February 2, 2017

Ministro do STF defende legalização de drogas para reduzir número de presos


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— A gente deve legalizar a maconha. Produção, distribuição e consumo. Tratar como se trata o cigarro, uma atividade comercial. Ou seja: paga imposto, tem regulação, não pode fazer publicidade, tem contrapropaganda, tem controle. Isso quebra o poder do tráfico. Porque o que dá poder ao tráfico é a ilegalidade. E, se der certo com a maconha, aí eu acho que deve passar para a cocaína e quebrar o tráfico mesmo — disse.

Barroso ressaltou que a posição não é ideológica a favor das drogas, mas pelo combate ao tráfico:

— Não acho que droga seja bom. Não sou a favor de droga. Eu sou contra a criminalização como ela é feita no Brasil, porque as consequências são piores do que os benefícios. Eu educo meus filhos numa cultura de não consumir droga. Mas acho que a melhor forma de combater a droga é legalizando.

Em 2015, o plenário do STF começou a julgar ação que chegou ao tribunal por recurso da Defensoria Pública em processo que envolvia o caso de um presidiário flagrado na prisão com três gramas de maconha em julho de 2009. Ele foi condenado a prestar serviço comunitário por dois meses. A Defensoria Pública contestou a constitucionalidade da Lei de Drogas. Em sessão em setembro de 2015, três dos 11 ministros do STF votaram pela liberação do porte de maconha para uso pessoal. O julgamento começara no mês anterior, quando o relator, ministro Gilmar Mendes, defendeu a descriminalização do porte para uso de todo tipo de droga. Edson Fachin e Luís Roberto Barroso também votaram pela descriminalização, mas só para o porte de maconha. Os três declararam inconstitucional o artigo 28 da Lei de Drogas, que considera criminoso quem adquire, guarda, transporta ou leva consigo drogas para consumo pessoal.

O julgamento, porém, foi interrompido por pedido de vista de Teori Zavascki. Com a morte do ministro, o sucessor dele, ainda não escolhido pelo presidente Michel Temer, herdará o processo. A expectativa é de que o caso demore a ser devolvido ao plenário, porque o novato ainda teria que estudá-lo caso antes de elaborar o voto. A decisão do STF quanto à questão será aplicada em processos semelhantes. Existem hoje ao menos 315 ações desse tipo paralisadas em todo o país aguardando posição do Supremo. Barroso, no entanto, explicou que não cabe ao Judiciário decidir sobre a legalização ou não das drogas. Essa seria uma tarefa para o Congresso Nacional — que, segundo ele, precisa abandonar os preconceitos antes de analisar o tema:

— Isso depende de legislação. É preciso superar preconceitos e lidar com o fato de que a guerra às drogas fracassou e agora temos dois problemas: a droga e as penitenciárias entupidas de gente que entra não sendo perigosa e sai perigosa. Eu sei que há muito preconceito, mas a questão vai ser ou fazer logo, ou fazer ali na frente, porque não tem alternativa — opinou o ministro.

MUDANÇA DE POSIÇÃO É ELOGIADA

Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro e secretário-geral da LEAP Brasil (Agentes da Lei Contra a Proibição), Orlando Zaccone recebeu com surpresa e otimismo as declarações de Barroso, já que anteriormente o ministro havia apenas declarado apoio à descriminalização da maconha:

— É um sinal muito bom o avanço da posição do ministro quanto a este assunto. A legalização é a única forma racional para enfrentar o problema das drogas hoje. Precisamos regular este mercado.
Pegando emprestada expressão muito usada pelos partidários do proibicionismo, o delegado acredita que a legalização da maconha por ser “a porta de entrada” para a de outras substâncias que foram alvo do que chamou de “processo de demonização” enquanto o consumo de álcool e tabaco, por exemplo, é permitido e chegou a ser até estimulado.

— Defendemos a legalização como caminho para enfrentar a violência, que é resultante da proibição, e não do consumo — diz. — O proibicionismo produz uma violência que as drogas por si só não são capazes de produzir. Ele gera violência entre grupos que disputam o mercado proibido e destes grupos com a polícia em enfrentamentos que acabam atingindo pessoas, crianças, que nunca tiveram contato com este mundo. Mas não adianta legalizar só a maconha se o mercado da cocaína vai continuar violento, assim como do crack etc.

A diretora-executiva do Instituto Igarapé, Ilona Szabó, também destacou a mudança de posição do ministro. Segundo ela, é positivo que a mais alta corte brasileira esteja atenta aos estudos e práticas internacionais de países que estão indo na direção oposta à guerra às drogas.

— No recurso que está suspenso, o ministro deu um voto a favor só da descriminalização do consumo da maconha, então claramente ele mudou de posição, o que indica que mudaria seu próprio voto quando o processo voltar a andar — disse. — Ter um juiz da Suprema Corte que consegue mudar de opinião é um excelente sinal de que as posições ideológicas são passíveis de serem abandonadas em favor de posições técnicas. Um dos caminhos de alternativa a guerra às drogas é experimentar com modelos de regulação. Para o Brasil, descriminalizar já é tarde, isso tem que ser para ontem.

Nem todos, porém, acham que a legalização é a solução. Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) afirma ser “uma lorota” dizer que a legalização vai acabar com o tráfico:

— Quem trafica vai continuar traficando. Trata-se de ir na contramão do que se pode fazer sobre a saúde pública brasileira. A maconha é uma das grandes causadoras de transtornos mentais. Provoca um quadro psiquiátrico irreversível. A legalização só vai aumentar o acesso de milhões de adolescentes à maconha, sendo que estes jovens ainda estão com o cérebro em formação. Não se pode trocar a diminuição de presidiários por um aumento de doentes mentais.


O GLOBO, 2 DE FEVEREIRO DE 2017



February 1, 2017

Base de Temer tenta aprovar terceirização sem aval do Senado


RANIER BRAGON
DE BRASÍLIA

Com a indicação do Senado de que não pretende votar tão cedo o projeto que regulamenta as terceirizações no país, a base de apoio a Michel Temer na Câmara quer colocar a medida em vigor mesmo sem aval atualizado dos senadores.

A manobra é retomar um outro projeto sobre o tema, de 18 anos atrás –apresentado no primeiro mandato do tucano Fernando Henrique Cardoso–, já aprovado na Câmara e no Senado, mas pendente de nova e última votação pelos deputados federais.

Esse projeto foi aprovado no Senado em 2002, há 14 anos, e desde então está engavetado na Câmara.
A base de Temer na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara retomou a análise dessa proposta nesta terça-feira (13). A sessão, porém, foi encerrada antes da discussão da medida.

A ultima proposta de terceirização analisada pela Câmara é a de 2015. Em linhas gerais ela permite às empresas terceirizar toda a sua produção, incluindo a chamada "atividade-fim". Por exemplo, metalúrgicos em uma fábrica de veículos, enfermeiros em hospitais e um caixa em um banco.
Hoje a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho impede a terceirização de atividades-fim, permitindo contratações de terceirizados apenas para as atividades-meio (um analista de sistema em uma fábrica de carros, por exemplo).

O projeto de 18 anos atrás, retomado nesta terça pela Câmara, contempla esse ponto e vai além em relação ao que os deputados aprovaram no ano passado –estabelece que as empresas terão responsabilidade apenas subsidiária, e não solidária, em eventuais débitos trabalhistas e previdenciários dos funcionários da terceirizadora.

Ou seja: pelo projeto de 2015 dos deputados, o funcionário terceirizado poderá cobrar na Justiça da terceirizadora e da empresa que a contratou (ambas responde solidariamente) eventuais débitos trabalhistas e previdenciários. Pelo projeto analisado nesta terça, o funcionário terá primeiro que cobrar da terceirizadora. Somente esgotado essa etapa e caso não receba os débitos, poderá acionar a empresa-mãe.

"Eventual diferenciação entre atividade-fim e atividade-meio mostra-se um empecilho, pois as empresas da atualidade trabalham em redes de produção e, por isso, precisam contratar de tudo. O importante é que contratem de forma correta", escreveu em parecer apresentado à CCJ da Câmara o atual relator da proposta, Laércio Oliveira (PR-SE).

"Essa proposta remete o país ao século 19, anterior aos direitos trabalhistas e previdenciários", protestou o deputado Patrus Ananias (PT-MG).
FOLHA DE SÃO PAULO

Militares se aproveitam da crise política para manter privilégios


raquel landim

O ministro da Defesa, Raul Jungmann, tentou nesta quinta-feira (8) convencer a opinião pública de que os militares —categoria excluída até agora da reforma da Previdência— estão dispostos a fazer sua parte para o ajuste das contas públicas.

Ele não detalhou o que isso significa, mas os dados que apresentou partem de uma premissa arcaica e equivocada e demonstram que a caserna não cogita abrir mão dos privilégios dos quais desfruta.
Hoje, os contribuintes são obrigados a pagar integralmente os salários dos militares por décadas depois que eles deixam o quartel, por causa dos "serviços que prestam ao país".

É isso que Jungmann não diz claramente quando afirma que há um "equívoco" na contabilidade do deficit das Forças Armadas, porque as despesas com militares ativos e inativos são um "encargo da União", custeado pelo orçamento do Ministério da Defesa.

A lógica dos militares é que eles não se aposentam, mas entram para a "inatividade". Hoje, um militar passa para a "reserva" após 30 anos de serviço. Em teoria, fica à disposição para ser convocado em caso de guerra, o que felizmente não acontece no Brasil há muito tempo. Após completar 65 anos, é definitivamente "reformado".

Na prática, isso quer dizer que um militar que inicia a carreira aos 18 anos chega à reserva aos 48 anos —uma idade com plena capacidade de trabalho. Se viver até os 75 anos (média da expectativa de vida do brasileiro), os contribuintes pagarão sua remuneração integral durante 27 anos de "inatividade" —praticamente o mesmo tempo que o profissional esteve na ativa.

O ministro acredita que esse sistema é justo e, por isso, defende que os R$ 18,59 bilhões gastos com militares inativos não devem ser incluídos no deficit previdenciário. Ele diz que o rombo é de "apenas" R$ 13,85 bilhões, valor das pensões deixadas para viúvas e dependentes.

Se somarmos os dois números, chegaremos aos quase R$ 35 bilhões estimados pelo Ministério da Fazenda para o deficit previdenciário das Forças Armadas. Os militares são hoje responsáveis por metade do rombo de cerca de R$ 70 bilhões da Previdência dos servidores públicos.

É verdade que os militares recebem tratamento diferenciado em vários países do mundo por causa das especificidades da carreira, como a proibição de fazer greve, participar de sindicatos ou concorrer a cargo eletivo. Mas nem de longe os privilégios são parecidos com os que ocorrem no Brasil.

Um dos méritos da reforma proposta pelo governo Temer é não só aliviar a situação fiscal do país, mas também reduzir a vergonhosa desigualdade do sistema previdenciário.

Se não for desfigurada pelo Congresso, a reforma vai levar todos os brasileiros a se aposentarem após 65 anos, depois de contribuir por quase 50 anos. Nesse novo contexto, os privilégios das Forças Armadas são inaceitáveis.

Ao sugerir nos bastidores que a reforma da Previdência pode provocar a insatisfação da tropa em um momento delicado para o país, os militares se aproveitam da fragilidade política do governo Temer e do trauma provocado pela ditadura militar para manter seus privilégios.





 FOLHA DE SÃO PAULO

January 30, 2017

Ignorância de Trump ameaça sistema de comércio internacional


paul krugman

 

O regime Trump-Putin começou há menos de uma semana e já está ficando difícil acompanhar os desastres. Você ainda se lembra do faniquito do presidente sobre a presença embaraçosamente pequena de público em sua posse? Bem, isso já parece história antiga.

Mas quero dedicar minha atenção, só por um minuto, à história que dominou o noticiário na quinta-feira, antes que o tumulto quanto à proibição de entrada de refugiados se tornasse o assunto mais debatido.

Como você talvez se lembre –ou talvez não, já que as loucuras se sucedem muito rápido–, a Casa Branca pareceu inicialmente ter dito que imporia uma tarifa de 20% aos produtos importados do México, mas talvez estivesse falando de um plano de impostos, proposto pelos republicanos da Câmara, que não dizia coisa alguma nesse sentido; em seguida, a presidência anunciou que estava apenas mencionando uma ideia; e depois abandonou o assunto completamente, pelo menos por enquanto.

Em termos de maldade bruta, falar à toa sobre tarifas não se equipara a fechar a porta aos refugiados –e no dia que honra as vítimas do Holocausto, aliás. Mas a história sobre as tarifas ainda assim exemplifica o padrão que já estamos vendo nessa desordenada administração –um padrão de disfunção, ignorância, incompetência e confiança traída.

A história, como tantas outras coisas nas últimas semanas, parece ter começado com o ego inseguro do presidente Donald Trump: as pessoas estavam zombando dele porque, ao contrário do que prometeu em campanha, o México não pagará pela muralha inútil ao longo de sua fronteira. Por isso, o porta-voz do presidente, Sean Spicer, decidiu declarar que um imposto cobrado na fronteira sobre os produtos mexicanos bancaria, na prática, o custo da muralha. Pronto!

Como os economistas não demoraram a apontar, no entanto, tarifas não são pagas pelo exportador. Com algumas pequenas ressalvas, elas são basicamente pagas pelos compradores –ou seja, um imposto sobre os bens mexicanos importados seria um imposto sobre os consumidores dos Estados Unidos. E seriam eles, e não o México, que terminariam pagando pela muralha.

Ops. Mas esse não era o único problema. Os Estados Unidos são parte de um sistema de tratados –um sistema criado por nós– que determinam regras para a política de comércio internacional, e uma das principais regras é que não se pode elevar unilateralmente tarifas que tenham sido reduzidas em negociações anteriores.

Se os Estados Unidos simplesmente violarem essa regra, as consequências seriam severas. O risco não seria tanto de retaliação –ainda que este também exista–, mas de emulação: se tratarmos as regras com desdém, todo mundo mais fará o mesmo.

Todo o sistema de comércio internacional começaria a se desmantelar, com efeitos profundamente destrutivos em toda parte, o que inclui, e muito, o setor industrial dos Estados Unidos.

Assim, será que a Casa Branca planeja mesmo seguir esse caminho? Ao se concentrar nos produtos importados do México, Spicer causou essa impressão; mas também disse que estava falando sobre uma "reforma tributária abrangente como forma de tributar importações de países com os quais tenhamos um deficit comercial".

Isso parecia ser referência a uma proposta de reformar os impostos pagos pelas empresas, que incluiria "impostos ajustáveis de importação".

Mas eis o problema: uma reforma como essa não teria todos os efeitos que ele estava sugerindo. Ela não tomaria como alvo os países com os quais temos deficit, e muito menos o México; seria aplicada a todo o comércio internacional. E não seria de fato um imposto sobre a importação.

É justo ressaltar que esse é um ponto que a maioria das pessoas não costuma entender. Muita gente que deveria saber melhor acredita que impostos sobre valor adicionado, cobrados por muitos países, desencorajam as importações e subsidiam as exportações. Spicer ecoou essa ideia incorreta. Na verdade, porém, os impostos por valor adicionado são basicamente impostos nacionais sobre as vendas, que não encorajam e nem desencorajam importações. (Sim, os produtos importados pagam o imposto, mas os produtos nacionais também o fazem.)

E a mudança proposta nos impostos das empresas, embora diferente do imposto sobre valor adicionado em alguns aspectos, teria efeito igualmente neutro sobre o comércio internacional. O que isso significa, especialmente, é que a mudança nada faria para que o México pague pela muralha.

Parte desse assunto é um tanto técnica –em meu blog, ofereço detalhes adicionais. Mas o governo dos Estados Unidos não deveria ter certeza sobre o que fala antes de fazer o que aparenta ser uma declaração de guerra comercial?

Vamos resumir, portanto: o secretário de imprensa da Casa Branca criou uma crise diplomática ao tentar proteger o presidente de zombarias causadas por suas bazófias insensatas. No processo, demonstrou que as pessoas que estão no poder nada entendem sobre política econômica. Em seguida, ele tentou recuar e mudar de assunto.

Tudo isso deveria ser colocado no contexto mais amplo, de uma rápida perda de credibilidade pelos Estados Unidos.

Nosso governo nem sempre fez a coisa certa. Mas manteve suas promessas, a nações e indivíduos igualmente.

Agora, tudo isso está em questão. Todo mundo, de pequenos países que acreditavam estar protegidos contra a Rússia, a empreendedores mexicanos que acreditavam ter acesso garantido aos nossos mercados e intérpretes iraquianos que achavam que seus serviços aos Estados Unidos significavam uma garantia de refúgio, precisa se preocupar com a possibilidade de levar um calote, como costuma acontecer aos empreiteiros que trabalham para os hotéis Trump.

Essa é uma perda muito sério. E provavelmente irreversível.

FOLHA DE SAO PAULO, 30 de janeiro de 2017 

PÓS-HERÓIS


De Arnaldo Bloch

Na era da pós-verdade, os heróis de hoje podem ser os vilões de amanhã e vice-versa

Estava no supermercado quinta-feira de manhã e uma moça baixinha, com um crachá, usando um walkie-talkie (ou um celular com antena fazendo esta função), comentava, quase aos gritos, enquanto fazia compras, os fatos do dia.

— Não, não! Hoje ele está em Brasília. Acho que está em Brasília. E você viu o Eike? Ah! Agora é que eles vão roubar mais ainda! — festejou a moça com rádio e crachá.

Não deu para saber quem era o sujeito em Brasília, mas a menção só dava sabor ao diálogo, 100% real, em meio aos morangos, às lichias e à goji berry na prateleira do supermercado. Pois, ao mencionar Eike, os olhos dela brilhavam, como se torcesse por Ronald Biggs em fuga para o Brasil após escapar da prisão pelo assalto ao trem pagador: um herói.

Não que Eike já não tivesse vivido esse papel. No caso, portanto, um novo herói, aos olhos de quem, como a mulher no supermercado, vê a suposta perpetuação do roubo como uma virtude glamourosa. Ou, num viés ideológico ultraliberal, uma vitória da rebeldia do indivíduo contra o estado.

O mesmo estado que, não faz muito tempo, alçou Eike Batista a grande herói nacional: tudo passava pelo Eike, espécie de superministro privado das viabilizações mágicas. Um herói por cujo caixa quase tudo transitava e era drenado para o limbo da catástrofe futura
.
No tempo em que era um herói, e que a admiração por ele transcendia as esferas oficiais e se espalhava pelo público, pelas redes, pelos sites de celebridades, era difícil dar-se ao trabalho de o questionar: Eike era uma verdade estabelecida. Eike resolvia. Era aquele fascínio pelo homem de iniciativa, pouco importando os meios, os fins ou as justificativas.

Parecido com a precoce heroicização de Donald Trump, que começa a transpor a barreira de seus partidários fanáticos e criar mosquitos de dúvida em mentes mais moderadas, inclusive de esquerda, com argumentos do tipo “Esse cara pelo menos faz o que promete, não é como o indeciso Obama, herói retórico de pouco pulso”. 

Ou não é que Dow Jones foi às alturas assim que Donald deu sinal verde para oleodutos e virtualizou e viralizou o muro mexicano? Paralelamente, anuncia-se o esquenta para tocar o horror em Guantánamo de novo, com a eventualidade de as técnicas de falso afogamento em interrogatórios voltarem a bombar.

Além de tudo, pelos primeiros movimentos no comércio internacional, a política de Trump vai ser boa para China e Mercosul. “De preferência sem cogumelos”, reflito, ao olhar as prateleiras do supermercado e encarar umas cepas gordas de shitake. 

Enquanto Eike, caçado, vilão para uns, herói para outros, já negocia sua volta (de acordo com as notícias de quinta-feira, quando fecho a crônica), e devidamente encanados Sérgio Cabral e Eduardo Cunha, procuram-se preservar, aqui, heróis que ainda têm maioria na percepção geral.

Rodrigo Janot, denominado xerife, tenta continuar no posto, ao passo que, tendo como pano de fundo o luto pela morte de Teori Zavascki, procura-se um herói que salve a Lava-Jato, e ergue-se o temor de que, a depender de seu substituto na condução da operação no STF, vá tudo por água abaixo.

O que traz uma sombra sobre a noção que temos, hoje, do mais alto tribunal da nação: uma espécie de esquadrão de guardiões das leis e da ética. Pois a sensação, agora, é de que a Lava-Jato depende do resultado de uma roleta-russa, dublê de sorteio. Se cair nas mãos de um herói em potencial, Gotham City está salva. Se cair nas mãos do vilão, instala-se uma distopia, e todas as quadrilhas de todos os partidos, investigadas ou sob suspeita, vão dominar o carnaval de 2017, com ou sem máscara do Moro.

Conclusão: na era da pós-verdade, do retorno aos nacionalismos, do nivelamento por baixo da média do pensamento, da impossibilidade de troca de ideias, da descontextualização, do indivíduo se confundindo com o coletivo, os heróis de hoje podem ser os vilões de amanhã e vice-versa, e mais: o herói pode ser herói e vilão ao mesmo tempo, dependendo de se ele é Fla ou Flu, coxinha ou petralha, delator ou túmulo.

Para ilustrar: outro dia, um amigo judeu veio me dizer que Marine Le Pen pode até ser uma boa opção para a França. “Mas não quero entrar em detalhes”, ele avisou, e eu aceitei prontamente, ou teríamos uma guerra fratricida.

É difícil, para o outro judeu aqui, embora sempre aberto à troca de ideias, ouvir de um patrício o argumento de que a comandante do neofascista Front National deu um tempo no antissemitismo e aposta todas as fichas no ódio ao Islã.

Preferi o silêncio de um Fla-Flu, daqueles modorrentos, que terminam em zero a zero, a encarar o pragmatismo cínico capaz de alçar a herói um negacionista pós-moderno. 

De resto, saudações alvinegras. Tóquio vem aí.

O GLOBO, 28 de janeiro de 2017 

Resistir é preciso


Trump mal saíra do baile anos 50, e as mulheres do século XXI já estavam nas ruas anunciando que vão enguiçar esse trator
Rosiska Darcy de Oliveira, O Globo

Resistir é preciso. Foi essa a mensagem da Marcha das Mulheres, uma inédita manifestação, simultânea em cinco continentes, contra a brutalidade com que o novo presidente dos Estados Unidos insiste em humilhá-las. E não só a elas.

Trump mal saíra do seu baile estilo anos 50, e as mulheres do século XXI já estavam nas ruas anunciando que vão enguiçar esse trator, movido a atraso e ódio, que ameaça esmagar seus direitos duramente conquistados. Madonna pegou o microfone e avisou: “Lutamos pela liberdade de sermos o que somos e de sermos iguais. Vamos manifestar juntos porque assim, a cada passo da travessia dessa escuridão, dessa era da tirania que é o governo Trump, não teremos medo”.

A Marcha das Mulheres que se espalhou por centenas de cidades americanas e do mundo foi uma irrupção do inesperado. Pelo seu imenso porte, uma surpresa, até mesmo para quem a convocou. E uma aula de democracia contemporânea, do modo de fazer política em tempos de internet e globalização, quando cada um decide em seu foro íntimo que luta quer lutar e joga no mundo sua convocatória.

Uma advogada aposentada criou um perfil no Facebook convocando à marcha. Recebeu uma avalanche de adesões. A indignação individual floresceu em ação coletiva.

Vai ser um duro enfrentamento. Afinal, as mulheres são persistentes. Vêm quebrando um paradigma milenar que lhes negava o reconhecimento de sua plena humanidade. Conquistaram direitos de que não estão dispostas a abrir mão e forjaram uma ideia clara do seu lugar no mundo contemporâneo.
Espalhadas em todos os continentes, estão em todas as casas, são mães de família, profissionais, cientistas, juízas, celebridades, anônimas. De todas as cores, idades e nacionalidades. São metade da humanidade.

O homem mais poderoso da Terra, que exprime um genuíno desprezo por elas, não contava com um adversário dessa envergadura, saindo de cada porta. Seu arsenal nuclear, seus agentes da CIA podem pouco contra elas, que mostram a cara e dizem nas ruas sua indignação. As mulheres em movimento são como a floresta que assombrou Macbeth.

Elas sabem por que o conservadorismo as tem na mira. Um dos ingredientes principais desse veneno é o inconformismo com a perda da supremacia dos homens nas famílias e nos múltiplos espaços da sociedade trazida pela emancipação das mulheres.

Sentindo o chão fugir debaixo dos pés, os Trumps da vida querem ressuscitar um mundo em agonia. São eles que se sentem mais atingidos e roubados em suas prerrogativas de autoridade, justamente esses que se habituaram a ter nelas o par perfeito, as bonecas para dançar “My way”, elas que não faziam caminho nenhum, que não iam a parte alguma.

Como conviver agora com mulheres que sabem o que querem e o que não querem, falam com voz própria, afirmam o direito sobre seu próprio corpo e desejo, que levam à prisão espancadores e estupradores? E ainda ousam se candidatar à Presidência dos Estados Unidos! Tudo isso vira de pernas para o ar o mundo em que esses homens estavam instalados, como um direito natural, imutável.

A reação vem amadurecendo há muito tempo e se personificou agora, de forma caricatural no presidente recém-eleito dos Estados Unidos.

Faz parte da caricatura acreditar que piadas obscenas, gestos agressivos, insultos e ameaças intimidariam e calariam as mulheres. Mas as ruas se coloriram no primeiro grande gesto de resistência a esses tempos de trevas.

As mulheres foram as primeiras a protestar defendendo seus direitos e o de todos os que foram agredidos, em nome da civilização por quem se sentem responsáveis e que querem construir com direitos humanos, liberdades individuais e equilíbrio do planeta. Arrastaram multidões.

Fica um alerta: no Brasil também estamos em risco. Uma assustadora onda conservadora, inconformada com o avanço das liberdades, ameaça fazer a História retroceder.

No apodrecido Congresso Nacional, um amálgama de fanatismo religioso, bancada da bala e parlamentares de extrema-direita aproveita o campo de ruínas em que se transformou o sistema político para tentar reverter os direitos conquistados nas ultimas décadas por mulheres e gays, para coibir o avanço da ciência e difundir nas escolas teorias criacionistas.

Não se minimize o perigo dessa aliança sombria. Humanistas que somos, temos o mau hábito de não acreditar em catástrofes. Poucos acreditaram no pesadelo Trump. Quem quer acordar no pesadelo que seria o triunfo dessa aliança? Antes que esse fantasma se materialize, é provável que tenhamos, nós também, que sair às ruas. Resistir é preciso.

Marcha das mulheres, sábado, 21/01/2017, Manhattan, NY (Foto: Luisa Leme)

January 9, 2017

A indiferença é a origem do massacre em Manaus


janio de freitas 

 O país todo está horrorizado. Discute se a culpa é do Judiciário ou dos governos, dos políticos ou da legislação penal e, claro, das garras da corrupção sobre as verbas do sistema carcerário. A discussão é fácil e aliviante: cada uma daquelas partes colaborou nos movimentos dos facões que degolaram e esquartejaram em Manaus. Mas o país deveria horrorizar-se antes, em qualquer das dezenas de anos do seu conhecimento e da sua indiferença pelas condições –criminosas tanto nas leis brasileiras como nos acordos internacionais– a que os encarcerados são aqui submetidos. Não o fez jamais.

Aquelas quotas de responsabilidade e o massacre em Manaus provêm da mesma origem: a indiferença que faz com que reações como o horror sejam o reflexo do incômodo, pessoal e grupal, que dado acontecimento provoque, e não a revolta ativa contra o acontecimento e sua viabilidade. Desviadas as atenções para outra atração, o horror desaparece devorado pela indiferença. É a índole brasileira em atividade.

A grande maioria das sentenças a encarceramento não leva ao que o juiz determina –privação da liberdade por tempo determinado.

O mais importante da condenação não aparece na sentença: é o tratamento que o encarcerado receberá. A tortura da promiscuidade nojenta nos cárceres superlotados, comida e dejetos humanos unidos no odor e no ambiente, medo e alucinação. É tortura sob formas a que as instituições brasileiras são secularmente indiferentes.

Aquelas mesmas que, originadas na escravidão aqui mantida até o último limite, transpuseram-se para as relações econômicas, sociais e culturais da classe escravagista e seus novos subjugados –os ex-escravos abandonados no tempo e no espaço, acrescidos da miséria cabocla. Qualquer cidade é um atestado vivo de que o Brasil não teve mudança essencial com o fim formal da escravidão.
Dos 622 mil encarcerados, mais de 40%, ou cerca de assombrosos 250 mil, estão sob prisão "provisória" há meses, há anos, que deveriam durar 30 dias, se tanto. Ou nem isso, porque esses "provisórios", se e quando afinal chegam ao julgamento, na maioria são absolvidos.

Logo, nem sequer precisariam ou deveriam passar por prisão provisória. No Amazonas, dos 4.400 encarcerados, 2.880, ou 66%, são presos "provisórios". Não menos expressivo da secular e perversa indiferença brasileira: cerca de metade dos sentenciados à cadeia não cometeu crime violento. Ao menos parte, portanto, e o provável é que grande parte, conforme o Direito Penal menos obsoleto, deveria cumprir penas alternativas, sem chegar ao cárcere.

A maioria dos "especialistas", além da superficialidade que sobrevive a todos os massacres e incidentes penitenciários, continua a reclamar por mais cárceres, considerando uma carência de 240 mil a 250 mil vagas. Melhor seria passar por um crivo os 250 mil presos "provisórios" e os passíveis de penas alternativas. O resultado provável é que o número de cárceres não é o problema nem a solução propalados.

A oferta de incentivo, ensino e trabalho talvez lhes pareça, afinal, a melhor maneira de inverter o avanço permanente da disponibilidade de crianças e jovens para a marginalidade, vestibular do crime.
O oposto à política econômica e social do governo Temer.

FOLHA DE SÃO PAULO, 9 DE JANEIRO DE 2017

Longe da meta: Filho Único


Desde 2013, o Ministério do Esporte construiria 249 projetos de infraestrutura voltados à base, mas levantou apenas um

Um único Centro de Iniciação ao Esporte (CIE) construído. Este é o legado da Olimpíada para os municípios brasileiros. Desde 2013, o Ministério dos Esportes selecionou e se comprometeu a erguer, país afora, 249 projetos de infraestrutura voltados ao esporte de base, identificação de talentos e formação de atletas olímpicos e paralímpicos, mas até hoje, quatro meses após os Jogos do Rio, concluiu apenas um, em Franco da Rocha, em São Paulo. O balanço consta de relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), aprovado em dezembro.



  Segundo o TCU, dos 249 projetos, orçados em R$ 891 milhões, apenas 95 estão licitados, e somente 39 obtiveram autorização para iniciar as obras. Até abril de 2016, o montante liberado não passou de R$ 25 milhões.
O Ministério dos Esportes atribuiu o mau desempenho a sucessivos cortes orçamentários, que chegaram a 79% dos recursos previstos. No Governo Dilma, os CIEs foram apresentados como principal ferramenta para democratizar o acesso ao esporte, na esteira dos Jogos do Rio. Ainda segundo o TCU, os dados mostram que nenhuma meta será cumprida, pois o planejamento previa construção de 83 centros, a cada ano, até 2018.

O tribunal informou que no ano olímpico o orçamento dos Esportes sofreu redução de 53% — de R$ 3,8 bilhões em 2015 para R$ 1,83 bilhão em 2016 — corte que deverá se repetir em 2017, quando estão previstos R$ 894 milhões. Para que as obras não se transformem em inacabadas, o TCU determinou que o ministério priorize a continuidade delas, antes de iniciar novas, conforme determina a Lei de Responsabilidade Fiscal. E que acompanhe o plano de gestão dos municípios, certificandose de que as prefeituras terão condições de manter as instalações. “Mais uma vez há riscos de desperdício de recursos públicos ante a potencial paralisação das atividades do CIE”, afirma o relatório. No papel, o prazo de conclusão das unidades seria de 180 dias, mas na prática foi o dobro — o único centro entregue demorou um ano para ficar pronto.

Os CIEs são ginásios poliesportivos, com academias e arquibancadas, projetados em três modelos e tamanhos, oferecidos pela pasta aos municípios. Neles, crianças e jovens podem praticar modalidades olímpicas como atletismo, badminton, basquete, boxe, esgrima, futsal, ginástica artística, de trampolim, rítmica, handebol, judô, levantamento de peso, lutas, taekwondo, tênis de mesa e vôlei. E paralímpicas como esgrima em cadeira de rodas, halterofilismo, vôlei sentado, goalball, judô e tênis de mesa.

Com custo estimado em R$ 3,6 milhões, o ginásio maior, que ocupa terreno de 7 mil metros quadrados, foi o mais escolhido pelas prefeituras — a maioria no Sudeste e Nordeste.

MARA BERGAMASCHI
O Globo, 9 de janeiro de 2016 

December 30, 2016

FIA rompe 118 contratos com ONGs que atendem crianças e jovens

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RIO - Em um único dia, a Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), ligada à Secretaria estadual de Assistência Social, rompeu 118 contratos com instituições que atendem crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, física, em situação de vulnerabilidade ou com deficiências. A medida praticamente desmantelou os serviços da entidade, acabando com uma rede que presta 45 mil atendimentos ao ano. Restaram apenas 14 contratos com organizações que trabalham como abrigos.

Na publicação no Diário Oficial em que anunciou o fim dos contratos, o presidente da FIA, José Augusto Rocha, citou o decreto de junho que declarou estado de calamidade financeira no estado e alegou que a fundação “não está conseguindo honrar tempestivamente com os compromissos pactuados”. A dívida com as 118 instituições chega a mais de R$ 20 milhões. Funcionários da FIA afirmam que as organizações não recebem pagamentos há oito meses e que seus profissionais estão trabalhando voluntariamente.

— É a pior situação nestes anos todos. A criança, pela Constituição Federal, é prioridade. Até no estado de calamidade pública. Mais de 45 mil atendimentos vão ficar prejudicados. E como vão ficar essas instituições sem o dinheiro do governo? Elas não sabem o que fazer, estão desesperadas — disse assistente social Elza Velloso, servidora da FIA há 40 anos.

Em nota, a FIA afirmou que “precisou suspender os convênios”. Uma das instituições que tiveram o contrato rompido foi a única ONG responsável pelo Núcleo de Atendimento a Crianças e Adolescentes (Naca) na capital, no Grajaú. Em setembro, O GLOBO mostrou que, sem receber recursos, a instituição — responsável por emitir laudos de situações de violência contra crianças, para respaldar decisões judiciais — tinha uma fila de espera que chegava a 160 casos.

Em nota, a deputada Tia Ju (PRB), presidente da Comissão da Criança, do Adolescente e do Idoso da Alerj, disse que estuda meios de acionar a Justiça para reverter a decisão da FIA. “Fiquei estupefata quando soube que a FIA suspendeu mais de cem termos de colaboração com instituições conveniadas. É inacreditável e inaceitável que o governo acredite que resolverá os erros de gestão cortando programas sociais fundamentais”, criticou
.
Para Rogério Souza, presidente da Associação de Servidores da FIA, a decisão é um “descalabro”:
— Você percebe que o social, a criança, o adolescente e o idoso são prioritários só no discurso político.

November 4, 2016

No enem, desidratar a resistência pesou mais do que se abrir ao diálogo

Flávia Oliveira

 

É a política, não a matemática

Em vez de dialogar com os estudantes, o MEC preferiu adiar o Enem

Matematicamente, a conta é tão simples que está na grade curricular do ensino fundamental. É de 2,2% a proporção de estudantes que farão o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) um mês depois do previsto, em razão das ocupações nas escolas. São 191.494 num universo de 8,6 milhões de inscritos; dois em cada cem. Difícil crer que o aparelho burocrático do Ministério da Educação não teve tempo ou habilidade para remanejar os locais de prova de dois centésimos dos estudantes. Por trás do adiamento está a decisão política de retaliar a reação dos jovens à medida provisória da reforma do ensino médio e aos efeitos da PEC 241 (renumerada no Senado para PEC 55) no orçamento da educação.

Responsável pela aplicação do Enem, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Texeira (Inep) anunciou na noite da última terça-feira o adiamento da prova para alunos lotados em 304 unidades ocupadas no Brasil até 31 de outubro. São três centenas de estabelecimentos tomados numa rede que soma 190 mil escolas públicas e privadas, segundo o Censo Escolar 2013 do próprio MEC. Paraná, com 74 colégios, e Minas Gerais, com 59, são os estados mais afetados; cerca de 84 mil farão a prova mês que vem. No Rio, pouco mais de sete mil alunos serão submetidos ao exame nos dias 3 e 4 de dezembro, em vez de no próximo fim de semana. 

O movimento de ocupação de escolas brasileiras germinou em São Paulo, um ano atrás, contra a reorganização dos ciclos de ensino pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A intenção era transferir 300 mil alunos, distribuindo-os em escolas dedicadas aos anos iniciais e finais do ensino fundamental e ao nível médio. Com isso, 92 unidades fechariam as portas. Os protestos começaram nas ruas e desaguaram nas ocupações. 

Uma cartilha elaborada por estudantes chilenos e argentinos inspirou os ativistas do Brasil. Em 2011, secundaristas ocuparam mais de 700 escolas no Chile para cobrar passe livre nos transportes públicos e melhorias na educação. Qualquer semelhança... O documento recomenda realização de assembleia para organizar a entrada na escola e divisão dos alunos em comissões com tarefas predeterminadas, como limpeza, alimentação, segurança, imprensa. Sugere ainda que faixas de protestos sejam postas na frente dos colégios para tornar públicas as razões do movimento. Salvo radicalizações isoladas, é essa a tônica das ocupações.

O movimento se espalhou por São Paulo, alcançou Goiás, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais. As reivindicações mesclam agendas locais e questões nacionais. No Rio, por exemplo, os protestos de alunos começaram no início do atual ano letivo, em razão da crise aguda nas finanças do governo fluminense. Professores, com décimo terceiro e salários parcelados, ficaram em greve por quase cinco meses. Estudantes tomaram escolas em apoio aos docentes, mas também por mudanças no currículo e na qualidade na educação. Hoje, o movimento está concentrado em unidades do tradicional Colégio Pedro II, da rede federal, contra medidas do governo de Michel Temer, caso da MP do ensino médio e da PEC do teto de gastos. A pauta nacionalizou-se.

As autoridades lidaram mal com as ocupações desde o primeiro momento. O governo de São Paulo, em vez de dialogar, preferiu usar a polícia contra os estudantes, criminalizando o movimento. Errou ao empurrar o debate sobre educação para delegacias. No Distrito Federal, uma decisão judicial determinou o corte de água, luz e gás e proibiu a entrada de alimentos numa escola de Taguatinga tomada por alunos em 27 de outubro. Reprime-se muito, dialoga-se pouco com a juventude que engatinha no ativismo político. 

Agora, diante do movimento robusto de oposição às medidas federais na educação, o MEC preferiu o adiamento do Enem para parte dos inscritos. Fração no conjunto de estudantes aptos à prova, os 191 mil prejudicados — ou beneficiados, sob o ponto de vista de quem enxerga um mês a mais de estudos em relação aos demais — estão em quantidade suficiente para lançar a opinião pública contra os manifestantes. Fora do Enem deste fim de semana estão brasileiros em número equivalente à população de cidades médias como Angra dos Reis ou Nova Friburgo (RJ), Araçatuba, Ferraz de Vasconcelos ou Santa Bárbara d’Oeste (SP), Guarapuava (PR), Lauro de Freitas (BA), Sobral (CE), Luziânia (GO), Parauapebas (PA). 

É pouca gente no conjunto da população, mas muita gente a ter a vida prejudicada pelos ativistas. Os estudantes com a prova adiada e suas famílias têm motivos de sobra para se indignar. O que está mal explicada é a ação tão drástica do governo. Uma semana atrás, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) mineiro, em acordo com ocupantes de sete escolas, demarcou o espaço de mobilização e garantiu a realização do segundo turno das eleições municipais, sem transtornos. No Enem, desidratar a resistência pesou mais do que se abrir ao diálogo.

O GLOBO, 4 DE NOVEMBRO DE 2016