September 18, 2009

O Demônio

Luís Fernando Veríssimo

Há dias a CNN mostrou uma mãe americana chorando, preocupada com o que iria acontecer com seus filhos. E o que iria acontecer com seus filhos era terem que ouvir pela TV um discurso do presidente Barack Obama dirigido a estudantes do ensino básico de todo o país, no primeiro dia do ano escolar. Barack recomendaria a todos que fossem bons alunos e tomassem o seu leite, mas a direita histérica criou a expectativa de que ele aproveitaria a oportunidade para doutrinar as crianças sobre os seus programas nazicomunistas, talvez até recorrendo à hipnose. Muitas escolas se recusaram a mostrar a preleção presidencial. A mãe entrevistada pela CNN estava apavorada com o que o demônio negro de fala mansa poderia fazer com a mente dos seus filhos.

A demonização do Obama se deve em grande parte à sua intenção de criar um sistema universal de saúde pública como os que já existem em todos os países civilizados do mundo (e mesmo semicivilizados, não vamos citar nomes), para garantir assistência médica aos mais de 50 milhões de americanos que hoje não têm proteção alguma. As seguradoras, indústrias farmacêuticas e empresas hospitalares que já tinham liquidado com um plano similar do Clinton mobilizaram-se de novo, com a colaboração da imprensa conservadora, de políticos reacionários e de almas simples como a mãe apavorada, e transformaram a ameaça aos seus lucros numa guerra ideológica. Ainda é incerto se o Baraca conseguirá ver seu plano, ou uma versão chocha do mesmo, aprovado. Ou se chegará ao fim do seu mandato, nesse clima.

Dias depois da mãe chorosa a mesma CNN mostrou um pastor do Sul dos Estados Unidos declarando que rezava para Obama morrer de câncer e ir para o Inferno. E a congregação dizendo "Amém!".

o Globo, 17 de setembro de 2009

Como me livro da internet livre?

CLÓVIS ROSSI

 SÃO PAULO - OK, Fernando Rodrigues, você venceu, pelo menos no primeiro tempo: o Senado liberou geral (ou quase) a internet para a campanha eleitoral, tal como você exigiu. Nada contra a liberação, mas agora quero que você me ensine como defender a minha liberdade da liberdade da internet.

Já há essa montanha de "spams" que nem o melhor anti-spam consegue deter completamente. Já há, para jornalistas, a pilha de "press-releases" que antes chegava no papel e agora entope a nossa caixa eletrônica de correspondência.

Não falta a praga dos blogs. Todo blogueiro parece achar que eu não consigo começar o dia (ou terminá-lo) sem ler o seu imperdível blog. É claro que, em época de campanha eleitoral, só pode aumentar a quantidade.

Acho que a legislação e até a Declaração Universal dos Direitos do Homem (e da Mulher) deveria incorporar o seguinte artigo: "Todo ser humano tem o direito inalienável a escolher ele próprio quais blogs quer ler. Quem impuser seu blog à caixa postal alheia cometerá crime de lesa-humanidade".

Não faltam assessores de imprensa zelosos que mandam tudo o que seu chefe diz. Eu recebo diariamente todas as falas, por exemplo, do governador Aécio Neves. Fico aterrorizado só de pensar como será na hipótese de Aécio Neves ser candidato, qualquer que seja o cargo a que concorra.

Recebo também diariamente uma correspondência com o título "Imagens do Piratini". Imagino que seja do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. Olha, eu adoro o Rio Grande, sei até estrofes dos hinos do Grêmio e do Internacional, mas me reservo o direito de eu mesmo procurar que "imagens do Piratini" me interessam.

Na campanha eleitoral, tudo isso será multiplicado por mil ou mais.

Desse jeito, não vai sobrar tempo para trabalhar. Será esse o preço da liberdade?


Folha, 17 de setembro de 2009

 

September 9, 2009

A cultura das armas

MARCOS NOBRE



O ANO DA FRANÇA no Brasil mostrou a que veio: foi uma oportunidade para fechar grandes negócios com armas. Nada menos que R$ 22,5 bilhões, sem contar o contrato de compra de caças, que pode custar outros R$ 10 bilhões e que deve ir também para a França.

A discussão sobre os contratos continua em banho-maria. As explicações oficiais seguem sendo insuficientes. Joga-se a nuvem do antinacionalismo e do antipatriotismo contra quem exige esclarecimentos, quando qualquer nacionalista e patriota só merece esse nome se fizer valer antes de tudo a transparência exigida pelas instituições democráticas que o país com tanta dificuldade conseguiu construir.

Uma coisa é um aparelhamento adequado das Forças Armadas brasileiras que seja compatível com a extensão do país e com o atual patamar de armamento sul-americano. Coisa muito diferente é um projeto de se tornar potência hegemônica regional inconteste. Os contratos com a França representam o primeiro passo para isso.

A realização desse projeto inclui a tentativa já fracassada outras vezes de instalar uma indústria bélica de importância no país. Já parece suficientemente assustadora a ideia de usar dinheiro público para financiar a produção e exportação de armas para destruir vidas. Mas essa nem é ainda toda a história.

Tornar-se potência militar significa gastar muito mais recursos do que o necessário para manter o equilíbrio bélico regional. É esse gasto excedente que rouba recursos da luta contra a miséria e a desigualdade. E que terá por consequência produzir tensões onde hoje elas não existem e obrigará países vizinhos a tomarem o mesmo caminho desastroso. Não bastasse isso, serão preciosos recursos do pré-sal que acabarão por financiar, direta ou indiretamente, esse projeto militarista.

A cultura francesa foi hegemônica no Brasil por pelo menos um século e meio, até os EUA lhe tomarem essa posição. Mas esse tombo em nada abalou o velho colonialismo francês, que, condescendente, continua a oferecer ao povo brasileiro a oportunidade de degustar os biscoitos finos que fabrica.

E são mesmo muitas vezes biscoitos de sonho. Só que, como sempre, a França continua sem dar a receita. Práticas reais de cooperação e intercâmbio passaram longe da lista de mais de 400 eventos culturais do Ano da França no Brasil.

Figuras renomadas vêm, fazem seu show e se vão.

O que fica são armas. Para essas, o governo francês promete ensinar a receita. Transformou as armas da cultura no prelúdio enganoso de uma cultura das armas.

Folha, 8 de setembro de 2009