July 31, 2020

Cancel culture', a patrulha ideológica 2.0

O rapper Kanye West, notório bad guy da música, foi “cancelado” depois de se dizer eleitor de Donald Trump e listar os benefícios da escravidão. Foto: Arte sobre foto de Andrew Harrer / Bloomberg / Getty Images

Jerônimo Teixeira



Estão cancelados Justin Trudeau, Chris Evans, Oprah Winfrey, Kanye West e Taylor Swift. Autos de fé realizados nas redes sociais decretaram que essas personalidades públicas, entre outras tantas, cometeram ações politicamente comprometedoras ou deram declarações etnicamente insensíveis e por esses crimes devem ser canceladas, como se cancela um cartão de crédito ou uma conta de serviço de streaming. Não se deve mais reconhecer a existência do primeiro-ministro do Canadá, do ator que fez o Capitão América, da apresentadora que se tornou chefe de um império de mídia, da cantora de “Shake it off” e do rapper de “Gold digger”. Para todos os efeitos, são todos não pessoas — embora continuem bem populares fora dos círculos militantes da internet. Os vigilantes da chamada “cancel culture” (cultura do cancelamento) não perdoam: para eles, indícios de preconceito em um tuíte de uma década atrás bastam para condenar uma celebridade ao opróbrio. Relativamente recente, o fenômeno também é chamado de “call-out culture” — “call out” conjuga a ideia de denunciar, criticar alguém, e, ao mesmo tempo, chamá-lo a se explicar pela falta cometida.

O ato de “cancelar” ganhou especial destaque no final de outubro do ano passado, quando foi criticado por Barack Obama em um evento na fundação que leva seu nome. De forma elegante, mas incisiva, o ex-presidente dos Estados Unidos acusou a pretensão de pureza que embasa a nova cultura jovem — uma pureza que não aceita negociações ou concessões. “O mundo é bagunçado”, ponderou Obama. “Existem ambiguidades. Pessoas que fazem coisas boas têm suas falhas.” Obama atacou com especial precisão o ímpeto justiceiro que, sobretudo nas universidades, dominou a juventude: “Tenho a sensação de que hoje, entre os jovens — e isso é acelerado pelas redes sociais —, há a noção de que o único modo de alcançar mudanças é julgar outras pessoas da forma mais severa possível, e isso basta”. De fato, não basta: a prática do “cancelamento”, além de pouco fazer de efetivo pelos direitos de minorias e pelas demais causas que pretende defender, também corrói o diálogo democrático. E tem tornado as novas gerações mais intolerantes — e infelizes.

Taylor Swift foi alvo de uma campanha de “cancelamento” depois de ter rebatido provocações de Kanye West. “Quando dizem que você está cancelada, não estão falando de um programa de TV, mas de uma pessoa”, disse a cantora. Foto: Arte sobre foto de Mario Anzuoni / Reuters
Taylor Swift foi alvo de uma campanha de “cancelamento” depois de ter rebatido provocações de Kanye West. “Quando dizem que você está cancelada, não estão falando de um programa de TV, mas de uma pessoa”, disse a cantora. Foto: Arte sobre foto de Mario Anzuoni / Reuters

Fenômeno originalmente americano que tem se replicado pelo mundo — no Brasil, inclusive —, a cancel culture é a versão 2.0 do que antigamente se chamava de patrulha ideológica. Temperada pelas fixações identitárias da esquerda universitária e turbinada pelas redes, as novas patrulhas são a face mais estridente da política woke (desperto, atento, em inglês), também criticada por Obama. O programa woke incorpora causas em princípio justas e razoáveis — combate ao racismo, à discriminação de gays e transgêneros e à desigualdade de gêneros. Mas ser woke consiste não tanto em defender esta ou aquela ideia: trata-se, antes, de compartilhar certa hipersensibilidade a ofensas, reais ou imaginárias, contra minorias. “Ofensivo” é a sentença terminal da cancel culture, e é significativo que os cancelamentos, com um punhado de exceções — o produtor Harvey Weinstein, que enfrenta denúncias numerosas de assédio e abuso sexual, e o músico R. Kelly, acusado de abusar sexualmente de adolescentes —, raramente incidam sobre pessoas que cometeram crimes ou transgressões objetivamente comprováveis. Em geral, uma pessoa é cancelada por algo que ela tenha dito. E a expedição de vereditos sumários não se limita a celebridades distantes: um colega de classe também pode ser cancelado, com toda a carga de censura e suposta “desonra” que isso carrega. O jornal The New York Times publicou, dias depois de Obama ter criticado a cancel culture, uma compilação de testemunhos de estudantes do ensino médio e dos primeiros anos de faculdade sobre o tema. Uma menina relatava ali a experiência de ser cancelada aos 15 anos. Como ninguém mais falava com ela, a adolescente resolveu perguntar a uma antiga amiga, por mensagem de celular, por que estava recebendo aquele tratamento de silêncio. A amiga consultada chamou outras colegas para a conversa, e a jovem cancelada recebeu uma torrente de impropérios — “mesquinha”, “sanguessuga emocional” — pelo Instagram. “Todo mundo faz coisas questionáveis ou diz coisas estúpidas. Mas as redes sociais permitem que as pessoas peguem algo que você disse no passado e transformem isso no que você é”, queixou-se a jovem.

“Fenômeno originalmente americano, a cancel culture tem se replicado pelo mundo — no Brasil, inclusive — a partir de uma hipersensibilidade que considera quase tudo ‘ofensivo’”

­
­

Taylor Swift guarda mágoas similares do tempo em que a campanha para cancelá-la corria no Twitter. “Quando dizem que você está cancelada, não estão falando de um programa de TV, mas de uma pessoa”, disse a cantora à revista Vogue. Seu cancelamento se deu por causa de uma disputa boba com Kanye West, que fez alusões maliciosas a Taylor na música “Famous”. O próprio Kanye West foi cancelado por razões mais tipicamente políticas: é apoiador de Donald Trump e já deu declarações assombrosas sobre os benefícios da escravidão. Oprah Winfrey foi cancelada, vejam só, por se engajar no movimento #MeToo: o rapper 50 Cent acusou a apresentadora de atacar apenas abusadores negros. Chris Evans foi cancelado porque trabalhou em Missão no Mar Vermelho, filme tido como pró-Israel, e ficou ainda pior na foto quando divulgou uma imagem na qual o elenco branco aparece em primeiro plano, com figurantes negros ao fundo. No Brasil, aliás, Mallu Magalhães também sofreu pressão e se viu constrangida a se desculpar no Facebook pelo videoclipe da canção “Você não presta”, no qual ela aparece à frente de dançarinos negros. Sob o regime de vigilância das redes sociais, não se sabe qual postagem antiga pode voltar a assombrar uma celebridade: o comediante Kevin Hart deixou de ser o apresentador do Oscar de 2018 por causa de piadas homofóbicas que fez no Twitter entre 2009 e 2011. Os melindres voltam-se até contra artistas já mortos: uma retrospectiva da obra de Paul Gauguin na National Gallery de Londres foi atacada porque o pintor francês manteve relações com uma menina de 13 anos no Taiti. A matéria do jornal The New York Times sobre a controvérsia trazia o título “Chegou a hora de cancelar Paul Gauguin?”.

O comediante negro Dave Chappelle vem sendo cancelado por suas piadas sobre transgêneros. E também porque respondeu debochando da cancel culture em Sticks & Stones, stand-up na Netflix. Justin Trudeau, ao contrário, cultiva a imagem de político woke, preocupado com diversidade e consciência ambiental, mas caiu em desgraça quando veio à tona uma foto antiga em que aparece com o rosto pintado de negro. De acordo com o protocolo da cancel culture, ele se desculpou publicamente pela insensibilidade racial.

O cantor R. Kelly foi “cancelado” virtualmente e seus shows foram suspensos depois de ele ser acusado de assédio — nesse caso, a reação do público foi justificável. Foto: Arte sobre foto de Noam Galai / Getty Images
O cantor R. Kelly foi “cancelado” virtualmente e seus shows foram suspensos depois de ele ser acusado de assédio — nesse caso, a reação do público foi justificável. Foto: Arte sobre foto de Noam Galai / Getty Images

Na guerra cultural, a direita também pratica a censura — como se viu no cancelamento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre — e a “trollagem” on-line contra seus adversários, mas a cancel culture é uma prática mais específica da juventude de esquerda. Por isso, não se faz necessário cancelar um Donald Trump ou um Jair Bolsonaro: já está implícito que, nos esquemas binários da nova geração, eles estão no campo do mal. Mas celebridades que se associam a políticos conservadores são chamadas ao tribunal do Twitter: a apresentadora Ellen DeGeneres, pioneira da defesa dos direitos gays, foi cancelada quando vieram a público imagens suas na companhia de George W. Bush em um jogo de futebol americano.

Embora, na maioria dos casos, o cancelamento leve meramente à exposição do indivíduo a uma situação constrangedora, em algumas ocasiões ele chega, realmente, a prejudicar o nome a que é associado. A Amazon rompeu um contrato com Woody Allen por causa da acusação — já investigada e descartada pelas autoridades, e bem conhecida ao tempo em que a produtora firmara o acordo com o diretor — de que ele teria abusado da filha adotiva em 1992, e também por declarações dele sobre o movimento #MeToo. Em 2015, quando a expressão cancel culture ainda não era corrente, o cientista Tim Hunt, Nobel de Medicina de 2001, perdeu posições acadêmicas de destaque por causa de uma piada boba sobre mulheres na ciência. Recentemente, a comediante Sarah Silverman disse que perdeu o papel em um filme importante — não disse qual — porque fotos antigas suas pintada com tinta negra foram descobertas. Já Taylor Swift exorcizou seu cancelamento no disco seguinte, Reputation. Jesus is king, disco que Kanye West lançou no ano passado, foi para o topo das paradas; e Oprah continua bilionária. Há quem diga, com base nessa circunstância, que a cancel culture não é a inquisição pós-moderna que seus críticos imaginam.

“O ato de ‘cancelar’ ganhou especial destaque no final de outubro do ano passado, quando foi criticado por Barack Obama, que, de forma elegante, mas incisiva, acusou a pretensão de pureza que embasa a nova cultura jovem”

­
­

Na imprensa americana e inglesa, aliás, artigos de opinião sobre as declarações de Obama tentaram minimizar os efeitos da cancel culture. Ora, são apenas jovens exercendo o direito de criticar celebridades racistas, misóginas, homofóbicas. Quem, afora os reacionários da Fox News, seria contra isso? Mas há problemas mais profundos nessa nova cultura política, muito bem examinados pelo psicólogo Jonathan Haidt e pelo advogado Greg Lukianoff em The coddling of the American mind (algo como A inteligência americana mimada), livro de 2018 ainda inédito no Brasil. A dupla de autores qualifica de “destrutiva” a atual cultura política. Sem qualquer traço da retórica inflamatória ou proselitismo ideológico, Haidt e Lukianoff demonstram o caráter perverso da call-out culture com rigor e serenidade.

O ativista de direita Milo Yiannopoulos foi alvo de protestos na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017, depois de ter sido convidado para dar uma palestra. Manifestantes quebraram prédios e houve feridos. Foto: Montagem sobre foto de Justin Sullivan / Getty Images
O ativista de direita Milo Yiannopoulos foi alvo de protestos na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017, depois de ter sido convidado para dar uma palestra. Manifestantes quebraram prédios e houve feridos. Foto: Montagem sobre foto de Justin Sullivan / Getty Images

Em seu trabalho à frente da Fire, organização que defende a liberdade de expressão nos campi americanos, Lukianoff notou uma tendência alarmante: se antes a maioria dos casos com que lidava eram de censura exercida pela administração da universidade, em torno de 2013 começaram a avultar os episódios em que eram os estudantes que pediam a remoção de material potencialmente “ofensivo” de certos cursos. Haidt tinha uma percepção semelhante, e por isso os dois se reuniram para compor o livro a quatro mãos. The coddling of the American mind é um retrato desalentador de universidades que renegaram o senso crítico e o livre pensamento em favor de códigos autoritários de conduta e linguagem — códigos que são referendados e reforçados pelos alunos. Firmou-se, nas comunidades acadêmicas, a ideia de que uma faculdade deve oferecer ao corpo discente um “espaço seguro”. O sentido da palavra “segurança”, como bem observam os autores, expandiu-se para além de qualquer medida razoável: ideias ou palavras incorretas são vistas como ameaças efetivas à segurança dos estudantes, em particular àqueles pertencentes a minorias. Como resultado, instaura-se uma ortodoxia policialesca, na qual ideias divergentes são silenciadas. Eis dois dos vários casos de cerceamento à liberdade acadêmica narrados no livro:

1. Um professor da Universidade de Northern Colorado pediu a leitura de um artigo que se opunha ao direito de transgêneros usarem o banheiro que desejam. Ele explicou que não esperava que os alunos concordassem com o texto, mas que era necessário conhecer e discutir pontos de vista diversos. Um estudante o denunciou à administração da universidade por preconceito; o professor foi repreendido, aconselhado a não falar mais sobre transexualidade, e seu contrato não foi renovado no semestre seguinte.

2. Na Universidade Yale, uma professora escreveu à administração sugerindo que não se instaurassem regras ditando que fantasias seriam apropriadas ou inapropriadas no Halloween, pois não era preciso tratar os alunos como criaturas vulneráveis, incapazes de negociar entre si o que é ou não aceitável. Esse e-mail tão razoável sobre tema tão trivial foi fatalmente interpretado como uma defesa de fantasias racistas. Protestos de estudantes intimidaram a professora e seu marido, que também tinha um posto em Yale; a administração da universidade não lhes prestou apoio, e eles acabaram renunciando aos cargos que ocupavam.

Nem mesmo a defesa da causa LGBT salvou a apresentadora Ellen DeGeneres de ser “cancelada” depois de fotos suas com George W. Bush virem à tona. Foto: Montagem sobre foto de Steve Granitz / WireImage
Nem mesmo a defesa da causa LGBT salvou a apresentadora Ellen DeGeneres de ser “cancelada” depois de fotos suas com George W. Bush virem à tona. Foto: Montagem sobre foto de Steve Granitz / WireImage

A cancel culture universitária exercita-se também na prática de vetar, em eventos no campus, convidados cujas ideias são tidas como agressivas. Com frequência, a universidade cede à pressão e “desconvida” o palestrante incômodo — geralmente algum acadêmico identificado com a direita, embora os “desconvidados” em anos recentes também incluam o comediante Bill Maher e Madeleine Albright, secretária de Estado do governo Clinton. Quando o evento é mantido, em geral, protestos estudantis tentam impedi-lo, barrando a entrada de pessoas no local da conferência ou fazendo barulho para que não se possa ouvir o indesejado. Especialmente brutal foi o protesto que impediu o inglês Milo Yiannopoulos, jovem agitador da direita, de falar na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017. Manifestantes mascarados do Antifa, grupo que diz combater o fascismo, espancaram dezenas de pessoas, e a destruição na universidade e nos arredores foi estimada em US$ 0,5 milhão. Na lógica tribal dos manifestantes, violência ainda maior seria o que Yiannopoulos teria a dizer. Outros protestos violentos se seguiram naquele ano, exacerbando a polarização da política americana. A radicalização é, aliás, uma consequência do ambiente de intimidação física e verbal que se estabeleceu em muitos campi: os moderados, avessos à beligerância gratuita, tendem a se calar, e só as vozes mais extremas têm vez.

“Essa onda censória emergiu com a chegada à universidade da Geração Z, ou iGen — i de internet. Nascidos em torno de 1995, os jovens de classe média dessa geração viveram em lares superprotetores, com menos tempo de brincadeira livre nas ruas e de vida social ativa”

­
­

Haidt e Lukianoff não são direitistas rábidos à caça de espectros como a ideologia de gênero ou a correção política. Eles se apresentam como progressistas e eleitores do Partido Democrata, mas acreditam que a diversidade de pontos de vista e a livre discussão de visões de mundo são essenciais para a educação. Preocupam-se também com o bem-estar psicológico dos jovens hoje engajados na call-out culture. Essa onda censória emergiu, segundo os autores, com a chegada à universidade da chamada Geração Z, ou iGen — i de internet. Nascidos em torno de 1995, os jovens de classe média dessa geração viveram em lares superprotetores, com menos tempo de brincadeira livre nas ruas e de vida social ativa. Cresceram com smartphones na mão, ligados às redes sociais que então começavam a conquistar o mundo. São, segundo estatísticas americanas de saúde mental, mais propensos à ansiedade e à depressão. Formados em uma cultura política que enfatiza versões não muito matizadas de identidade étnica e justiça social, em geral encontraram faculdades que não os desafiaram intelectualmente — ao contrário, incentivaram sua santimônia.

Haidt e Lukianoff transmitem, no livro, a esperança de que as distorções emocionais com que essa geração observa e julga o mundo possam ser corrigidas, e deixam, nos capítulos finais, recomendações para que escolas, pais e alunos alterem os rumos. É de esperar, pelo menos, que as próximas gerações arrumem o estrago.

July 30, 2020

O autódromo e a floresta do Camboatá, uma fábula carioca

A Floresta do Camboatá, com árvores raras de até 20 metros de altura, está ameaçada pela construção de um circuito de F1 com uma pista de quase 6 km de extensão

Ruth de  Aquino

Não sei se chamo de escândalo. Roubalheira. Ou burrice. Na dúvida, tudo junto. Precisamos impedir que se passe a boiada no Rio. Pensamos na Amazônia e esquecemos que há florestas em perigo na nossa esquina. Cerca de 180 mil árvores na Floresta do Camboatá podem ser dizimadas, com bênção oficial, para construir um autódromo de quase R$ 1 bilhão. Tudo para levar a Fórmula 1 de Interlagos, em São Paulo, para a Zona Norte do Rio. Rixa provinciana, inoportuna, sem sentido. Pior, um crime ambiental. Uma audiência pública virtual prevista para 7 de agosto, agora, é passo decisivo para se ir adiante com o novo autódromo.

Esses verdes ecochatos são todos contra o desenvolvimento econômico, não é mesmo? Vamos aproveitar a pandemia para passar a motosserra no desconhecido Camboatá, naquela região carente, cimentada e calorenta de Deodoro e Guadalupe. Você já ouviu falar? Os influenciadores ricos da Zona Sul só visitam o Jardim Botânico e o Parque Lage. Nem sabem onde fica o Camboatá.

Eu nunca fui ao Camboatá nem conhecia sua história. O nome vem de uma árvore comum, com flores brancas e frutos que atraem pássaros. Último lugar de Mata Atlântica de áreas planas na cidade, com fauna e flora em extinção. Só restam no Brasil 12% de Mata Atlântica. O Camboatá tem 200 hectares, equivalente a 200 campos de futebol, com nascentes e áreas úmidas onde, nas cheias, ressurgem os peixes rivulídeos, conhecidos como peixes das nuvens, porque reaparecem com as chuvas. Peixes nas nuvens me remetem ao realismo fantástico latino-americano.

Como trocar oxigênio e beleza eternos por especulação imobiliária e uma pista de 5.835 metros de extensão com uso esporádico nos GPs? Um projeto que nem sabemos se ficará pelo meio ou se será abandonado após a construção, como tantos elefantes brancos de obras megalômanas. Querem destravar logo. E construir o circuito em um ano, para ter a F1 já no Rio em 2021. Que chá de cogumelo esse pessoal toma? 

O terreno é do Exército. Havia ali paióis de munição. Cientistas do Jardim Botânico, entre eles o biólogo e pesquisador Haroldo Lima, minha maior fonte para este artigo, começaram a catalogar as árvores do Camboatá na década de 1980 a pedido dos militares. No governo Cabral, em 2010, surgiu a conversa de construir ali um autódromo. E como as péssimas ideias sempre sobrevivem no Rio, quando há muita grana envolvida, a pressão aumentou agora. 

Vamos comemorar, cariocas, vamos tirar a F1 dos paulistas, num ano em que o Grande Prêmio Brasil foi cancelado por conta da pandemia descontrolada. Por que será que insistem no novo autódromo num estado quebrado, falido, desigual, com necessidades urgentes como escolas, hospitais, saneamento, moradias dignas e segurança? Como assim? Ah, esqueci. Tem aquela história de “legado” pra boi dormir.

Faz quatro anos desde a Olimpíada do Rio. O Brasil prometeu a 2 bilhões de espectadores criar a Floresta dos Atletas. No Maracanã, os atletas plantaram, em totens, sementes que seriam levadas para Deodoro. Lindo. Seria “um legado olímpico verde”. Faltou dinheiro. Tinha de faltar. Precisávamos de joias e barras de ouro. Hoje, as sementes viraram arbustos em um sítio. Com manutenção cara. Jamais foram replantadas.

Quanto papo me-engana-que-eu-gosto. A turma do autódromo do Rio promete compensar a destruição da floresta com propostas inexequíveis, como “um novo corredor verde entre maciços da região”. Tudo para rotular o projeto de “autódromo verde e sustentável”. O único verde que esse pessoal idolatra, sério, deve ser o dólar. 

Os argumentos a favor são os de sempre. “O dinheiro não será público, será privado”. “F1 trará receita milionária para o Rio”. “Vamos plantar árvores para compensar a derrubada da floresta”. “Atrairemos turismo para uma área degradada”. Tem cara de maracutaia, tem focinho de maracutaia. O autódromo será um lindo cartão postal, já pensou se nem uso tiver? 

O hexacampeão mundial Lewis Hamilton já se disse contra o autódromo no Camboatá. “Vão derrubar árvores? Amo o Rio. Mas não quero correr em um circuito que prejudique uma terra tão bonita para nosso futuro”. Felipe Massa também reprovou. Correr sobre as cinzas de árvores nativas não pega bem. O mundo dos negócios não está mais disposto a associar suas marcas à devastação de uma floresta rara.

Construam o autódromo em outro lugar, gritam os ambientalistas e Caetano Veloso, que morou adolescente em Guadalupe. O Movimento SOS Camboatá sugeriu seis outros lugares no entorno para a construção do circuito, sem mexer na floresta. Mas, sabe como é, tem coisa aí. Meu apelo é mais radical. Esqueçam esse autódromo do Rio, que virou para o presidente B. uma obsessão semelhante à cloroquina. Quer porque quer a F1 no Rio. Lembram o Ronaldão falando que “não se faz Copa com hospitais”? Sempre é bom lembrar. Um copo vazio está cheio de ar.

Quantas negociatas se escondem por trás? Os idealizadores do GP no Rio alegam que vão derrubar (apenas) 30 mil árvores. Mas esse é só o espaço ocupado pela pista e pelo aparato necessário às corridas. Os restantes 41% do terreno serão “cedidos à Rio Motorpark”, subsidiária da americana Rio Motorsports”, como “contrapartida imobiliária”. Ou seja, para construir condomínios, prédios, derrubar mais árvores.

O projeto está cheio de pegadinhas. A empresa Rio Motorpark foi criada às pressas, 11 dias antes de ser anunciada sua escolha. Sem capital e sem estrutura para obra desse porte. Sua garantia é um “bank” não autorizado pelo Banco Central. 

Tenho uma esperança. O projeto é tão esdrúxulo que não vingará. E não será apenas por uma reação ambientalista, mas do business da F1, que planeja futuramente corridas sustentáveis, com carbono zero e combustível não poluente. A história do Camboatá vai correr o mundo. Vai virar uma luta de todos. A boiada não vai pastar na floresta carioca.

O GLOBO



July 27, 2020

How to Make Defunding the Police a Reality

July 23, 2020

O movimento nos EUA para reduzir o orçamento da polícia


Homem negro com megafone em frente a uma aglomeração de policiais. Eles são divididos por uma faixa branca no asfalto




Desde o assassinato do americano George Floyd, homem negro asfixiado até a morte por um policial branco na cidade de Minneapolis, em 25 de maio, protestos contra o racismo e a violência policial tomaram as ruas nos EUA e ao redor do mundo. Questionamentos sobre o papel e a instituição da polícia passaram a ocupar o debate público.

Uma das principais reivindicações apresentadas por ativistas e políticos que apoiam os movimentos é retirar verbas das forças policiais e aplicá-las em outras áreas. Desde o início dos protestos, algumas cidades americanas anunciaram planos de reduzir os orçamentos policiais.

A ideia é que o investimento atual de governos nas polícias e no encarceramento – apontado por defensores da medida como desproporcionalmente alto em relação a outros setores – seja redirecionado para educação, moradia, programas para a juventude e outras políticas com potencial para provocar mudanças sociais e reduzir a criminalidade e a violência.

Além do corte de verbas para a instituição, outras soluções apontadas pelo movimento contra o problema da violência policial que faz principalmente vítimas negras são investir mais na formação de policiais e até abolir a polícia da forma como ela existe hoje.

De forma geral, o movimento mira na reformulação de estratégias de segurança pública, criando um modelo distinto das instituições policiais tradicionais, que têm sua abordagem centrada no uso da força, e reduzindo o papel da polícia na sociedade.

Uma questão de prioridade orçamentária

Nos Estados Unidos, a frase “defund the police” (retire o financiamento da polícia, em tradução livre) apareceu em cartazes, faixas e pichações de protestos recentes. A reivindicação já angariou apoio de acadêmicos, artistas, advogados, ativistas, líderes comunitários e religiosos.

Em uma carta aberta que defende o desinvestimento na polícia, divulgada no início de junho, a cofundadora do movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”) Patrisse Cullors lembra a longa lista de pessoas negras assassinadas por forças de segurança nos EUA. Também as coloca no contexto da pandemia de covid-19, que mata mais negros do que brancos no país, e foi o pano de fundo para os protestos antirracistas e contra a violência policial.

“Os EUA não têm um sistema nacional de saúde. Em vez disso, temos o maior orçamento militar do mundo e alguns dos departamentos de polícia mais militarizados e fortemente financiados no planeta. O policiamento e militarização consomem a maior parte dos orçamentos locais e nacional. (...) Chegou a hora de retirar financiamento da polícia”, argumenta a carta.

Uma reportagem da revista Slate publicada em 19 de junho compara os gastos de três cidades americanas (Minneapolis, Los Angeles e Dallas) com a polícia aos valores dedicados a outros serviços públicos em 2020.

São cidades de diferentes regiões, tamanhos e características demográficas, mas todas têm a polícia entre suas principais despesas: ela está em primeiro lugar entre os maiores gastos de Los Angeles, é o quarto maior volume de gasto público em Minneapolis e fica em segundo lugar em Dallas.

Os defensores da redução dos orçamentos policiais também propõem diminuir a gama de atuação das polícias. Para eles, funções que vão além do âmbito criminal, como o atendimento de crises de saúde mental da população, a fiscalização de infrações de trânsito e o patrulhamento de escolas públicas e universidades, poderiam ser exercidas por outros agentes públicos.

Onde a proposta vai ser adotada

Segundo uma reportagem publicada pelo site de notícias Bloomberg Citylab em 9 de junho, legisladores de pelo menos 17 cidades americanas apresentaram propostas ou assumiram o compromisso de cortar recursos da polícia.

Outras tantas propuseram tirar a polícia das escolas. Algumas iniciativas aguardam a realização de pesquisas ou a participação da população.

Entre as administrações que já anunciaram cortes no financiamento da polícia e direcionamento de verbas para outras áreas estão cidades americanas importantes como Nova York, Los Angeles e São Francisco.

Em Los Angeles, uma das primeiras a aderir à mudança, a redução anunciada pelo prefeito e pelo legislativo municipal deve chegar a US$ 150 milhões. Esse dinheiro, somado a outros US$ 100 milhões vindos de outras áreas, será investido em projetos voltados para a população negra da cidade. O orçamento da polícia na cidade foi de US$1,8 bilhão em 2020. Líderes de movimentos reivindicavam uma redução de pelo menos US$ 250 milhões.

O caso de Minneapolis

Na cidade de George Floyd, onde se iniciou a onda de protestos que se espalharam pelos EUA e por cidades de fora do país, membros do legislativo municipal anunciaram em 7 de junho o desmantelamento do departamento de polícia da cidade e a criação de um novo sistema de segurança pública.

Embora ainda não esteja claro como isso será feito e o que virá no lugar da instituição, o anúncio marca uma inflexão na forma como políticos lidam com a questão no país e no reconhecimento de que há um problema sistêmico na instituição policial.

O prefeito da cidade, Jacob Frey, se opõe ao desmantelamento da polícia. Como há apoio da maioria dos conselheiros (similares aos vereadores no Brasil), porém, ele não tem poder para vetar a medida.

Lembrada por seus índices de qualidade de vida e por sua inclinação política progressista, a cidade tem também um longo histórico de casos de violência policial e desigualdade racial.

Em entrevista à organização Marshall Project, Molly Glasgow, voluntária em uma iniciativa popular voltada à abolição do departamento de polícia da cidade chamada MPD150, afirmou que décadas de tentativas de reforma da instituição não foram capazes de quebrar o ciclo que se repete sempre que há uma morte como a de George Floyd: violência seguida de protestos e promessas de melhora que não funcionam.

Para ela, desmantelar o departamento e cortar seu financiamento é a maneira de sair desse ciclo.

A oposição à proposta

Uma das principais forças de oposição contra o movimento de redução de orçamentos de forças de segurança são os sindicatos que representam policiais no país.

Ao longo dos anos, eles têm atuado para barrar mudanças nos departamentos de polícia, derrubando medidas disciplinares mais duras e garantindo a impunidade de agentes responsáveis por condutas abusivas e criminosas. Além disso, são praticamente intocáveis pelo poder de que gozam nas ruas e junto a políticos.

O presidente americano Donald Trump também se opõe à ideia e faz críticas ao movimento para retirar o financiamento das polícias, que já classificou como “uma moda”.

Sob pressão, chegou a assinar em meados de junho um decreto que determina uma reforma limitada nas instituições policiais americanas, condicionando por exemplo seu financiamento à proibição de manobras de sufocamento como a que foi aplicada em George Floyd.

Dias antes, no Twitter, Trump havia incitado policiais a “tomarem uma posição mais firme em relação aos políticos da esquerda radical que os estão tratando tão mal, com tanto desrespeito”.

O estado da discussão no Brasil

Casos recentes de violência e mortes provocadas por policiais militares no Brasil também geraram protestos e cobranças para reformular a instituição. Em São Paulo, como resposta a essas demandas, o governador de São Paulo João Doria (PSDB) anunciou em 22 de junho um programa para “retreinamento” da tropa para evitar abusos.

Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a despesa do Brasil com segurança pública totalizou R$ 91,2 bilhões em 2018, o equivalente a 1,34% do PIB.

O estudo avalia que os investimentos do Estado brasileiro em segurança têm sido pouco eficientes: focados em policiamento ostensivo e nas prisões de pequenos criminosos em flagrante, os valores são pouco usados em áreas que trariam resultados mais efetivos, como inteligência e investigação

Ouvidos pelo Nexo no fim de junho, o professor da FGV (Faculdade Getulio Vargas) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani e o antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares apontaram aspectos que precisam ser mudados nas polícias brasileiras.

Alcadipani defendeu “uma mudança para mentalidades que privilegiem uma polícia que proteja a vida, e não uma polícia que favoreça o confronto”. Já Soares destaca a arquitetura institucional herdada da ditadura e considera que “a natureza militar da polícia ostensiva inviabilizou seu aperfeiçoamento para cumprimento de missões democráticas”.

Ambos afirmaram que as circunstâncias atuais do país são desfavoráveis para propor mudanças estruturais nessa área. Além da violência e da falta de efetividade policial, o professor da FGV chamou atenção para o envolvimento das polícias militares com o bolsonarismo e para a suspeita de que apoiariam uma eventual ruptura democrática encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro.

“Não significa que não tenhamos de apresentar propostas alternativas e ir trabalhando junto à sociedade no sentido de criar ou expandir uma consciência crítica capaz de compreender por que vivemos essa insegurança crônica há muitos anos e de que modo a arquitetura institucional que herdamos da ditadura contribui para sua piora”, disse o antropólogo Luiz Eduardo Soares.


July 21, 2020

'Ghost of Tsushima' transforma filmes de samurai num deslumbrante jogo para PS4

Arte conceitual do jogo 'Ghost of Tsushima' Foto: Reprodução


Louis Chilton / The Independent

"The ghost of Tsushima", um ambicioso jogo de ação e aventura num mundo aberto ambientado no Japão do século XIII, é o último grande lançamento exclusivo do PS4. O jogo surgiu a partir de um único desejo, diz Brian Fleming, co-fundador da Sucker Punch Productions: criar algo em torno do combate corpo a corpo. Especificamente luta de espadas. Todo o resto — gênero, cenário, personagens — foi desenvolvido a partir daí.

'The Last Of Us 2'Jogo se torna fenômeno com 'hipérbole da realidade' de uma pandemia

Como toda a equipe criativa principal “tinha uma afinidade por samurais”, eles começaram a pesquisar o Japão feudal, em busca de inspiração. Acabaram encontrando um relato das invasões mongóis na ilha japonesa de Tsushima, em 1274.

"Cara, isso é uma história de videogame", pensou Fleming, enquanto lia sobre "os 80 samurais que defenderam a ilha contra os Invasores mongóis”. A partir daquele momento, cerca de seis anos atrás, ficou claro para todos na Sucker Punch o que eles fariam a seguir — um jogo priorizando o combate acima de tudo.

Antes de "Ghost of Tsushima", a Sucker Punch era conhecida pelo popular "Infamous". O novo jogo mantém certas ideias dessa série — principalmente o ambiente de mundo aberto lindamente projetado —, mas é construído em torno de um sistema de combate totalmente diferente.

— Refinamos o sistema de combate ao longo de seis anos — diz Fleming.

Influência ou apropriação?

O trabalho seguia intenso até 2020. Quando a pandemia de coronavírus chegou, continuou com os desenvolvedores isolados em suas casas. Mesmo após o lançamento do jogo ser adiado, em junho, por três semanas, ele foi concluído "em cima do laço".

Parte da discussão em torno de "Ghost of Tsushima" gira em torno da apropriação cultural. O que dá a uma equipe de desenvolvedores americanos o direito de abordar e ganhar dinheiro com essa história especificamente japonesa? Mas Fleming logo aponta que o jogo não foi feito exclusivamente no oeste.

A Sucker Punch foi adquirida pela Sony em 2011 e ele descreve o relacionamento do estúdio com Shuhei Yoshida, ex-presidente da SIE Worldwide Studios da Sony, como "nossa vantagem mais importante".

— Entramos em contato com Shu primeiro e depois com a equipe da Sony Japão e dissemos: 'Temos essa ideia que queremos fazer. Isso é razoável:? Vocês podem nos ajudar a fazer isso?

O braço japonês da empresa participou de todo o projeto, revisando o conteúdo do jogo e "mantendo a Sucker Punch em um caminho que seria bem-sucedido e respeitoso, mantendo qualidade e sensibilidade". Como Fleming coloca, a equipe estava ansiosa para evitar "erros de ignorância".

Uma das críticas é a superficialidade de sua representação da cultura japonesa. Trata-se de uma queixa feita há alguns anos em relação ao filme "Ilha de cachorros", de Wes Anderson, também ambientado em uma versão fictícia do Japão. O jogo realmente quer entender e explicar a cultura japonesa? Ou está interessado apenas na estética: a caligrafia atraente, as roupas desconhecidas, a arquitetura idiossincrática?

Como em "Ilha de cachorros", a crítica é difícil de descartar, porque a estética é, além do combate, o ponto de venda mais forte do jogo.

É um jogo muito bonito — diz Fleming, com razão. — As flores roxas, o pôr do sol laranja, o verde ... É engraçado: um conselho que recebemos de nossos parceiros no Japão foi o quão importante era que o mundo fosse verde.

Modo Kurosawa

Jogo
Jogo 'Ghost of Tsushima' tem modo em preto e branco, em homenagem a Akira Kurosawa Foto: Reprodução

Os cantos de pássaros e sons ambiente vieram da própria ilha, graças à parceria com o braço japonês da Sony. Mas liberdades foram tomadas em outros aspectos do jogo. O mapa, por exemplo, é apenas parcialmente baseado em Tsushima, emprestando elementos visuais de outras áreas do Japão.

— Mesmo as espadas são de um período um pouco posterior à invasão específica que retratamos — admite Fleming. — É preciso ficar claro que isso não é um documentário, é um produto de entretenimento. Claro que existem algumas liberdades.

Os jogadores têm a opção de usar um filtro preto e branco, uma configuração conhecida como "modo Kurosawa". Para usar o nome, eles receberam as bênçãos e conselhos do espólio de Akira Kurosawa, o lendário diretor de cinema japonês. Fleming garante que a ideia vai bem além de uma citação vazia.

— É uma tentativa legítima de homenagear o trabalho dele. O jogo usa o nome dele, não um termo genérico, porque consideramos que ele teve um papel muito importante no desenvolvimento.

LegadoAkira Kurosawa ainda tem força de levar os samurais e o cinema para o futuro

O nome do modo preto e branco gerou críticas de cinéfilos nas redes sociais, uma vez que qualquer pessoa que tenha visto as obras de final de carreira de Kurosawa, como "Sonhos", sabe que alguns de seus filmes são cheios de cores.

Faz sentido que "Ghost of Tsushima" tente se aproximar de alguma maneira do legado de Kurosawa: o cineasta também teve uma relação complicada com empréstimos interculturais. Durante sua vida, foi frequentemente acusado de fazer os filmes mais americanizados entre seus contemporâneos no Japão. Sua obra era comparada em eespecial com a de Yasujiro Ozu, cujo estilo mais lento e temas domésticos supostamente comunicavam uma sensibilidade mais autenticamente japonesa. Era uma via de mão dupla, é claro: as marcas de Kurosawa podem ser vistas em todo o cinema de Hollywood durante a segunda metade do século XX.

Por mais redutivo que seja, o uso do nome Kurosawa é uma manobra deliberada, uma maneira de divulgar o jogo para a (maioria das) pessoas que não viram "Ran". Aqueles que conhecem Kurosawa apenas por "Os sete samurais" ou, indiretamente por filmes como "Guerra nas Estrelas". Mas não é como se os desenvolvedores da Sucker Punch não tivessem feito sua pesquisa — Fleming cita "Ran" como uma das influências centrais do jogo.

Entre outras influências estão "Yojimbo", o clássico de Kurosawa de 1961, e jogos como "Skyrim", "Red dead redemption" e "The Legend of Zelda: The Breath of the Wild". Fleming não menciona Assassin's Creed, com o qual o Ghost foi comparado regularmente na preparação para o lançamento do jogo, ou jogos recentes ambientados no Japão, como "Nioh" ou "Sekiro: Shadows Die Twice". Diferente desses jogos, "Ghost of Tsushima" rejeita elementos sobrenaturais; o plano sempre foi mantê-lo o mais realista possível.

— Nunca consideramos outra opção. A ideia era tratar de problemas e reações humanas.

Em um nível estético, Ghost of Tsushima é um triunfo; só isso já o coloca como um sucesso em potencial. A Sucker Punch pode ter escolhido Tsushima como uma conveniência, um pretexto para estudar a mecânica do combate com espadas. Mas se o título apresentar uma pequena fração de seus jogadores ao gênio de Akira Kurosawa, então o trabalho já terá sido justificado.

O GLOBO

July 18, 2020

Nostalgia do Império é fantasia reacionária do bolsonarismo


Professor de história do Brasil colonial na Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)

Paulo Pachá

Professor de história medieval na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)