May 25, 2009

Quem tem medo de palavrão?

XICO SÁ

Quem tem medo de palavrão?


Ele é uma bênção no futebol, na literatura, na topada, no desafogo, no pânico, no trânsito de SP. E na cama


O TORCEDOR , amigo secador, em uma ida ao campo de futebol o homem diz mais palavrões do que nos gritos e sussurros de alcova durante a sua vida inteira. Não é diferente no sofá de casa, e o mesmo acontece com os técnicos, os digníssimos professores, e com os boleiros, mesmo os santinhos do pau oco e os sonsos atletas de Cristo.

Em uma pelada, mesmo de criança, fala-se mais palavrões do que na última casa de tolerância da Vila Mimosa. Como me disse uma noite a Tia Olga, madame responsável pela iniciação sexual de muitos garotos de São Paulo, todo homem ao chegar ao baixo meretrício ganha ar solene, circunspecto, grave, respeitoso. É no futebol que a criatura, antes da chamada fase oral canibalística, manifesta-se um marquês de Sade.

As histórias em quadrinhos do livro "Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol" (ed. Via Lettera) são fichinhas, café pequeno, Zibia Gasparetto, padre Zezinho, uma Bíblia diante de um menino de nove anos e sua turma atrás da bola. Cito o tal livro devido à sua adoção seguida de banimento em escolas estaduais paulistas, como vimos nesta Folha. Não julgo quem o acolheu nem quem o demonizou. Não tenho ciência pedagógica para a valiosa tarefa, mas duvido de que o referido conteúdo fosse espantar alguém que já bateu uma pelada.

Sim, pode ser inadequado, no sentido moral e cívico, para a faixa etária do ensino básico, mas a gurizada iria se divertir e se interessar mais pela leitura do que sob a palmatória da chatice bilaquiana ou alencarina. "Última flor do Lácio, inculta e bela,/ És, a um tempo, esplendor e sepultura;/ Ouro nativo, que na ganga impura/ A bruta mina entre os cascalhos vela..." E dá-lhe Bilac na rapaziada.

Aqui em casa eu prefiro o time que contou as inocentes historinhas do "Dez na Área": Allan Sieber, Caco Galhardo, Custódio, Fábio Moon e Gabriel Ba, Fabio Zimbres, Lelis, Leonardo, Maringoni, Osvaldo Pavanelli e Emílio, Samuel Casal e Spacca. Tem ainda o Karmo, na posição de gandula.

Noves fora o quiprocó pedagógico, é mesmo um belo livro sobre futebol. Como diz o genial Tostão no prefácio: "Faltava uma obra como essa para crianças e adultos". A maldade do palavrão está na cabeça de quem o condena. O palavrão é bênção divina no futebol, na literatura, no desafogo, na topada, no pânico, no trânsito. E na cama.
Agora lembrei de uma fala de Ronaldo na sabatina da Folha. "Ele [Ronald] é uma criança doce, que não fala palavrão, é educado. É praticamente um europeu", disse ele, sobre o filho que vive na Europa. Mal sabe o Fenômeno que o acervo de palavras cabeludas de muitos países de lá é infinitamente mais rico do que o nosso, como lembra o sociólogo Gilberto Freyre no prefácio do "Dicionário do Palavrão", obra do pernambucano Mário Souto Maior (ed. Record).

A versão alemã de livro do gênero, que inspirou a edição brasileira, tem 9.000 verbetes. O volume nacional ficou em um terço dessa maçaroca. Na França e na Espanha, puta madre, nem se fala. Coisa de botar no chinelo a "Mesa-redonda sexo-futebol debate!", a sensacional história narrada pelo Caco Galhardo que fecha o "Dez na Área...".

Folha, 23 de maio de 2009

May 19, 2009

SP distribui a escolas livro com palavrões


Com termos impróprios e conotação sexual, obra seria utilizada por estudantes da rede estadual na faixa de nove anos

Governo de SP disse que houve falha na escolha do livro para o programa Ler e Escrever e que determinou o recolhimento das obras


FÁBIO TAKAHASHI
DA REPORTAGEM LOCAL



A Secretaria Estadual da Educação de São Paulo distribuiu a escolas um livro com conteúdo sexual e palavrões, para ser usado como material de apoio por alunos da terceira série do ensino fundamental (faixa etária de nove anos).

A gestão José Serra (PSDB) afirmou ontem que houve "falha" na escolha, pois o material é "inadequado para alunos desta idade", e que já determinou o recolhimento da obra.

O livro ("Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol") é recheado com expressões como "chupa rola", "cu" e "chupava ela todinha". São 11 histórias em quadrinhos, feitas por diferentes artistas, que abordam temas relacionados a futebol -algumas usam também conotação sexual. A editora Via Lettera afirma que a obra é voltada a adultos e adolescentes.

A pasta distribuiu 1.216 exemplares, que seriam usados como material de apoio para a alfabetização dos estudantes, dentro do programa Ler e Escrever (uma das bandeiras do governo na educação).

Nesse programa, os estudantes podem usar o material na biblioteca, na aula ou levar para casa. O livro começou a ser entregue na semana passada.

É o segundo caso neste ano de problemas no material enviado às escolas. A Folha revelou em março que alunos da sexta série receberam livro em que o Paraguai aparecia duas vezes no mapa.

"Os erros revelam um descuido do governo na preparação e escolha dos materiais", afirmou a coordenadora do curso de pedagogia da Unicamp, Angela Soligo.

"Há um constante ataque do governo contra os professores e a formação deles. Mas o governo coloca à disposição dos docentes ferramentas frágeis de trabalho", disse Soligo.

Posição oficial
A reportagem solicitou entrevista com o secretário da Educação, Paulo Renato Souza. A pasta, porém, só divulgou uma nota, que não esclarece como é feita a escolha dos livros.
Sobre a responsabilidade pelo erro, disse apenas que abriu uma sindicância.

O governo afirma que "este livro é apenas um dos 818 títulos" comprados e que os 1.216 exemplares da obra representam "0,067% do 1,79 milhão de livros colocados à disposição das crianças". Diz ainda que faz um grande esforço para estimular o hábito da leitura.

O gerente de marketing da editora Via Lettera (responsável pelo livro), Roberto Gobatto, afirmou que apenas atendeu ao pedido de compra (no valor de cerca de R$ 35 mil) feito em novembro, na gestão de Maria Helena Guimarães de Castro na pasta da Educação.
"Não sabíamos para qual faixa etária seria destinada. Se soubéssemos, avisaríamos a secretaria", disse Gobatto.

Na história mais criticada por professores que tiveram contato com a obra, o cartunista Caco Galhardo faz uma caricatura de um programa de mesa-redonda de futebol na TV.
Enquanto o comentarista faz perguntas sobre sexo, jogadores e treinadores respondem com clichês de programas esportivos, como "o atleta tem de se adaptar a qualquer posição".

Governo do Estado compra livros de adultos para crianças

Folha, 19 de maio de 2009

Pitaco do Caco

Quem escolheu não leu o livro, diz cartunista

O cartunista Caco Galhardo, autor da história mais criticada do livro por professores, disse que a obra não era destinada a alunos. Caco é quadrinista da Folha. (FT)


FOLHA - A sua história era para crianças de nove anos?
CACO GALHARDO - Imagina. É uma HQ [história em quadrinhos] justamente para não ir para escola. Há um movimento de se colocar quadrinhos nas aulas, porque é uma linguagem acessível para a molecada. Fiz uma adaptação do Dom Quixote que foi para várias escolas. Mas os caras têm de ter critério para ver qual quadrinho colocar. Nessa eu tirei sarro de uma mesa-redonda.

FOLHA - Sabe como foi parar nas escolas?
GALHARDO - O cara que escolheu não leu o livro.





Folha, 19 de maio de 2009

May 13, 2009

Americanas no Iraque vivem uma guerra dupla

Pesquisadora revela em livro depoimentos sobre preconceitos e assédios sofridos pelas militares

ENTREVISTA
Helen Benedict

NOVA YORK. As militares americanas estão travando uma guerra mais dura que a dos homens nas frentes de batalha no Iraque. É o que afirma a professora Helen Benedict, da Universidade de Columbia, em Nova York, que está lançando o livro “The lonely soldier: the private war of women serving in Iraq” (“Soldado solitário: a guerra particular das mulheres que servem no Iraque”, sem título em português) com o selo da Beacon Press. Helen entrevistou veteranas de guerra no Iraque e verificou que as mulheres combatentes não aprendem a defender-se apenas do inimigo: elas precisam ficar alerta para não se tornarem vítimas de estupro, na maioria das vezes praticados pelos soldados de seu próprio batalhão, aqueles mesmos que deveriam protegê-las de todo e qualquer risco de ataque. Nesta entrevista, Helen Benedict fala sobre as batalhas das mulheres combatentes no Iraque.

Marília Martins
Correspondente

O GLOBO: Seu livro denuncia frequentes abusos sexuais de mulheres militares por soldados de seu próprio batalhão. Como o comando militar americano reagiu às denúncias?

HELEN BENEDICT: Eles não responderam a nenhum livro publicado sobre as Forças Armadas.

Esta é a politica de todo o comando militar americano: responderam com o silêncio. Mas tive muitas respostas individuais de veteranos de guerra ou de familiares de militares mortos e feridos.

E, claro, as mulheres entrevistadas ficaram muito emocionadas em encontrar alguém que ouvisse suas histórias.

Uma das veteranas diz que sempre andava com uma faca escondida na meia para defenderse não dos inimigos e sim dos próprios companheiros de batalhão. Isto revela a falta de disciplina nas tropas? Qual a origem deste comportamento predatório dos soldados?

HELEN: Tradicionalmente, o serviço militar é uma carreira masculina. As batalhas foram historicamente vistas como provas de masculinidade, sempre relacionadas a demonstrações de força. Hoje, quando as mulheres são admitidas no serviço militar, muitos homens se ressentem.

Eles não querem vê-las ocupar um lugar que sempre havia sido reservado para eles, e muito menos em postos de comando. Por isto, os assédios sexuais dão vazão a este ressentimento. Também por isto tantos comandantes militares têm reservas a mulheres e chegam a tratá-las mal.

Uma das veteranas que entrevistei chegou a me dizer que logo ela compreendeu que as mulheres no serviço militar são sempre vistas como prostitutas ou como lésbicas, e recebem o tratamento que costuma corresponder a elas.

Uma das mulheres entrevistadas para o seu livro e que se tornou uma porta-voz militante dos direitos femininos nas Forças Armadas é Janet Karpinski, militar que se envolveu no escândalo de tortura em Abu Ghraib. Isto não compromete a credibilidade das denúncias de violência contra mulheres?

HELEN: Sem dúvida. Janet Karpinski tem sua credibilidade altamente comprometida. Muita gente diz que suas denúncias são vinganças contra os homens que a expulsaram do serviço militar.

Mas, apesar disto, suas denúncias são verdadeiras.

Ela denunciou que três mortes de mulheres combatentes no Iraque por desidratação foram ocasionadas porque elas se recusavam a beber líquidos após as 14h, para não terem que ir ao banheiro sozinhas, de noite, uma vez que se tornavam presas fáceis de assédio sexual.

Os motivos que levam as mulheres ao alistamento militar são diferentes dos que levam os homens? HELEN: Não. Basicamente as principais razões para o alistamento são a busca de um bom emprego, com um bom plano de saúde e assistência para familiares. Há também quem se aliste por patriotismo. Há os que querem viajar, há os que querem fugir de um lar conturbado. A única diferença é que para os homens existe a mística de que o serviço militar é uma prova de masculinidade, uma diferença cultural importante.

A frente de batalha é mais dura para as mulheres que para os homens?

HELEN: Sim. Elas precisam defender -se duplamente: dos inimigos e de seus companheiros. E depois, na volta para casa, elas têm um período de estresse pós-traumático muito mais conturbado, por enfrentar um cotidiano submetidas a esta dupla ameaça de violência.

O Globo, 12 de maio de 2009

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May 9, 2009

André Toral vai fundo nos ritos do canibalismo


Historiador e antropólogo lança Os Brasileiros, em que revê a antropofagia no século 16, e diz que não quer fazer papo-cabeça

Jotabê Medeiros

Historiador e antropólogo, professor da Faculdade de Comunicações e Artes Plásticas da Faap, o paulistano André Toral diz que só tem um medo quando vai dormir: é de que confundam suas histórias em quadrinhos com HQs acadêmicas, com papo-cabeça de historiador.

"Quero fazer algo que lide sempre com o prazer da leitura de HQs. Estou mais preocupado com uma verdade gráfica do que com um conjunto de informações coerentes", afirma.

É um medo bobo. Os Brasileiros, novo e fabuloso álbum de Toral, não corre o menor risco de ser confundido com uma tese ilustrada. Dinâmico, envolvente, com histórias não raro violentas - mas de uma violência assustadoramente natural -, o álbum pode até ser lido como um "antimanifesto Sérgio Buarque de Holanda".

Isso porque o exame da identidade brasileira, em Toral, passa léguas da tese da cordialidade do brasileiro. "O que eu quero mostrar é essa duplicidade do brasileiro. Porque eu não acredito que existe uma condição brasileira, mas uma identidade que se constrói, que está em movimento. É essa condição plural que eu ilustro", diz.

Esse conceito sempre em transformação começa com muita violência no Brasil do século 16. O primeiro traço distintivo da cultura brasileira, o canibalismo, praticado entre inimigos rituais (tupinambás e tupiniquins) é a matéria-prima das histórias.

"Nessa guerra de vingança, a violência sistematizada aparece num conjunto cerimonial. Os índios consideravam que ser comidos pelos vermes era uma morte de covardes. A morte gloriosa era ser devorado pelo inimigo, era a melhor morte, era o destino ideal para um guerreiro."

As histórias que se sucedem vão mostrando como os europeus utilizaram essa característica para obter escravos e em seu proveito. A naturalidade da violência vai se incorporando à natureza nacional a partir dessas situações. "Sou contra essa história de ficarem vitimizando os índios", diz o desenhista. "O que pretendo é jogar a pessoa, o leitor, para uma outra realidade, deslocar sua visão. Aqueles brasileiros do século 16 também fomos nós, e é por isso que a identidade é um conceito sempre em transformação."

Parte das histórias do álbum Os Brasileiros é feita em nanquim (especialmente os desenhos mais antigos); a outra parte a lápis. André Toral considera que é a própria manifestação de sua evolução como artista de quadrinhos - o nanquim é mais sério, requer mais cuidado; o lápis é menos comprometido, representa mais a descontração do meio.

Ele diz que vê o seu leitor como um cidadão que começou a ler HQs com as histórias da Mônica, do Super-Homem, as aventuras Marvel, "e agora não consegue mais ler isso".

Ele próprio é personagem de uma de suas histórias, a mais curta de todas, A Alma que Caiu do Corpo. Ele está em um trabalho de campo, na pele de antropólogo, e escuta uma história de uma mãe indígena, e resolve ir tirá-la a limpo.

André Toral considera que o quadrinista é um "diretor de cinema em miniatura", que vive da obsessão hitchcockiana de "controlar tudo, cada pulga de uma cena". Ganhador de dois prêmios HQ Mix, ele nos reapresenta o Brasil em seu novo trabalho.


Perfil

André Toral, 51 anos, estreou nas HQs em 86, com a história Pesadelos Paraguaios, na extinta revista Animal. Em 99, ganhou o HQ Mix de roteirista por Adeus, Chamigo Brasileiro.

Estadão, 9 de maio de 2009

Quintanilha e os sábados na periferia



Brasileiro, que Aldir Blanc define como 'Rossellini tupiniquim', desenha na Espanha e faz crônica visual de temas brasileiros


Jotabê Medeiros


Algumas vezes, o leitor de periódicos espanhóis como El País e La Vanguardia vai encontrar ilustrações nas páginas daqueles jornais assinadas por Marcelo Quintanilha. Freelancer que vive em Barcelona desde o início dos anos 2000, o brasileiro Quintanilha já assinou histórias no Brasil sob o pseudônimo Marcello Gaú.

Diz que foi para a Espanha primeiro porque adora a cidade onde vive, e não propriamente em busca de um Eldorado da ilustração. "O mercado espanhol não está muitos passos na frente do mercado brasileiro no que diz respeito a quadrinhos. Aqui, da mesma forma que no Brasil, as principais editoras concentram seus esforços em editar material norte-americano, francês ou japonês", ele pondera.

Considerado pelo letrista Aldir Blanc como "o Rossellini tupiniquim", por causa de seu estilo realista, ele elaborou sofisticadas crônicas visuais em seu novo trabalho, Sábado dos Meus Amores (lançamento da Editora Conrad). As histórias são simples, mas possibilitam mergulhos vertiginosos na natureza nacional.

"O aspecto principal do meu trabalho é lidar com temas como futebol, desamores, cotidiano de bairros populares que são sempre recorrentes nas minhas histórias e que estão intimamente ligados à vida brasileira. E minha intenção é a comunicação; chegar até pessoas que se identifiquem com esse universo, que o reconheçam como parte de si mesmas", diz o autor.

Há também um grande componente lírico na obra Sábado dos Meus Amores, para que os leitores não pensem que o título não tem cabimento. O amor de uma moça simples semianalfabeta por um pescador sagaz é especialmente tocante. "Tiago é macumbeiro eu sou evangélica mas eu vou rezar pra Iemanjá trazer o barco dele de volta são e salvo", ela escreve em sua cartilha.

O trabalho de Quintanilha está mais impregnado de Brasil do que da maioria dos autores contemporâneos. Foi ele o escolhido, na série de álbuns que mostravam cidades brasileiras, para desenhar Salvador, na Bahia, num projeto especial da editora Casa 21 (o francês Jano desenhou o Rio de Janeiro e o inglês David Lloyd desenhou São Paulo).

Ainda assim, raros trabalhos parecem se inserir com tanta sem-cerimônia no universo visual das HQs europeias - por vezes, lembra muito Miguelanxo Prado, gênio da Galícia. Ele parece dar seguimento a uma tradição que foi brilhantemente iniciada com pioneiros como Ângelo Agostini e depois Jayme Cortez e Flavio Colin.

"Como meus mestres, se podemos dizer dessa forma, posso citar artistas como John Buscema, Garcia-Lopez, François Boucq, Crepax, E. P. Jacobs ou Frank Hampson", ele afirma. Ou seja: ele vai de Conan, o Bárbaro, ao erotismo voyeurístico de Valentina. "Flavio Colin, por outro lado, é uma referência não só para mim, mas para todos os que estão ligados aos quadrinhos no Brasil, pela honestidade que sempre teve para consigo mesmo, assim como para com seus leitores. Por seu amor incondicional aos quadrinhos, por seu estilo único, que só poderia ser definido se se pudesse traduzir em papel a madeira entalhada."

Além de trabalhar na série de quadrinhos Sept Balles Pour Oxford, em parceria com Jorge Zentner e Montecarlo (para a editora belga Editions du Lombard), ele faz ilustrações para revistas brasileiras e foi premiado nas bienais de quadrinhos do Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Também colabora com a revista virtual Zé Pereira, que tem várias HQs dele postadas (http://www.revistazepereira.com.br/category/hq/).

Quintanilha, que já tem mais de 20 anos de carreira, sempre se batendo para publicar num mercado rarefeito, não avalia com entusiasmo desmesurado o momento brasileiro de quadrinhos. "Esse mercado ainda é incipiente e as iniciativas de muitas editoras em lançar títulos na esteira da visibilidade que os quadrinhos têm hoje não necessariamente colabora para sua consolidação. É difícil dizer o que pode decorrer do momento que vivem os quadrinhos no Brasil, quando os títulos migram cada vez mais para as livrarias e lojas especializadas, mas, sem dúvida, pode ser um passo importante para conquistar novos leitores."


Perfil

Marcelo Quintanilha nasceu em Niterói (1971), e já desenhou para Heavy Metal, General e Nervos de Aço. Em 1999, saiu seu primeiro álbum ilustrado, Fealdade de Fabiano Gorila.

Estadão, 9 de maio de 2009

May 4, 2009

Geisel fez cerco à imprensa nanica

Papéis mostram que presidente autorizou ministro da Justiça a promover ação fiscal contra jornais alternativos

Wilson Tosta, RIO

Uma operação secreta de uso da Receita Federal para exterminar a imprensa alternativa foi desencadeada entre 1976 e 1978 pelo governo Ernesto Geisel (1974-1979), mostram documentos sigilosos da extinta Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça (DSI-MJ) obtidos pelo Estado.

Embora notabilizado pela suspensão da censura a jornais, pelo fim da tortura de presos políticos e pela distensão "lenta, segura e gradual", o general, penúltimo ditador do ciclo militar de 1964, autorizou a ofensiva contra os pequenos veículos em despachos com o então ministro da Justiça, Armando Falcão. O ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, concordou com a ação, proposta pelo II Exército - hoje Comando Militar do Sudeste, de São Paulo.

A autorização de Geisel para um ataque fiscal ao jornal Versus está documentada em ofício de 1º de setembro de 1978. Nele, o chefe de gabinete do Ministério da Justiça, Walter Costa Porto, transmite pedido da Polícia Federal para liberar a ação. A resposta vem manuscrita. "Confidencial. Conversei, no despacho de hoje, com o Exmo. Sr Presidente da República, que aprovou a medida", escreve Falcão. "Prepare-se, assim, o competente expediente ao Sr. Ministro de Estado da Fazenda. Em 11.9.1978. A. Falcão." Uma lista com Versus e outras 41 publicações que deveriam sofrer o mesmo processo da Receita, entre elas O Pasquim e Movimento, integra o dossiê.

Nos documentos, a operação secreta é tratada com naturalidade pelos ministros e por integrantes de órgãos de repressão, em correspondências oficiais de 1976 a 1978. Simonsen, por exemplo, em ofício de 1º de abril de 1977, solicita que "as indicações das empresas a serem auditadas sejam acompanhadas de todas as informações disponíveis no Ministério da Justiça e nos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Informações, bem como sejam instruídos os órgãos regionais e sub-regionais do Departamento de Polícia Federal (...)." E expõe o objetivo: "Subsidiar a aplicação de providências legais (...) no sentido de promover, se for o caso, o encerramento de atividades desse tipo de empresa".

Em outro ofício, de 26 de abril de 1978, Costa Porto encaminha informação do "senhor ministro-chefe do SNI" - João Figueiredo, posteriormente presidente da República. Ele reproduz o texto de Figueiredo: "Considerando que a imprensa nanica continua proliferando, conclui-se que a operação dos Ministérios da Fazenda e Justiça, visando a retirar de circulação esses jornais cuja viabilidade econômica é questionável, está resultando infrutífera".

O mesmo Costa Porto, em documento de 1º de setembro de 1978, mostra que Geisel acompanhou a operação contra os alternativos por muito tempo. Ele lembra a Falcão que, em 1º de agosto de 1977, o ministro da Justiça levara o assunto ao presidente, que "decidira, verbalmente, aguardar".

Humberto Barreto, ex-secretário de Imprensa do presidente, nega ter sabido dela. "Por mim, não passou", diz. O ex-senador e ex-ministro Jarbas Passarinho também diz desconhecer a articulação. "O que eu ouvia dos líderes do presidente é que ele tinha aberto a liberdade de imprensa, exceto para a imprensa nanica", explica. "Ela era muito violenta." Falcão foi procurado, por intermédio de familiares, mas não deu entrevista. Em seu livro Tudo a Declarar, não menciona o ataque fiscal, mas reconhece que centralizou a censura. Geisel morreu em 1996, e Simonsen, em 1997.

ARTICULAÇÃO

O processo "de caráter sigiloso" foi iniciado no Ministério da Justiça pelo Ofício 341/Sec/Gab, de 9 de setembro de 1976. No texto, o diretor-geral da PF, Moacyr Coelho, envia a Falcão documentação do II Exército "contendo sugestão de emprego dos órgãos fazendários, dentro da área de esfera de suas atribuições, na fiscalização de publicação de influência ou orientação esquerdista".

A Informação número 1.343/76-CB, de 23 de agosto de 1976, da 2ª Seção do Comando da Força em São Paulo, alertava que a ação policial da censura vinha criando uma série de incidentes que desgastavam o governo e serviam de "bandeira para as esquerdas mobilizarem a classe jornalística". Acrescenta, ainda, ser "mais eficaz a censura fiscal", que poderia determinar "o fechamento de tais publicações pela atividade de fiscalização".

Simonsen endossou operação

Em ofício de 1º de abril de 1977, o então ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, afirmou que a ação fiscal contra jornais de oposição sugerida pelo II Exército poderia ser uma "providência auxiliar às medidas de preservação da Segurança Nacional" - termo da época para designar iniciativas de repressão. No texto, o economista reconhece explicitamente qual seria o objetivo: fechar, pela fiscalização do recolhimento de impostos, os jornais alternativos.

"Creio que, através de auditoria contábil-fiscal nas empresas referidas e, quando necessário, nas pessoas físicas de sócios e diretores (...) poderá ser possível a obtenção de evidências ou provas documentais suficientes não só para a instauração (...) de processo judicial por crime contra a Fazenda Nacional, mas, também, para subsidiar a aplicação de providências legais (...) no sentido de promover, se for o caso, o encerramento das atividades desse tipo de empresa", escreve Simonsen.

ROTEIRO

Foi o comando do II Exército, contudo, que traçou o roteiro a ser seguido pela Receita Federal e outros órgãos fiscais no ataque fiscal à imprensa alternativa, no documento "Imprensa ?Independente?", assinado por Francisco Guimarães do Nascimento.

Depois de afirmar que as publicações alternativas eram "inviáveis economicamente", o autor lista o que deveria ser apurado por "fiscais da União, dos Estados e dos Municípios" sobre a imprensa alternativa. "1-Qual o Capital? 2-Qual a forma da sociedade? 3-Quais os acionistas? 3-1 -O imposto de renda destes comporta a condição de acionista, isto é, apresentam saldo a empregar? 3-2-Conta de lucros e perdas? 3-3 - Distribuição de dividendos? 3-4-Se houve prejuízo, como foi coberto, por quem e por quê? 4- Qual o corpo redatorial? (...)"

"A censura saiu dos grandes veículos no começo de 75, mas de Movimento, O São Paulo e Tribuna da Imprensa só saiu em junho de 1978", diz o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, ex-diretor de Movimento. "Acho que, como suspenderam a censura, resolveram atacar pelo outro lado."

Francisco Marsiglia, ex-diretor-administrativo do jornal, diz que, no início da publicação, em 1975, as ações fiscais eram normais, mas, no fim dos anos 70, a situação mudou, com ofensivas agressivas dos auditores. "Houve mesmo", diz. "Eu acompanhei de fora, porque já estava apenas como assessor, não era mais diretor. Os fiscais ameaçavam fechar o jornal."

O semanário, porém, morreu no início dos 80, alvo, como Versus e outros, de campanha terrorista e vítima das mudanças do País.


Estadão, 4 de maio de 2009