March 8, 2025

Folia S.A.

 

 

Os megablocos de celebridades dominam a paisagem, enquanto os responsáveis pela retomada do Carnaval de rua saem de cena


POR MAURÍCIO THUSWOHL 

Cantada em prosa, verso e teses
acadêmicas, a retomada
do Carnaval de rua no
Rio de Janeiro, símbolo da
redemocratização do País,
comemora dois importantes marcos em
2025. Lá se vão 40 anos da criação de blocos
carnavalescos emblemáticos, como
o Simpatia É Quase Amor, Suvaco do
Cristo e Barbas, entre outros, e 30 anos
do Carnaval que marcou a volta dos blocos
de rua ao posto de principal manifestação
popular carioca. As datas redondas
deveriam ser um convite à festa, mas
o cenário de crescente privatização do
Carnaval, com o predomínio de grandes
marcas e celebridades, aliado ao anúncio
do fim das atividades de agremiações
que habitam o coração do folião, faz com
que diversos representantes do setor
anunciem o fim de uma era.


A sensação de fim de ciclo aumentou
quando o quarentão Suvaco do Cristo
anunciou que encerrará as atividades
em 2026. Na sequência, o Imprensa Que
Eu Gamo, bloco criado por jornalistas há
exatos 30 carnavais, anunciou que faz este
ano seu último desfile. Para tristeza
dos cariocas, ambos engrossam um grupo
composto de outros nomes de muita
tradição, como o Escravos da Mauá, fundado
há 33 anos e que encerrou suas atividades
em 2022, e o Bloco de Segunda,
outro trintão, que no Carnaval de 2023
pendurou os tamborins.


As razões que levam ao fim de blocos
tradicionais e a maneira como o espaço
deixado por eles está sendo ocupado causam
apreensão. Nos últimos anos, a ascensão
dos chamados megablocos, eventos
que mobilizam dezenas de milhares
de pessoas, concentrou os investimentos
das principais marcas e empresas
nessa modalidade de desfile geralmente
capitaneada por cantores pop ou outras
celebridades. A onda começou em
2009 com o Bloco da Preta, da cantora
Preta Gil, e hoje há megablocos comandados
por Ludmila, Anitta, Pabllo Vittar,
Lexa e Juliette, entre outros.
Para piorar, uma novidade do Carnaval
carioca de 2025 são os blocos que levam
o nome de empresas ou têm seus
desfiles vinculados a ações de marketing.
Isso foi possível depois que a prefeitura

publicou uma norma que permite a outras
empresas, que não as mantenedoras
oficias do Carnaval do Rio, fazer contratos
de patrocínio com os blocos. Com isso,
o leque de “foliões” do mercado inclui
marcas de bebidas, redes de farmácias,
lojas de departamento, aplicativos de entrega
e até mesmo uma casa de criptomoedas.


As ações têm gosto duvidoso, como
a da loja de roupas que convida os integrantes
do bloco a comprar suas fantasias
na hora do desfile ou a da marca de
supercola que anuncia um bloco de fantasias
coladas, sem nenhuma costura.


“O dinheiro fala mais alto desde que a
prefeitura implantou esse novo modelo
de Carnaval em 2009, com a criação de
uma série de regras. O Poder Público passou
a entender os blocos de rua não como
uma manifestação espontânea, mas como
um grande e lucrativo evento”, observa
Tiago Ribeiro, pesquisador do Carnaval
e autor do livro Os Blocos do Carnaval
Carioca (Ed. Multifoco). Hoje, para serem
considerados oficiais, os blocos precisam
cadastrar-se seis meses antes do
Carnaval e atender a uma série de exigências
impostas por Corpo de Bombeiros,
Defesa Civil e Polícia Militar: “Gasta-se
muito dinheiro e a burocracia é enorme.
Os blocos que se cadastram junto à prefeitura
precisam tornar-se empresas para
lidar com todas essas questões”.


Presidente da Associação Independente
dos Blocos de Carnaval de Rua do Rio de
Janeiro (Sebastiana), a também pesquisadora
do Carnaval Rita Fernandes afirma
que a realidade foi mudando à medida que
a mídia descobriu os blocos, especialmente
após a entrada da TV Globo na folia: “Na

 época, foi interessante para a Sebastiana
fazer aquela parceria, porque o Carnaval
estava muito atrelado ao xixi, ao lixo. Precisávamos
mudar essa narrativa e mostrar
que o Carnaval trazia benefícios para a cidade
em termos de economia criativa e geração
de emprego e renda. Era uma pauta
que a gente queria, porque as associações
de moradores estavam se organizando
contra o Carnaval”. A cobertura de mídia
despertou o interesse de artistas, que
entenderam que o bloco era uma plataforma
comercial de marketing para alavancar
carreiras, e das empresas interessadas
em divulgar suas marcas e produtos:
“Uma coisa foi alimentando a outra”.


O cenário atual, diz Fernandes, é de
crescimento exagerado e perda da autenticidade.


“Tudo começou a se perder
quando cresceu demais. Vieram os
carnavais de São Paulo, Belo Horizonte,
de Brasília, todos no rastro do Carnaval
de rua do Rio. Hoje está desse jeito, com
marcas para tudo quanto é lado, produtoras
criando blocos, não é mais aquela
criação espontânea de grupos de amigos
que se encontram no botequim e resolvem
botar um bloco na rua.” A presidente
da Sebastiana avalia que vivemos o fim
das manifestações de rua como as conhecemos
nas últimas décadas: “Ter blocos
criados nas produtoras não é Carnaval.
Deixa de ser quando uma marca se apropria
completamente de uma tradição que
deveria ser espontânea e popular”.


Outra constatação é a mudança do
perfil do folião dos blocos, com o carioca
dando lugar aos turistas. Segundo a
Riotur, empresa municipal de turismo,
neste Carnaval são aguardados na cidade
até 10 milhões de turistas, dos quais 6
milhões afirmam querer participar diretamente
da folia. Ao considerar apenas o
calendário oficial da prefeitura, serão 482
desfiles de blocos, 29 a mais que no ano
passado, divididos por 37 dias em praticamente
todos os bairros da cidade.


O ambiente político no Rio também está
muito diferente daquele que marcou a
retomada dos blocos de rua: “Naquela ocasião,
era uma saudação da espontaneidade
e também como uma resposta ao fim
da ditadura e do período de restrição de
atividades ao ar livre, dos direitos de coletividade.


Os blocos surgem nesse espírito
pós-ditadura”, ressalta Ribeiro. O especialista
contesta ainda o conceito de retomada:

“Não houve exatamente uma retomada,
mas sim uma mudança profunda na
forma de encarar os blocos de rua. Isso se
deveu ao surgimento de alguns blocos na
Zona Sul que contavam com a participação
de importantes intelectuais do período,
que chamaram a atenção da imprensa
pelo seu formato, que se caracterizava pela
abolição do uso da corda que separava
a banda dos foliões, pela criação de sambas
próprios e pelo utilização de camisetas
temáticas, de uso não obrigatório, assinadas
por artistas plásticos renomados”.

Fundador do Barbas, Sérgio Henrique
Alvarez, o Tchecha, relembra o movimento
surgido há 40 anos: “No rastro do fim da
ditadura, começaram a surgir vários blocos:
Imprensa, Suvaco, Simpatia, Barbas,
Meu Bem e Carmelitas, entre outros. Todos
os dirigentes desses blocos cresceram
sob o peso do regime militar e eram progressistas.


O Carnaval de rua no Rio era
quase inexistente e, com o ambiente político
aliviado, as pessoas começaram a
se mobilizar para criar blocos. Acho que
o Simpatia foi o primeiro”. Nessas agremiações,
a tradição progressista se mantém:
o tema do Simpatia em 2025 é “Carnaval
Sem Anistia!”, e o do Barbas é “Jogando
a Pipa em Cima do Golpe Tabajara”.
Tchecha atribui o fim de blocos que
marcaram a retomada a diversos fatores:
“Nos últimos anos, a burocracia exigida
para os blocos aumentou muito. As pessoas
foram envelhecendo e aqueles blocos
que não criaram sucessores na direção
começaram a parar de sair”. Hoje, o
Barbas sobrevive com o que recebe através
da Sebastiana e complementa com a

venda de camisas. “Mas isso não gera o
suficiente para as necessidades. O problema
é que o aumento do número de
blocos faz com que os custos com carro
de som, músicos da bateria e segurança
também aumentem a cada ano.”


Não é só a Sebastiana que organiza os
blocos do Rio. Nos últimos anos, outras
associações, como a Coreto e a Desliga, representam
o polo que se opõe às regras
impostas pela prefeitura e aos rumos que
vem tomando o Carnaval carioca. Um dos
que estão na linha de frente da “resistência”,
como se define esse setor, é o agitador
cultural e mestre de bateria Sérgio Monteiro,
também, conhecido como Mestre
Serginho. Morador do Méier, tradicional
bairro da Zona Norte carioca, ele tem se
dedicado a colaborar na construção de
duas novas agremiações criadas no ano
passado: o La Belle Bloco, formado por
músicos e poetas, e o Lança-Perfume, em
homenagem à cantora Rita Lee: “Faço oficinas
todos os sábados, as pessoas chegam
sem saber segurar o instrumento e saem
tocando. A gente toca funk, forró, marchinha,
ijexá, maculelê, ciranda. Fazemos

Carnaval é do povo, e resistimos à privatização
neoliberal do espaço público”.


Monteiro afirma que o atual processo
de mercantilização e privatização dos blocos
“traz segregação social ao povo periférico,
de favela, preto e pobre”. Ele diz que
o movimento de resistência visa “garantir
ao folião que não tem dinheiro o direito
de poder brincar na rua, ao músico de
poder levar sua arte, ao ambulante de poder
vender sua água, sua cerveja”. E ressalta
que, mesmo com a constante repressão
da prefeitura, a existência dos blocos
ditos clandestinos é amparada pela lei:
“Se o bloco não tiver autorização, a guarda
vem para tirar, apesar do artigo 5º da
Constituição Federal, que garante o direito
de manifestação cultural espontânea.


A única coisa que precisamos legalmente
fazer é dar um aviso prévio, não fechar a
rua, não passar das 22 horas, coisas assim.
Isso está também no artigo 23 da Constituição
do Estado do Rio de Janeiro”.


Rita Fernandes afirma não ver no curto
prazo o surgimento de outro modelo de
financiamento do Carnaval de rua: “Eu
acho que só mudará essa tendência quando
o Carnaval ficar tão comercial, a ponto
de perder o interesse e a naturalidade”. Ela
avalia que isso já começa a acontecer no
Rio: “O carioca não adere muito a esse modelo,
mas é difícil fazer uma previsão. Já tivemos
muitos modelos que foram se alternando
pelas próprias mudanças orgânicas
da sociedade, da política, do mercado, das
marcas. O Carnaval vai se modificando,
então nada é para sempre”. A presidente
da Sebastiana faz, porém, um alerta: “Se
não encontrarmos um modelo e não firmarmos
pé na posição de que precisamos
manter nossas tradições, nossas cores e
nosso fazer, vamos deixar o mercado engolir
a todos e matar o Carnaval de rua”.•

 CARTA CAPITAL

Dispense as flores

 

 


Diante do avanço do movimento conservador das tradwives, precisamos resgatar o sentido original do Dia da Mulher


POR GABRIELA MOCH SCHMIDT

Nosso 8 de março já não tem
o mesmo significado daquele
mobilizado por mulheres
que lutavam por
uma sociedade mais justa
no início do século passado. Hoje, flores,
bombons e parabéns, aliados a mensagens
que ressaltam nossa feminilidade ou elogiam
nossa “força”, predominam os discursos
que rodeiam essa data. Parece que
utilizar o Dia Internacional da Mulher para
falar sobre equiparação salarial, reivindicar
creches para todas as crianças ou
discutir direitos reprodutivos caiu em desuso.


O feminismo – e aqui excluímos o
“feminismo” liberal, porque entendemos
que um feminismo que atende uma parcela
tão pequena das mulheres não é verdadeiramente
feminista – virou démodé.
Na moda estão as tradwives. Impulsionadas
pela onda conservadora e fascista
que cresce ao redor do mundo, as esposas
tradicionais abandonam suas carreiras
para servir à família. Nos moldes da
moral cristã, elas são submissas a seus
companheiros provedores e devem permanecer
em casa: seu papel é limpar, cozinhar
e cuidar dos filhos e do marido,
entre outras atividades domésticas. Tudo
isso, claro, sem perder a “beleza” – segundo
os parâmetros da estética da mulher
branca e de classe média dos EUA
dos anos 1950. O movimento, muito forte
nas redes sociais, nos alerta sobre o modo
como a crescente onda ultraconservadora
deseja que as mulheres ajam.


Há, portanto, uma disputa em torno
do signo “mulher”. De um lado estamos
nós, a propor que ser mulher é resultado
de um processo socio-histórico. Do outro
lado estão eles, que consideram a mulher
como inerentemente submissa, sensível e
cuidadosa. Da mesma forma, disputam-se
os significados em torno do Dia Internacional
da Mulher. Nessa disputa, os grupos
dominantes apagam o histórico de
luta por direitos. Ora, se não podem extinguir
a data, oficializada pela ONU em
1975, podem alterar seu significado. E o
8 de março transformou-se em um bom
dia para presentear as mulheres, exaltando
sua essência “feminina” e, ao mesmo
tempo, “guerreira”. A luta feminista aca-

bou sendo reduzida a uma mercadoria.


Com isso, tentam apagar a origem operária
da data. Não devemos nos esquecer,
porém, da grande passeata das mulheres
em 26 de fevereiro de 1909, em Nova York,
na qual cerca de 15 mil mulheres saíram
às ruas em busca de melhores condições
de trabalho. Ou da alemã Clara Zetkin,
que propôs, durante o II Congresso Internacional
de Mulheres Socialistas, em
1910, a criação de um Dia Internacional
da Mulher e de uma jornada de manifestações
sindicais e socialistas dedicadas
aos direitos das mulheres. Ou, ainda, das
operárias russas que, em 23 de fevereiro
de 1917, pelo antigo calendário russo – ou
8 de março de 1917, pelo calendário gregoriano
– saíram às ruas para protestar
contra a fome e contra a Primeira Guerra
Mundial. A data foi adotada pelos soviéticos
como o Dia da Mulher Heroica
e Trabalhadora, o que foi seguido posteriormente
por diversos países.


É a partir de todos esses movimentos
sociais, liderados por mulheres que
lutavam por melhores condições,
sobretudo trabalhistas, que o 8 de março
se consolida como o Dia Internacional
das Mulheres. Apesar de o movimento
ter iniciado há mais de um século e de
ter sido oficializado há 50 anos, ainda
não superamos algumas daquelas
reivindicações e vivemos em uma
sociedade profundamente desigual.


De acordo com o 2º Relatório de
Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios,
divulgado pelo Ministério
do Trabalho e Emprego em 2024, as
mulheres ainda recebem 20,7% a menos
que os homens em empresas com cem ou
mais empregados. A disparidade é ainda
mais acentuada quando acrescentamos o
critério racial: mulheres negras têm um
salário médio 50,2% inferior ao salário de
homens não negros. A igualdade salarial,
vale lembrar, é prevista pela CLT desde

1943, mas as empresas não a cumprem.


Além da remuneração salarial desigual,
há o acúmulo da dupla jornada de
trabalho que recai sobre as mulheres.
Conforme pesquisa da Infojobs realizada
em 2024, 83% das mulheres acumulam a
jornada de trabalho remunerado com as
tarefas domésticas, e quase metade delas
(45%) não recebe ajuda do parceiro ou
da rede de apoio. As novas tradwives estão
aí para nos lembrar de que o cuidado
doméstico não é visto como um trabalho,
mas como uma “predestinação” feminina.
Para piorar, 70% das participantes declararam
ter perdido a oportunidade de
emprego devido ao gênero.


Outro dado que podemos incluir nessa
lista é o do assédio no ambiente de trabalho.
Um estudo conduzido pela consultoria
Deloitte no ano passado mostrou
que uma em cada quatro mulheres
já sofreu assédio durante o atendime

to a clientes ou consumidores, além dos
assédios cometidos pelos próprios colegas
de trabalho. Em resumo, mais dificuldades
para conseguir emprego, salário
menor, jornada de trabalho maior e
ambiente inseguro.


É com um olhar para a nossa história
combativa e outro para nossas reivindicações
atuais que precisamos urgentemente
resgatar o Dia Internacional das
Mulheres como um dia de luta pelos direitos
das trabalhadoras – e aqui incluímos
não apenas aquelas que trabalham
fora, mas também as que cuidam da casa.
O discurso do “não nos dê flores, nos
dê respeito” pode até parecer batido ou
mesmo clichê, mas vem perdendo força
em uma sociedade que caminha para o
ultraconservadorismo de direita.


Nesse sentido, apesar de nos parecer
óbvia a razão de existir do Dia Internacional
das Mulheres, não há consenso em
relação a esse tema. Numa sociedade cor-

rompida pelo conservadorismo cristão
e pela ascensão do fascismo, é cada vez
mais necessário combater concepções
reacionárias sobre o papel da mulher em
nossa sociedade. Além de disputarmos os
discursos, também precisamos ocupar
espaços. Há, no Brasil e no mundo, passeatas
e manifestações no dia 8 de março,
assim como coletivos e movimentos que
se organizam para combater o patriarcalismo
e lutar por igualdade durante todo
o resto do ano. Este é um convite para todas
e todos que acreditam em um mundo
mais justo: a hora é agora! •


*Gabriela Moch Schmidt é licenciada em Letras
e mestra em Linguística Aplicada pela UFRGS.
Atualmente, é professora na rede municipal de

Canoas (RS) e integrante do Instituto Cultiva. 

 

CARTA CAPITAL