundo era cliente de todo mundo. A amortização dos conflitos queria fazer crer que os interesses eram os mesmos dos dois lados do balcão: numa empresa rica, todos ganham. A mensagem de paz só era possível com o tacão da castração da liberdade de organização dos trabalhadores, ainda que por mecanismos ideológicos.

Na dinâmica da história, esse momento foi também ultrapassado com a percepção de que, no cenário da produção, o homem perdeu a centralidade. Foi o tempo do downsizing, da flexibilização das normas, da valorização da informalidade, da busca de burla da legislação trabalhista em nome de uma vicária garantia do mercado de trabalho para a maioria das pessoas. Para manter o máximo de empregos, o mínimo de garantias. O que era solidariedade entre trabalhadores se tornou competição entre indivíduos-empresas. Eu S/A.

É chegado agora, segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o momento da modernidade líquida. Já não importam tanto os controles e panópticos. As funções administrativas ortodoxas se esgotam em nome de ameaça muito mais forte, porque internalizada: o medo do desemprego e da inutilidade social. O primeiro passo foi convencer parte da humanidade de que ela é desnecessária; em seguida, ameaçar a outra porção de que ela pode ser a próxima da fila. O gasto é muito menor e a eficácia bem maior. As pessoas se tornam capazes de tudo para manter seus empregos, até mesmo de deixar de ser pessoas.

Os funcionários e empregados hoje aprenderam com o que de pior a história recente do mercado de trabalho realizou no mundo ocidental. Do fordismo, herdaram a obediência rigorosa às normas e a alienação produtiva; dos círculos de controle de qualidade, o descaso com a organização sindical em nome de interesses corporativos inconfessáveis; da modernidade líquida, o comportamento beligerante com o outro, no limite da deslealdade.

Treinadores e sábios Atualmente, o candidato ideal a um emprego é aquele que vende a si mesmo como produto. E que convence aos outros, que o contratam, que tem algo de novo a entregar. A obsessão pela novidade e criatividade (os chamados comportamentos inovadores), na verdade, vão na contramão do processo educativo que desenvolveu o próprio setor produtivo. Conhecimentos antigos, que exigem tempo e dedicação para se sedimentarem como comportamento moral, se tornaram inúteis. Saem os professores, entram os treinadores. A ética é o oposto da eficácia.

Quem acompanhou a escalação da Seleção Brasileira por Dunga teve um exemplo de como essa movimentação ocupa todos os setores, das empresas aos times de futebol. Dunga é um homem que expõe seus valores com desassombro: gosta de obediência, não admite opiniões contrárias, é conservador, não valoriza o passado, tem medo do futuro. Para tal comportamento, escolheu um estilo de administrar a equipe que tem como único critério o resultado e como método a tirania.

As pessoas, hoje, são pequenos Dungas, mesmo quando reclamam da falta de Ganso na Seleção: todos querem fazer parte da equipe, mesmo às custas de abrir mão da criatividade e de outros valores; aceitam se submeter a um pensamento menor para garantir a estabilidade; trocam o conhecimento pela esperteza; preferem treinadores a sábios por trás de suas decisões. Somos, nesse sentido, todos portadores do medo. Almas de desempregados.

Não é casual que no mundo corporativo, cada dia com mais poder, entrem em cena os chamados coachers, treinadores de carreira. Eles ensinam comportamentos, estratégias de ascensão, marketing pessoal e outros atributos competitivos. Quando tudo dá errado, tornam-se consultores de recolocação, profissionais que mudam o nome do desemprego para oportunidade. E se põem a vender pessoas. Os antigos sábios, guias de uma sociedade que buscava se aprimorar na herança iluminista do bom uso da razão, são hoje intelectuais desprezados pelo passadismo. Além disso, conhecimento humanista não dá dinheiro, logo não deve ser boa coisa.

A Seleção de Dunga é nosso horizonte de civilização. Nada que uma boa derrota não ajude a resolver.


Estado de Minas 15 de maio de 2009

 

May 21, 2010

O discurso patrioteiro

JOSÉ GERALDO COUTO



A convocação burocrática e inercial de Dunga para a Copa assusta menos do que a fala retrógrada que a justifica



O QUE MAIS me deixou preocupado, na convocação da seleção brasileira, não foi tanto a escolha óbvia e inercial dos jogadores, mas o discurso patrioteiro de Dunga. Ouvir o treinador justificar suas opções foi como entrar no túnel do tempo e cair nos piores anos da ditadura militar.

No mais acabado estilo "Ame-o ou deixe-o", o que Dunga disse, com quase todas as letras, foi: quem não gosta da minha seleção não gosta do Brasil. Por nossas críticas à convocação, Juca Kfouri, Xico Sá e eu fomos tratados (via e-mail ou comentários na Folha Online) como inimigos da pátria por leitores mais exaltados, embalados pelo ufanismo reinante.
Na visão de Dunga e seus seguidores, jogar na seleção é como fazer serviço militar, e a Copa do Mundo é uma guerra suja, como todas as guerras. Sinto muito, mas não é essa a minha visão.
Copa do Mundo, para mim, é ou deveria ser o momento em que os melhores futebolistas do planeta, defendendo seus respectivos países, fazem o espetáculo esportivo supremo. É, ou deveria ser, um espaço de arte e encantamento, em que o futebol justifica seu estatuto de esporte mais amado em todo o mundo.

Foi nesse espaço, nessa espécie de Olimpo transitório, que brilharam figuras como Pelé, Garrincha, Cruyff, Beckenbauer, Platini, Maradona, Romário, Ronaldo, Zidane.
..
Alijar do evento os jogadores mais talentosos do país, em favor dos mais disciplinados e leais ao chefe, é um crime contra o próprio futebol e uma traição a um dos traços mais ricos da cultura brasileira, que é o nosso jeito de jogar bola. Outros países têm uma dificuldade danada de renovar seus elencos.

Muitos deles recorrem a brasileiros naturalizados para reforçar seus times. O Brasil, ao contrário, revela continuamente novos craques. E por conta de um patriotismo rançoso e retrógrado os desperdiça.

Quem melhor escreveu, a meu ver, sobre a dimensão política e cultural da convocação foi Fernando Barros e Silva, na página 2 da Folha, na quarta-feira passada. Peço licença para transcrever aqui um trecho eloquente de seu texto.

"O clamor patriótico de Dunga parece ser sincero (o que não o torna melhor), mas também soa oportunista e marqueteiro quando se sabe que ele próprio o utiliza para vender cerveja a preço de ouro numa campanha de TV em que aparece berrando bordões do tipo "eu quero raça!". Vender a alma não é isso? Há um jeito esclarecido, cosmopolita, de gostar do Brasil. E há um patriotismo tosco, burrinho, que costuma servir de válvula de escape para pendores autoritários e fanatismos afins. Em seus piores momentos, é esse o sentimento que o futebol mobiliza e atrai."

Eu não teria nada a acrescentar, mas me lembrei de um diálogo que diz tudo o que resta a dizer.

Durante a transmissão de Grêmio 4 x 3 Santos pelo Sportv, diante de uma atuação esplendorosa de Paulo Henrique Ganso, o locutor Milton Leite diz: "Pelo jeito, o Ganso não sentiu o fato de não ter sido convocado". E o comentarista Maurício Noriega responde: "Quem vai sentir o fato de ele não ter sido convocado somos nós".

Aliás, dificilmente veremos na Copa uma partida linda como essa.

Folha, 15 de maio de 2010

March 28, 2010

Livro foca vida de mulheres vítimas do regime militar



Governo publica histórias de 27 sobreviventes e de 45 mortas ou desaparecidas

Publicação será lançada hoje, seis dias antes de o golpe completar 46 anos, e é a terceira da série "Direito à Memória e à Verdade"

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

Em meio à tensão gerada dentro do próprio governo com a criação da comissão da verdade para investigar torturas, mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar (1964-1985), as secretarias de Direitos Humanos e de Políticas para as Mulheres lançam hoje o terceiro livro da série "Direito à Memória e à Verdade", desta vez focado nas mulheres vítimas do regime.

Sob o título "Luta, Substantivo Feminino", a publicação intercala as histórias de 45 mulheres mortas ou desaparecidas e os relatos de 27 sobreviventes de diferentes organizações de resistência à ditadura, armadas ou não. Algumas estavam grávidas, outras amamentavam, todas foram torturadas e, não raro, estupradas.



O primeiro livro da série era sobre as vítimas em geral e foi lançado pelo presidente Lula no Planalto, em agosto de 2007, gerando reações nas Forças Armadas. O atual será divulgado na PUC-SP, seis dias antes de o golpe de 31 de março de 1964 completar 46 anos.

Entre os depoimentos, não consta o da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que também foi militante da esquerda armada, presa e torturada e hoje é candidata à Presidência pelo PT. A explicação é que os autores quiseram dar um caráter suprapartidário ao trabalho, sobretudo em ano eleitoral.



Na apresentação, o ministro Paulo Vannuchi (Direitos Humanos), que é o principal responsável pelo 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, faz um apelo velado às Forças Armadas, ao dizer que a publicação "pode mudar opiniões de quem ainda resiste à elucidação profunda de todos esses episódios como passo necessário a uma reconciliação nacional".

Em seguida, a ministra Nilcéa Freire (Mulheres) defende ampla apuração da verdade: "A superação dos fantasmas que ainda assombram nossa história recente exige confrontá-los. Para exorcizá-los, será preciso retirá-los dos lugares onde estão escondidos, nomeá-los, olhá-los nos olhos e compreender os mecanismos que os permitem surgir".



As mortas e desaparecidas são divididas em três grupos: de 1964 a 1974, incluindo o período agudo da repressão; de 1974 a 1985, já no processo classificado de "distensão"; e a Guerrilha do Araguaia, no final da década de 1960 e início da de 1970, na região do rio Araguaia.

Todas são acompanhadas de fotos mostrando rostos jovens, alguns quase infantis, como o de Aurora Maria Nascimento Furtado (1946-1972), que estudava Psicologia na USP e militava na UNE (União Nacional dos Estudantes) e na ALN (Ação Libertadora Nacional).

Conforme o livro, "Aurora foi submetida a pau de arara, choques elétricos, espancamentos, afogamentos e queimaduras, além da "coroa de Cristo", fita de aço que vai sendo apertada aos poucos e esmaga o crânio. Morreu no dia seguinte". Seu corpo, porém, foi encontrado no subúrbio do Rio crivado de balas.

Entre os depoimentos de sobreviventes, há o de Damaris Lucena, que hoje vive em São Paulo. Era feirante e militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Foi presa quando seu marido foi morto a tiros à queima-roupa, em 1970.

"Minha boca ficou toda inchada, cheia de dentes quebrados (...). Minha vagina ficou toda arrebentada por causa dos choques. Meu útero e minha bexiga ficaram para fora. Eu tive de fazer operação em Cuba, levei 90 pontos e estou viva por milagre", relata.

O livro é mais um esforço para apuração e divulgação da verdadeira história da repressão política na ditadura, enquanto o governo expande a procura de restos mortais de desaparecidos para além da região do Araguaia.



Folha, 25 de março de 2010
 

'Tô pensano...' - Uma reflexão sobre as drogas e o Daime

 ARNALDO BLOCH

E stive pensando em como a questão das drogas, por si só, provoca distorções de percepção, por mais careta que seja, ou esteja, a pessoa que se envolve em discussões sobre o assunto. Por exemplo, o Jojó entorna uns chopes, dá dois num baseado e passa uma cantada grosseira numa senhora de boa família. A grande maioria dos observadores dirá que o Jojó agiu assim por causa do bagulho e da gelada. Só uns gatos pingados dirão que o Jojó é assim mesmo, inconveniente, que o goró tem pouco, ou nada, a ver com o caso.

Se, por outro lado, o Jojó for para casa e, antes de puxar um ronco, telefonar para o Retiro dos Artistas anunciando uma doação gorda para a Páscoa dos velhinhos, os que souberem de seu ato dirão que o Jojó é generoso, um cara legal, um santo. Poucos atribuirão seu impulso à maconha e ao álcool, a não ser, é claro, que o Jojó seja um tremendo mão-deporco que só coça o bolso quando bebe e fuma.

Assim caminha o senso comum.

E o senso comum é ótimo quando não exclui a inteligência. Quando manipulado para criar verdades absolutas sem reflexão, tornase uma arma perigosa. Difundir em massa, por exemplo, que a morte do cartunista Glauco é uma evidência incontestável de que o Daime produz assassinos impiedosos é manipular o senso comum. Quantos assassinos os círculos que tomam o chá “produziram” nas últimas décadas? Há outros casos suspeitos relatados? Por outro lado, quantas são, comparativamente, as mortes provocadas por uso indevido de remédios e álcool? Alguém já investigou a influência de surtos de ansiedade por ingestão de litros de café por jornada de trabalho num comportamento criminoso? Dizer que o ayahuasca (a bebida indígena utilizada pelo Daime e outras congregações, a maior parte religiosas) agrava surtos de esquizofrenia (doença da qual o assassino de Glauco sofria) é chover no molhado. A ingestão de qualquer substância que amplie os sentidos pode agravar uma psicose.

Um indivíduo diagnosticado como esquizofrênico deve ser resguardado de ingerir qualquer coisa que não sejam as drogas receitadas por seu psiquiatra. Se, contudo, a família decide que ele pode frequentar cultos de Daime e seus líderes o recebem com o propósito de curá-lo, é um risco calculado por todos. Isto, é claro, não garante, nem de longe, que o ato que levou à morte de Glauco esteja associado ao processo que ele viveu naquela comunidade, inclusive porque o assassino, usuário de cocaína e crack, drogas que consumiu a caminho do local da tragédia. Usar tais correlações categóricas para questionar o fato de o ayahuasca ser hoje uma bebida legalmente utilizada é tão irresponsável quanto o eventual mau uso da substância.

Já tomei o chá em dois âmbitos. Da primeira vez, com uma tribo no Acre, durante uma noite inteira, no meio da floresta, sem qualquer ligação com o culto do Santo Daime. Interessavame mais beber com os índios, num ambiente dissociado do caráter sincrético-religioso que em muito desvirtua o sentido de seu uso original. Da segunda vez, no Rio, participei de uma celebração do Daime com quase trinta pessoas. Não experimentei, nas duas ocasiões, nem êxtase nem desespero. Não senti alterações na noção do tempo. O que vivi, ao contrário, foi um longo percurso de exame existencial em estado de alta consciência, e, em paralelo, um conjunto de visões que, entre si, formavam uma lógica de integração dessas percepções individuais com o que estava à minha volta (sobretudo na Amazônia, embalado pelos sons e o céu da floresta).

Nas duas experiências, só vi, no comportamento dos outros, ímpetos de comunhão e busca de paz. A culpa que havia ali estava na consciência de cada um, confrontada com um sentido ampliado do inconsciente e da ancestralidade.

O que chamo de ancestralidade, independentemente de estar ou não relacionada com espíritos ou entidades (como creem os índios) ou com Jesus e Maria (como creem os cultores do Daime) integra o conjunto de símbolos que constroem a psique humana em sua marcha civilizacional, transmitida de geração em geração. Símbolos que, estimulados pela bebida, desfilam ante o pensamento, que traduz as metáforas num léxico que muito ensina sobre o que somos, o que fomos e o que podemos vir a ser. A maioria de pessoas que tomaram o chá com quem conversei relatam, em essência, a mesma coisa. Algumas creem que divindades estão presentes. Outras, como eu, pensam que isso nada tem de sobrenatural.

E que tem tudo a ver com evolução.

Foi a experiência mais significativa que vivi.

Se eu morrer hoje, já terei visto aquilo que precisava ver. Sou judeu e tenho uma tendência ao agnosticismo que inclui ciclos de maior e menor aproximação com a ideia de Deus.

Bem sei das mazelas que a religião, com ou sem chá, podem provocar. Bem sei, também, que o ayahuasca pode precipitar, em alguns casos, problemas psíquicos ainda não manifestos num indivíduo, como outros estímulos, químicos ou emocionais, podem fazer.

Sei também que, embora entorpeça e provoque vivências dolorosas dentro desse exame que uns chamam de “trabalho”, não intoxica, não pesa no fígado, e, na maior parte das vezes só traz boas emanações, num espectro coletivo. Por incrível que pareça, não conheço relato de alguém que tenha burlado a proibição de se vender o ayahuasca, o que é um tanto misterioso. E raríssimos relatos de uso individual, sem assistência, desta poderosa poção que se populariza mundo afora.

Glauco, certamente, sabia disso. A infelicidade que se abateu sobre sua família e sua comunidade não justifica invalidar-se, com meia dúzia de loquazes fórmulas preconceituosas, tudo de bom que se acumulou através do uso de um chá milenar, já conhecido de civilizações pré-colombianas de alto saber, e que tem muito mais história que as vozes desejosas de parar o tempo através da amplificação consciente do medo e da ignorância.

O Globo, 27 demarço de 2010

 

March 11, 2010

Abaixo a repressão

JOSÉ GERALDO COUTO



A firula, mesmo quando "desnecessária", faz parte do futebol como espetáculo e como disputa moral


HÁ QUEM CONDENE a jogada de efeito "desnecessária". Perguntam: para que essa pedalada que não sai do lugar? Esse chapéu no meio de campo? Esse toque entre as canetas perto da lateral?

Discordo radicalmente. Entre a firula e sua repressão, fico com a firula. Por dois motivos. Primeiro: quem define o que é necessário ou não?
Dirão: necessária é a jogada que redunda em situação de gol. Ora, que pobreza de espírito.

O futebol é não apenas um confronto de técnica e estratégia mas também uma disputa, digamos, moral (no sentido amplo da palavra). Os fatores psicológicos ou emocionais contam muito na definição da supremacia de um jogador ou de um time sobre seu adversário.

Sempre me lembro de uma história contada por Djalma Santos. Já em fim de carreira, o grande lateral do Palmeiras tinha de vez em quando pela frente o então jovem e endiabrado ponta Edu, do Santos.

Quando isso acontecia, Djalma, logo nos primeiros minutos, tratava de aplicar um drible humilhante sobre o rapaz, para "aquietá-lo". Era como se dissesse: "Sabe com quem você está falando?". A tática, segundo ele, dava certo. Outros laterais, mais limitados, tentavam em vão parar Edu na porrada.

Gostei da resposta de Neymar quando o zagueiro Chicão, no último Santos x Corinthians, disse que ia "quebrá-lo no meio". O atrevido atacante respondeu: "Vem. Se você me achar...".
E olhe que Chicão não é nenhum brucutu. Como diria o Neto, é um baita jogador. Por sorte, não "achou" Neymar naquela tarde. Sorte de quem? De Neymar e dos santistas, claro, mas também de todo mundo que gosta de futebol bonito.

E aqui entramos no segundo motivo pelo qual defendo a chamada firula. Entre muitas outras coisas, futebol é diversão. O público quer ver coisas espetaculares, surpreendentes, desconcertantes. O torcedor pode até se irritar momentaneamente quando o drible é contra o seu time, mas é essa promessa de encantamento que faz a gente ir ao estádio.

Será que o torcedor corintiano não se diverte ao rever hoje, oito anos passados, a série de pedaladas que Robinho deu sobre Rogério no Brasileirão de 2002? Na hora doeu, mas hoje é possível contemplar com deleite aquela explosão de talento e ousadia.

Fico assustado ao ver a reação castradora de atletas, técnicos e boa parte da crônica esportiva diante de lances de irreverência e habilidade.
Garrincha, se atuasse hoje, seria executado em praça pública.

Será que esse impulso repressivo não faz parte, de algum modo, da onda de moralismo que assola o esporte, em termos mundiais? Assim como a condenação pública dos atletas que "pulam a cerca", a censura ao drible expressa, a meu ver, uma nada saudável aversão ao prazer.

Folha, 6 de março de 2010


February 28, 2010

Geisy na folia

FERNANDO DE BARROS E SILVA

 SÃO PAULO - Com a palavra, o apresentador do "Fantástico": "A polêmica acabou em samba. Lembra da Geisy, aquela do vestidinho rosa que provocou um rebuliço numa universidade em São Paulo? Ela está de volta, modificada, revista e ampliada". Assim começava a reportagem do dominical da Globo sobre a lipoescultura a que se submeteu a estudante Geisy Arruda. Tratava-se de mostrar em primeira mão o "novo visual" que a musa acidental da Uniban iria exibir durante os festejos momescos.

"Samba, vestidinho rosa, rebuliço" -as expressões engraçadinhas do locutor dão o tom acafajestado do suflê destinado a entreter os lares no final do domingão.

Uma das coisas que mais chamam a atenção no caso Geisy é a conversão do trauma em oportunidade, da humilhação em dinheiro, da selvageria em diversão de massa. A passagem entre uma coisa e outra se deu de maneira instantânea, sem que houvesse tempo para a elaboração do luto ou preocupação em refletir sobre o que aconteceu.

Depois de dizer que cinco litros de gordura foram pelo ralo, que "a barriga virou bumbum" e que Geisy ganhou quase meio litro de silicone em cada peito, o repórter pergunta: "Será que uma lourona dessas passa despercebida nas ruas?"

Vemos então miss Uniban desfilar pelos bares, entre marmanjos ouriçados a emitir sons de aprovação e correr para clicar a "nova Geisy" com os celulares. A cena lembra a turba em fúria nos corredores da universidade.

Aquilo que a escola prometia como perspectiva remota (uma vida melhor com o canudo na mão), Geisy alcançou num estalo, não pelo que aprendeu, mas como vítima da estupidez e da atrocidade do ambiente de ensino que frequentava.

Talvez ainda exista a tentação de criticar o deslumbramento da garota com sua fama descartável. Mas por quê? Ela não é mais vulgar do que as apelações da mídia a seu respeito. Ela não é mais frívola do que o jornalismo de celebridades e seus espectadores.


Folha, 15 de fevereiro de 2009


A incultura de todo dia



TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A cultura cristalizada, objetivada (museu, cinema, folclore) recebe atenção no Brasil. Não muita: alguma. É antes objeto de discussão que de apoio real. Mas recebe.

A microcultura, porém, que forma as relações humanas, a cultura interiorizada, modo de pensar e viver, continua à margem. Rala, esburacada, em frangalhos. A cultura formal e a cultura cotidiana seguem rotas paralelas que deveriam ser pelo menos convergentes.

Sinal claro é o Índice de Desenvolvimento Humano do país: 75º entre 182. Atrás de Sérvia, Rússia, Romênia, México, Uruguai, Argentina, Chile, Barbados, Hong Kong, Singapura, Bahamas, Costa Rica, Líbia... Índices falham. Mas algo mostram.

Integram esse índice a alfabetização e a escolaridade: quantos sabem ler e escrever, quanto tempo passam na escola. Quando se examina o conteúdo de uma e outra, a situação aqui assusta ainda mais. Nos últimos dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), os estudantes brasileiros estão na 53ª posição em matemática, entre 57 países; e na 48ª, entre 56, em compreensão de texto.

Um abismo existe entre a cultura objetivada e a cultura vivida. O resultado é o autoritarismo em todas as suas formas (incluindo a corrupção) de humilhação e abuso cotidianos -do ônibus que não para junto ao meio-fio para recolher passageiros ao lixo espalhado nas ruas e às pessoas que, no metrô, querem entrar nos vagões antes que os outros desembarquem, como se os outros não existissem. A incultura faz isso: torna os outros invisíveis. Irrelevantes.

A violência crua é o modo duro da incultura. Com a ausência do Estado em uma de suas funções indelegáveis, as pessoas, desesperadas, querem proteger-se como possível. Terceirizar parece a saída. Ninguém quer saber se os contratados são capacitados. Passa-se a responsabilidade adiante e pronto. Tudo é questão de aparência. E a aparência, aqui, é violência. O Estado passa sua responsabilidade aos que já pagaram por ela e esses a repassam a terceiros, pagando de novo, sem ocupar-se do "produto". Se algo acontecer, a culpa é do terceiro. Não é. Mas todos pretendem que sim. Resultado, "o segurança" é, ele mesmo, não raro, fator de insegurança e da violência que deveria evitar.

É evidente que falo do assassinato de um jovem pelo "segurança" de uma padaria num bairro de classe média alta, ao lado de um ótimo hospital ao qual esse jovem não pôde chegar com vida. Tragicamente emblemático.

Enquanto isso, um economista diz que o Brasil logo será a quinta economia do mundo e que então terá sua autoestima. Não terá. Sem a cultura como lastro e tecido, o país não se moverá um centímetro do horror que tentamos não ver.

Cruzar a ponte entre a cultura formal e a cultura interiorizada, que juntas sugerem, senão o amor, pelo menos o respeito pelo outro, não é o maior desafio: é o único desafio. A educação foi vista como panaceia universal. Não é. Educação sem cultura, como aqui, nada é.
Cultura tampouco é panaceia. É apenas, e não é pouco, a alavanca restante.

Este texto é uma homenagem, ínfima, aos que em 2009 caíram sob o peso da incultura brasileira.



TEIXEIRA COELHO é professor da ECA-USP, autor de "Dicionário Crítico de Política Cultural", crítico e curador do Masp (Museu de Arte de São Paulo)


Folha, 29 de dezembro de 2009


Canal pago acolhe o que Holywood baniu

RAUL JUSTE LORES
DE PEQUIM

 

ilustração de Caco Galhardo


As dez maiores bilheterias do cinema americano no ano passado não deixam dúvidas de que temas adultos, roteiros elaborados e atores com mais de 30 anos têm mais chance na TV do que em Hollywood.

"Transformers 2", "Harry Potter 6", "Se Beber, Não Case", "Up", "Lua Nova" e "Avatar" têm algo em comum, saltos tecnológicos à parte: uma escritura sem ossos ou espinhas para que adolescentes, os maiores frequentadores dos cinemas, possam mastigá-los sem medo.
"Não existem papéis tão intensos no cinema", reclama o ator Ted Danson, da série Damages. "Nos filmes de US$ 100 milhões, o investimento está nos efeitos especiais e no marketing, não no roteiro", diz.

A depressão da América pós-crise financeira ("Hung", "Damages"), os desafios morais da guerra ao terror ("24"), a América sexista e racista pré-revolução sexual ("Mad Men"), a indústria das drogas e suas insuspeitas ramificações ("The Wire") ou a intolerância ("True Blood") ganham generosos roteiros, produção em película, cenas de sexo e drogas banidas de Hollywood e um status único na cultura pop.

O jornal "El País" perguntou a famosos escritores espanhóis o que achavam da atual safra de seriados. "Se Dumas ou Balzac estivessem vivos, estariam na TV, onde é feita boa parte da melhor narrativa no mundo", compara Carlos Ruiz Safón.

"As sete temporadas de "Os Sopranos" foram pouco", reclama o fã Javier Marías. E o filósofo Fernando Savater diz que "Os Simpsons" não se limitam à sátira social, mas "que praticam com ácido entusiasmo a purificação antropológica".

A rede de TV franco-alemã Arte dedicou o documentário "Hollywood, o Reino das Séries", à era dourada da TV americana. No programa, destaca-se o poder dos roteiristas-produtores sobre o dos diretores e o cuidado com o texto.

O métier já se deu conta disso. Grandes atores hollywoodianos que não encontravam bons papéis na indústria-pipoca migraram para a TV. Glenn Close, Kathy Bates, Holly Hunter, Kiefer Sutherland, Martin Sheen e Rachel Griffiths se mudaram para a telinha, assim como nomes quentes do cinema independente, como Tim Roth, Gabriel Byrne, Patricia Clarkson, Mary Louise Parker e Chloe Sevigny.

Cineastas como o argentino Juan José Campanella ("O Filho da Noiva") e o norte-americano Bryan Singer ("Os Suspeitos") trabalham como diretor e produtor executivo da série "House" (Universal Channel).

Alan Ball, que levou o Oscar por "Beleza Americana", se consagrou mesmo com os seriados "A Sete Palmos" e "True Blood". O escritor Dennis Lehane escreveu roteiros para "The Wire", e o cineasta Rodrigo García, filho de Gabriel García Márquez, dirigiu episódios de "A Sete Palmos", "Big Love" e "In Treatment".

O riquíssimo mercado televisivo americano ajudou a revolução: 55% da audiência está nos canais a cabo, que chegam a 100 milhões de domicílios que pagam pela assinatura e são o público mais cobiçado pelos anunciantes. Se as TVs abertas visam a massa, o cabo precisa achar o seu nicho.

Por isso uma série como "Mad Men", a mais premiada nos últimos três anos no país, pode se contentar com apenas 2 milhões de espectadores por episódio. Por trás de sucessos como "True Blood", "Sex and the City" e "A Sete Palmos", a HBO arrebanhou 40 milhões de assinantes. Sua maior concorrente, Showtime, investiu em seriados ainda mais polêmicos, como "Dexter", "Queer as Folk", "Californication", "The Tudors" e "The L Word".

Roteiristas do seriado "The Wire" já participaram de festivais literários no Reino Unido e na China, onde outros escritores os tietavam. Para esses intelectuais, o esterco cultural não está no cabo.

Folha, 18 de fevereiro de 2009





 

January 10, 2010

Games incomodam e viram arte



Manter os jogos eletrônicos na periferia das artes "sérias" acaba gerando um tratamento irracional, que resvala em decisões judiciais equivocadas.



RONALDO LEMOS

Colunista da Folha


PEDRO MIZUKAMI

Especial para a Folha






Raramente os cadernos de cultura falam sobre games. Em geral, as críticas são técnicas e não observam o valor narrativo dos jogos como uma mídia privilegiada para contar histórias e levantar questões. E, sobretudo, como um referencial cultural cada vez mais compartilhado.

Dados sobre hábitos culturais em algumas capitais, divulgados recentemente pelo Ministério da Cultura, mostram que, em todas, a prática de "jogar games" é mais comum do que "ir ao cinema" (em São Paulo, por exemplo, os números são 13% e 8,7%, respectivamente). É um bom momento para pensar sobre esse fenômeno. A narrativa dos jogos vem atingindo momentos notáveis. Um exemplo é o recente "Call of Duty: Modern Warfare 2 (MW 2)". As análises mais corriqueiras vão dizer que é um excelente jogo de tiro. Dificilmente vão notar que ele trata da questão da moralidade da guerra, o mesmo tema de Barack Obama em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz.



Em um trecho do game -que pode ser evitado-, o personagem controlado pelo jogador é um agente da CIA infiltrado em uma célula terrorista ultranacionalista na Rússia. Forçado a participar do massacre de centenas de civis em um aeroporto, ele protagoniza a atrocidade. O que fazer, disparar? E em que outras missões disparar também se justifica?Estão presentes, aqui, os embates morais clássicos, encarados a partir da lógica do terrorismo e da guerra contemporânea. "Modern Warfare 2" coloca o jogador em situações que lembram a ele sua condição de ser moral.



A cena é perturbadora, como um filme de Samuel Fuller. A diferença é que a imersão do jogo torna o seu impacto bastante diferente. Qualitativamente diferente, e não "maior" ou "menor". É justamente por conta de preconcepções quanto aos efeitos da "interatividade" que os jogos costumam ser tratados diferentemente dos filmes ou dos livros. Isso tanto dificulta sua emancipação enquanto arte quanto reforça sua conexão com o mercado. É um exemplo da mesma ansiedade regulatória que acompanhou o nascimento da indústria cinematográfica norte-americana. Ansiedade que resulta até em pânicos morais e censura. Que, ironicamente, acabam ajudando a divulgar os jogos.



Para encarar os jogos com um olhar diferente, vale falar também de diversidade sexual. No ano passado, o jogo "Mass Effect" causou polêmica em razão de uma relação entre uma humana e uma personagem alienígena. Em "Fable 2", o protagonista, um(a) garoto(a) órfão(ã), pode -se quiser- estabelecer relações afetivas com ambos os sexos. Ao saber que os games de hoje colocam os jogadores como protagonistas de massacres terroristas ou de relações homossexuais, muitos vão se sentir saudosos da época de "River Raid" e "Pac-Man", em que as coisas eram mais simples. É exatamente esse o sinal de que os jogos viram arte. Incomodam do mesmo jeito que incomodava o cinema de Hollywood dos anos 70. Mantê-los na periferia (ou como rebeldes sem causa) das artes "sérias" acaba gerando um tratamento irracional, que resvala em decisões judiciais e projetos de lei que enxergam os games como se estivessem fora da garantia constitucional de liberdade de expressão.



Neste ano, vamos acompanhar o destino do projeto de lei do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que estabelece a proibição de jogos ofensivos "aos costumes e à tradição dos povos". Acompanharemos também lançamentos que apostam no experimentalismo, como "Heavy Rain". Entre "Heavy Rain" e Valdir Raupp, há um universo complexo, ao qual um pouco mais de atenção não vai fazer mal nenhum.

Folha de São Paulo, 7 de janeiro de 2009

January 7, 2010

Blogs fazem "permuta" para driblar censura

Blogueiros decidem trocar informações para evitar a proibição imposta pela Justiça contra divulgação de dados

Ricardo Brandt

Dois blogueiros censurados pela Justiça de publicar informações sobre casos de escândalos decidiram trocar informações, publicando um a notícia do outro. Dessa forma, conseguiram furar a mordaça imposta por tribunais estaduais sem que fossem executados judicialmente. Os autores da ideia são o jornalista Fábio Pannunzio e a economista Adriana Vandoni.

Desde que foi criada no dia 14 de dezembro, a "permuta de censura" - como foi batizada - já ganhou duas adesões. A última da jornalista Alcinéia Cavalcanti, proibida pela Justiça do Amapá de publicar notícias sobre a família Sarney.

Segundo Pannunzio, jornalista da Rede Bandeirantes que mantém o Blog do Pannunzio, a proposta tem o "objetivo de preservar o interesse público e a liberdade de imprensa". "Ao mesmo tempo em que respeitamos a decisão dos juízes que nos censuraram, cujas decisões alcançam apenas o que é veiculado em cada um dos blogs, e não de terceiros", explica.

O Blog do Pannunzio está proibido pela Segunda Vara Cível de Curitiba de veicular notícias sobre Deise Zuqui, uma brasileira investigada pela Polícia Federal por suposto envolvimento com uma quadrilha de traficantes de trabalhadores.

Adriana Vandoni, que mantém o blog Prosa e Política, está proibida pela Justiça de Mato Grosso de publicar informações a respeito do presidente da Assembleia Legislativa local, José Riva, que responde a mais de 100 ações por improbidade administrativa.

No caso do Amapá, os blogueiros lembraram que "ao processar Alcinéa mais de vinte vezes, Sarney, que da tribuna do Senado afirmou que jamais processara um jornalista, transformou-se em pioneiro desse novo tipo de censura, agora decretada por juízes togados".

Também integra a rede de "permutada de censura" o blog Página do E, mantido pelo jornalista Enock Cavalcanti, também alvo de ação judicial no Mato Grosso.

Estadão, 3 de janeiro de 2009



OS MELHORES DISCOS DE 2009

“PIMENTEIRA”: Em seu segundo disco, o sambista Pedro Miranda justifica a reverência de Caetano à sua “musicalidade, cultura entranhada, naturalidade e frescor”. Cria da Lapa, Miranda, que integra o grupo Semente e o Cordão do Boitatá, e isso não é novidade alguma, é uma das melhores traduções do samba atual.


“DOIS”: Adriana Calcanhotto retomou seu heterônimo Partimpim e novamente acertou, arrebatando corações e mentes de crianças, de todas as idades, incluindo aquelas já pais e avós. No repertório cabem tanto Caetano (com “Alexandre”) quanto Dylan em versão de Zé Ramalho (“O homem deu nome a todos animais”), passando por João Gilberto (“Bim bom”), Roberto & Erasmo (“Gatinha manhosa”), Villa-Lobos & Ferreira Gullar (“O trenzinho do caipira”) e uma canção de Adriana com seu produtor e baixista, Dé Palmeira (“Baile partimcundum”). Musicalmente, passa, sem fronteiras estéticas, por rock, frevo, samba-reggae...

“MARIA GADÚ”: Em seu disco homônimo de estreia, lançado em julho, então aos 22 anos, Maria Gadú impressionou pela voz forte e bem colocada, indo de “Baba baby” e “Ne me quitte pas”, e também como compositora, caminhando com segurança do samba “Altar particular” à balada pop, em tom de mantra, “Shimbalaiê”.

“CERTA MANHÃ ACORDEI DE SONHOS INTRANQUILOS”: “Há sempre um lado que pesa/ E outro lado que flutua” são os versos que abrem o quarto CD de Otto. É esse o assunto central do pernambucano em seu disco: o peso e a leveza da vida, do amor, da despedida. Com contundência e lirismo, ele une batuques do candomblé, guitarras de rock da década de 1970, programações, naipes de cordas e metais. As participações de Céu, Lirinha e da mexicana Julieta Venegas dão ainda mais força ao repertório, autoral até mesmo quando relê os clássicos “Lágrimas negras” e “Naquela mesa”.

“ODILÊ, ODILÁ”: Quando desembarcou no Brasil há quase dez anos, Nicolas Krassik era apenas um violinista apaixonado pelo samba e pelo choro. E as melodias de João Bosco foram uma de suas primeiras paixões. Hoje podemos dizer que ele é um de nossos melhores músicos, agregado à horda de instrumentistas de todos os lugares que desembarcam o tempo inteiro na Lapa. Seu passeio pela obra do autor de “Coisa feita”, “Linha de passe” e “Corsário”, com arranjos do pianista e acordeonista Marcelo Caldi e produção de Luís Felipe de Lima, é delicioso e pertinente.

“IÊ IÊ IÊ”: Radiofônico até o osso, mas sem deixar de lado a inteligência que caracteriza seu trabalho, Arnaldo Antunes fez talvez o melhor disco de sua carreira. Dialogou com a tradição mais popular de nossa música, visitou clichês de forma original e mostrou que a contribuição tribalista foi maior do que poderia parecer à primeira vista. O artista usou como base o trio que o vem acompanhando nos últimos anos (o baixista Betão Aguiar, o guitarrista Chico Salem e o pianista Marcelo Jeneci) e convidou músicos jovens como Curumin e Fernando Catatau (produtor do CD), e seu antigo parceiro Edgar Scandurra. A alquimia perfeita se completa com versos maduros, apesar de adolescentes — em sua pureza, malícia e vigor.

“UHUUU!”: Quatro anos depois do elogiado “E o método Túfo de experiências”, a banda cearense Cidadão Instigado reafirmou seu caminho singular com “Uhuuu!”. Fernando Catatau (voz, guitarra e teclado), Regis Damasceno (guitarra e violão), Rian Batista (baixo) e Clayton Martin (bateria acústica e eletrônica) aproximam melancolia à la Roberto Carlos, surf music, disco, psicodelia, guitarrada, paranoia e classic rock com resultados surpreendentes — tão estranhos quanto sedutores.

“SÃO MATEUS NÃO É UM LUGAR ASSIM TÃO LONGE”: O título do CD de estreia do cantor, compositor e cavaquinista paulista Rodrigo Campos é grande, assim como sua arte. O disco tem a estrutura de um romance, cada canção é um capítulo, com personagens que estão em mais de uma faixa. Paralelo literário sem perda da musicalidade, passando por sambas, toadas, baladas, em produção (Beto Villares) que mistura instrumental acústico e eletrônico. Um clássico instantâneo.

“CHIAROSCURO”: Pitty não tem pressa: seu terceiro disco de carreira (além de um DVD ao vivo) foi lançado em 2009, depois de o Brasil ouvir e consagrar com calma os dois primeiros, “Admirável chip novo” (2003) e “Anacrônico” (2005). À frente de sua banda — Joe no baixo, Martin na guitarra e Duda na bateria —, a cantora baiana mergulhou no estúdio e saiu com um disco que dá um passo à frente em relação aos anteriores, mais elaborado, experimental. Com isso tudo, ela não deixa de ser Pitty, com humor (como em “Me adora”, talvez a música do ano), fúria e o amor de sempre pelo rock.
“BENITO DI PAULA AO VIVO”: Ícone de uma geração de sambistas populares do discriminado sambão-joia dos anos 1970, juntamente com Luiz Ayrão e Agepê, Benito di Paula ganhou um merecido tratamento de luxo da EMI em sua volta discográfica, com produção de Jorge Cardoso, após 13 anos sem gravar. O cantor, que chegou a bater de frente com Roberto Carlos em número de discos vendidos, com sucessos como “Retalhos de cetim”, ”Mulher brasileira”, “Charlie Brown” e “Do jeito que a vida quer”, teve um justo acerto de contas com sua própria história musical.

Os melhores discos de 2009 foram escolhidos por Antonio Carlos Miguel, Bernardo Araujo, João Pimentel, Leonardo Lichote e Tom Leão. 

O Globo, 31 de dezembro de 2009