January 25, 2009
Na sala com The Edge, Page e White
Myrna Silveira Brandão
ESPECIAL PARA O JORNAL DO BRASIL, DE PARK CITY, EUA
Um dos destaques da mostra Documentário Espectrum, o longa It might get loud, de Davis Guggenheim, gerou muitos comentários no Festival de Sundance (cujos vencedores serão conhecidos na madrugada de hoje), a despeito de sua abordagem. Não se trata de uma biografia, não é um filme-concerto e, embora esteja classificado como um documentário, está um tanto distante do formato, pelo menos no sentido mais convencional do termo. Os próprios organizadores do festival o estão chamando de documentário spotlight.
O filme é simples assim: três ícones da guitarra são postos numa sala e convidados a tocar, bater papo e falar sobre seu trabalho. Eles são nada menos do que Jimmy Page (Led Zepelin), The Edge (U2) e Jack White (White Stripes). Guggenheim confirma que tinha uma idéia em mente, mas queria realmente fazer algo novo.
– Quase todos os documentários sobre música a que assisti me frustraram, porque tinham uma tendência de serem enciclopédicos ou laudatórios – analisa o diretor. – Para escapar dessa armadilha busquei três pessoas que amamos e que são artistas no mais pleno sentido do estado da arte.
De qualquer forma, tendo a guitarra elétrica como elemento central, o diretor do panfleto ecológico Uma verdade inconveniente fez um filme muito interessante que foi além da música e entrou em outros temas relacionados com cultura, processo artístico, resgate de memória e retrato pessoal.
A começar, é claro, pela ênfase na personalidade de cada um dos participantes. Page, o mais velho de todos, assume os cabelos brancos de seus 64 anos e parece bastante confortável no papel. The Edge, 47, deixa aflorar o tempo todo a personalidade sensível que é. Jack White, 33, se expressa num misto de contradições e incertezas. Cada um escolheu a própria forma para narrar sua história, contando como decidiram ser guitarristas, como é o processo de criação que utilizam e outras amenidades que, aparentemente, foram surgindo no decorrer das filmagens.
O objetivo, como informa o cineasta, era exatamente deixá-los à vontade, como se a câmera não existisse.
– Nós apenas juntamos os três músicos, trouxemos as guitarras, ligamos os amplificadores e fomos conversando e tocando durante três dias – contou Guggenheim , acrescentando que o astro mais difícil de conseguir foi Page. – Foi preciso ir a Nova York algumas vezes para negociar sua participação, que felizmente acabou acontecendo.
Isoladamente e em cenas específicas, cada membro do trio recupera lembranças de suas trajetórias. Page percorre uma casa de campo inglesa, onde o quarto álbum do Led Zeppelin foi gravado. The Edge visita o ginásio onde pela primeira vez teve contato com o U2. E Jack White volta no tempo indo a uma fazenda no Tennessee.
– Queria que cada um dos três contasse sua própria história e acho que as melhores entrevistas foram realizadas apenas comigo, sem a equipe de filmagem. Foram dois dias com cada um e eu fiquei muito satisfeito com os resultados.
25 de julho de 2009 : 01h00m
January 16, 2009
Onde quer que eu vá, ouço as mesmas comparações gastas
[se preferir ler no original sem a condensação do globo, clique aqui]
Robert Fisk
Tudo depende de onde se vive.
É a geografia da propaganda israelense, projetada para mostrar que nós — liberais vivendo em nossas seguras casas ocidentais — não compreendemos o horror das 20 mortes israelenses em dez anos e os milhares de foguetes e o trauma de viver perto de Gaza.
Esqueçam os mil palestinos mortos; viajar dos dois lados do Atlântico nestas semanas tem sido uma experiência instrutiva — para não dizer estranhamente repetitiva.
Eu estava em Toronto quando abri o “National Post” e vi Lorne Gunter tentando explicar como é se sentir sob o ataque de foguetes palestinos.
“Suponha que você viva no subúrbio de Don Mills, em Toronto”, escreve Gunter, “e moradores de Scarborough disparem cem foguetes por dia contra o seu quintal, a escola de seu filho”. Entendeu a mensagem? As pessoas de Scarborough são menos privilegiadas, geralmente imigrantes — muitos do Afeganistão — enquanto que os moradores de Don Mills são de classe média.
Nada como enfiar a faca na sociedade multicultural do Canadá para mostrar como Israel está sendo justo ao revidar.
Dias depois estou em Dublin.
Abro “The Irish Times” e uma carta do embaixador israelense tenta explicar como é ficar sob o ataque de foguetes palestinos. Já sabe o que vem a seguir? “O que você faria”, pergunta Zion Evrony, “se Dublin fosse alvo de oito mil foguetes...” E por aí vai. Desnecessário dizer que estou esperando que os mesmos escritores perguntem como nos sentiríamos se ficássemos sob ataque de aviões supersônicos e tanques e milhares de soldados que bombardeiam 40 mulheres e crianças numa escola e em uma semana matam centenas de civis.
Na Irlanda, minha justificativa jornalística favorita veio de Kevin Myers. “O número de mortos em Gaza, claro, é chocante.
Mas não se compara ao número de israelenses caso o Hamas seguisse seu curso.” Entendeu? O massacre em Gaza é justificado porque o Hamas faria o mesmo se pudesse, mesmo que não tenha feito.
Isso fez Fintan O’Toole, do “Irish Times”, dizer o impronunciável: “Quando vai expirar o mandato para vitimar? Quando o genocídio de judeus deixará de livrar Israel das exigências da lei internacional?” Tive um momento interessante numa palestra em Derry, quando uma pessoa na plateia perguntou se os Acordos da Sexta-feira Santa continham lições para o Oriente Médio. Sugeri que acordos de paz locais não são bons viajantes.
Terminei a semana numa discussão na BBC na qual um sujeito do “Jerusalem Post”, um da Al-Jazeera, um acadêmico britânico e Fisk dançaram os passos habituais em torno da catástrofe de Gaza. O momento em que mencionei as centenas de palestinos mortos e os 20 israelenses foi grotesco. Ouvintes pró-Israel me condenaram por sugerir (o que não fiz) que apenas 20 israelenses morreram em dez anos. Naturalmente, centenas de israelenses fora de Gaza morreram — mas também milhares de palestinos.
Meu momento favorito veio quando disse que jornalistas deveriam ficar do lado dos que sofrem. Se estivéssemos cobrindo o comércio de escravos no século XVIII, não daríamos tempo igual para o capitão do navio negreiro na cobertura.
Se fosse a libertação de um campo de concentração nazista, não daríamos o mesmo tempo para a SS. Nesse ponto, um jornalista do “Jewish Telegraph”, em Praga, respondeu que “o Exército israelense não é Hitler”. Mas quem disse que era?
Extremismo é o pior inimigo palestino
Por não ser especialista em assuntos militares, me absterei de julgar se o bombardeio israelense a Gaza poderia ter sido mais direcionado, menos intenso. E depois de décadas em que não me vi capaz de distinguir entre os bons mortos e os maus mortos ou, como Camus costumava dizer, entre as "vítimas suspeitas" e os "executores privilegiados", sinto-me também profundamente perturbado pelas imagens de crianças palestinas que foram mortas. Isso posto, e levando em conta que certos veículos de mídia se deixaram outra vez carregar pelos ventos da sandice -como costuma ser o caso sempre que Israel está envolvido-, gostaria de lembrar a todos alguns fatos:
1. Nenhum outro governo, nenhum país -a não ser o vilipendiado Israel, sempre demonizado- toleraria ter suas cidades como alvo de milhares de obuses a cada ano. A coisa mais notável nisso tudo, a verdadeira surpresa, não é a "brutalidade" de Israel, mas sim, literalmente, sua paciência.
2. O fato de que os mísseis Qassam e agora Grad do Hamas tenham causado tão poucas mortes não prova que são artesanais, inofensivos nem nada assim, mas sim que os israelenses se protegem, que vivem emparedados nas cavernas de seus edifícios, em abrigos: uma experiência fantasmagórica, suspensa, em meio ao som das sirenes e explosões. Já estive em Sderot; sei do que falo.
3. O fato de que, inversamente, o bombardeio israelense tenha causado tantas vítimas não significa, como proclamam zangadamente os oponentes, que Israel esteja envolvido em um "massacre" deliberado, mas que os líderes de Gaza optaram pela atitude oposta e estão expondo sua população, confiando na velha tática do "escudo humano". O que significa que o Hamas, como o Hizbollah dois anos atrás, está instalando seus postos de comando, suas casamatas, seus arsenais, nos porões de edifícios residenciais, hospitais, escolas, mesquitas. Eficiente, mas repugnante.
4. Há uma diferença crucial entre os combatentes que aqueles que desejam ter uma ideia "correta" sobre a tragédia e sobre as maneiras de pôr fim a ela precisam admitir. Os palestinos abrem fogo contra cidades, ou, em outras palavras contra civis (o que a lei internacional define como "crime de guerra"); os israelenses tomam por alvo objetivos militares e causam, sem que o desejem, baixas civis horríveis (o que a linguagem da guerra define como "dano colateral" e, embora terrível, indica uma verdadeira assimetria estratégica e moral).
5. Porque precisamos colocar os pingos nos is, recordemos uma vez mais um fato que a imprensa pouco citou e do qual não conheço precedente em qualquer outra guerra ou da parte de qualquer outro exército. Durante a ofensiva aérea, o Exército israelense apelou constantemente a moradores de Gaza que vivem perto de alvos militares para que deixassem essas áreas. Um ministro israelense disse que 100 mil pessoas foram contatadas. Isso não altera o desespero de famílias cujas vidas foram dilaceradas pela carnificina, mas não se trata de um detalhe totalmente desprovido de sentido.
6. Por fim, quanto ao famoso bloqueio total imposto a um povo faminto ao qual falta tudo nesta crise humanitária "sem precedentes": uma vez mais, a definição não é factualmente correta. Desde o começo da ofensiva terrestre, os comboios de assistência humanitária vêm cruzando incessantemente a passagem de Kerem Shalom. Segundo o "New York Times", em 31 de dezembro cerca de cem caminhões transportando suprimentos de comida e remédios entraram no território. E aproveito para invocar, nem que seja apenas para preservar a lembrança dessa verdade (pois creio que seria desnecessário dizê-lo, ou talvez seja melhor dizê-lo de vez), o fato de que os hospitais israelenses continuam a receber e tratar palestinos feridos, a cada dia. Nossa esperança deve ser a de que os combates se encerrem rapidamente. E que, ainda mais rápido, esperemos igualmente, os comentaristas recuperem o bom senso.
Eles descobrirão, quando isso acontecer, que Israel cometeu muitos erros ao longo de muitos anos (oportunidades perdidas, a longa negação quanto às aspirações nacionais palestinas, unilateralismo), mas que os piores inimigos dos palestinos são os líderes extremistas que jamais quiseram a paz, jamais quiseram um Estado e jamais pensaram em criar um país para o seu povo, ao qual preferem ver como instrumento e como refém. (Considerem a sinistra imagem do líder supremo do Hamas, Khaled Meshaal, que, quando a escala da resposta israelense tão ardentemente desejada ficava clara, limitou-se a declarar uma retomada das missões suicidas -e isso de seu confortável exílio e sua sinecura generosa em Damasco.) Restará uma de duas opções. Ou os líderes do Hamas restabelecem a trégua que violaram, e aproveitam para declarar nula uma agenda que se baseia na pura rejeição à "entidade sionista" -e ao fazê-lo se reintegrem ao vasto partido que favorece um compromisso e que (Deus seja louvado) jamais deixou de avançar na região-, permitindo que a paz seja estabelecida; ou eles continuarão a encarar o sofrimento dos civis palestinos apenas em termos das paixões que isso acalenta, de seu ódio insano, niilista, além das palavras. Se for este o caso, serão não apenas os israelenses, mas os palestinos, que precisarão ser liberados da escura sombra do Hamas.
O francês BERNARD HENRI-LÉVY é filósofo. Este artigo foi distribuído pelo New York Times Syndicate
Tradução de PAULO MIGLIACCI
A guerra perdida
Notem que digo “raciocínio”, porque me parece impossível, nas atuais circunstâncias, chegarmos a qualquer coisa sequer remotamente parecida com “razão”.
No momento, nada que se diga ou se mostre em favor de Israel terá qualquer efeito.
Para além da presente guerra propriamente dita, há outra que, há tempos, foi perdida pelo país — cuja capacidade de fazer propaganda, ao contrário do que acredita tanta gente, é inversamente proporcional ao seu poderio militar.
Além da amizade com os Estados Unidos, vilão preferido de meio mundo, e do questionável rótulo de “direita” que lhe foi pespegado, há uma série de fatores culturais e políticos que atuam permanentemente contra Israel. Para ficar apenas num ponto de óbvio apelo emocional, seus mortos e feridos nunca são filmados ou fotografados, salvo em hospitais ou caixões e, ocasionalmente, pela imprensa estrangeira. Os mortos tampouco são exibidos em procissões; eles têm sido, atentado após atentado, guerra após guerra, mortos que se contam em números — mas o que é um número diante da foto de uma criança morta?! Ao mesmo tempo, ao longo dos últimos anos, quando foguetes do Hamas eram lançados sobre o sul de Israel, as crianças iam para abrigos subterrâneos, e não para o meio da rua, providencialmente armadas com estilingues.
Ora, a foto de uma escola (vazia) destruída por um “míssil caseiro” (seja isso lá o que for) não tem uma fração do impacto da foto de um garoto de estilingue diante de um cenário de destruição.
Isso não justifica matança alguma, seja de um lado, seja de outro; mas o fato é que se criou, assim, a singular percepção de um povo intrinsecamente mau e sanguinário, que ataca criancinhas por pura maldade, contra um povo intrinsecamente bom e coitado, que só explode civis por falta de escolha.
Por ser um país desenvolvido cercado de vizinhos em diferentes estágios de “civilização”, Israel paga, guardadas as devidas proporções, o preço que a classe média paga, no Brasil, em relação à criminalidade nas comunidades carentes: para uma certa visão míope, é sempre a culpada, porque, em tese, nessa forma enviesada de análise, os bandidos são sempre inocentes — são apenas pobres reagindo à desigualdade social (o que, claro está, é uma baita ofensa à imensa maioria dos pobres, que sofrem na miséria sem nunca pensar em delinquir). Enquanto isso, os verdadeiros culpados pelas desigualdades, lá como cá, não são mencionados nem en passant — e, ainda que o fossem, continuariam onde sempre estiveram, ou seja, nem aí.
Já os líderes mundiais que não perderam tempo em se declarar contra a “reação desproporcional” de Israel pouco estão se lixando para o sofrimento das vítimas. Se a sua preocupação fosse realmente humanitária, o Sudão, por exemplo, não sairia das manchetes; só que as vítimas do Sudão não dão ibope.
Quando a China entrou de sola no Tibete, ainda outro dia, ouviram-se, no máximo, ligeiros resmungos protocolares — e, ainda assim, só porque o Dalai Lama é um veinho carismático, com bom trânsito em Hollywood.
Isso sem falar no antissemitismo, que, invariavelmente, aproveita para dar as caras quando tem a ótima desculpa de uma guerra para acobertá-lo. “Israelense” e “judeu” não são sinônimos: há incontáveis cidadãos israelenses que não são judeus, como há milhões de judeus que não são israelenses. Ainda assim, os dois termos se equivalem para efeitos de noticiário, de artigos, de posts enraivecidos em blogs. Seria até compreensível se a mesma equivalência servisse para “palestinos” e “muçulmanos”, mas esta é sempre cuidadosamente evitada. Às vezes, o uso (ou a omissão) das palavras revela muito mais do que o seu significado.
Apoiar os palestinos, o Hamas, o Hezbollah e os países árabes de modo geral é chique, é bacana e é uma garantia de popularidade com a soi-disant “esquerda”. Israel não terá o apoio da intelligentsia — que em geral é de uma extrema covardia e ignorantsia — nem se for completamente aniquilado, como quer o Hamas.
Aí ainda vamos ouvir o “fizeram por onde” que tanto se disse em relação ao ataque ao WTC; as Nações Unidas vão fazer tsk, tsk, o Papa vai condenar vagamente o exagero — e estaremos conversados.
Mas a verdade é que eu nem devia estar falando sobre isso. Minha opinião é descartada de saída em qualquer discussão a respeito do Oriente Médio: como venho de uma família dizimada pelo Holocausto, sou suspeita e, portanto, não posso me manifestar.
Cansei de ouvir isso até de pessoas supostamente inteligentes — e, de cansada, não discuto mais. Se o que você diz não vale nada a priori, o mais sensato é seguir os conselhos do professor Higgins e falar apenas sobre o tempo e a saúde.
Como é, tem feito muito calor por aí?
Cora Rónai
(O Globo, 15 de janeiro de 2009)