Dorrit Harazim
O mesmo chumbo que paralisa motores de automóveis não poupa nenhum órgão humano quando ingerido ou inalado
Esta semana a Oxfam divulgou o seu relatório global sobre desigualdade, demonstrando, entre outros, que 62 bilionários top detêm bens equivalentes aos da metade da população mundial mais pobre (3,6 bilhões de pessoas). Também esta semana, no seu habitual refúgio montagnard de Davos na Suíça, o atual elenco de cabeças tidas como pensantes marcaram presença na reunião anual para equacionar as grandes questões mundiais.
Poderiam ter ficado em casa e se debruçado a sério sobre o relatório da Oxfam, começando pelo item 1. Boa parte das grandes questões mundiais do século 21, senão a raiz de todas elas, está lá.
Que o diga a cidade de Flint — caso exemplar, evitável e por isso tão aterrador.
Flint, no estado americano de Michigan, só não permanecia no seu justo anonimato porque dele fora arrancada em 1989 pelo cineasta Michael Moore através do ácido documentário “Roger e eu”, sobre o declínio da cidade. De lá para cá, as coisas só pioraram.
Apelidada de “Murdertown” (algo como Assassinópolis), essa cidade situada a uma centena de quilômetros de Detroit há muito esqueceu os tempos em que reluzentes Buicks saíam das fábricas da GM e empregavam 75 mil trabalhadores. A Flint daqueles tempos dourados tinha 200 mil habitantes e uma das rendas per capita mais altas do país.
Como se sabe, tudo isso virou pó com a automação, a desindustrialização, a migração da GM para outras paragens, a mudança do cenário econômico nacional e mundial. A cidade dependente de uma única indústria e de uma única empresa perdeu metade de sua gente e 93% de seus postos de trabalho.
Restaram cem mil almas formando uma população completamente atípica nos Estados Unidos: 57% são negros, 41,5% vivem abaixo da linha de pobreza, contra os 17% e 15% da média nacional americana. As milhares de casas abandonadas na cidade fantasma se transformaram em abrigos de criminosos. Uma das poucas distrações locais, por não custar nada, passou a ser os frequentes incêndios que fazem de cada imóvel vazio um espetáculo à la “E o vento levou”.
Sem recursos, Flint e outras cidades de perfil semelhante passaram então a receber tratamento de choque para evitar a falência. Segundo uma lei de gerenciamento emergencial aprovada no estado de Michigan em 2012, o governador começou a nomear administradores de sua escolha para assumir a gestão das contas públicas em municípios em crise. Com poder maior do que o dos representantes eleitos pelos munícipes.
O receituário do administrador para equilibrar as finanças de Flint foi ortodoxo: cobrou taxas mais altas para saneamento básico e iluminação de rua de uma população já depauperada; encolheu o funcionalismo público numa cidade de poucos empregos e enxugou o efetivo policial do município conhecido como “Assassinópolis”.
Em abril de 2014, adotou medida de corte mais radical, alterando a fonte de captação de água do município. Optou por desconectar Flint do sistema hídrico de Detroit, abençoada por um dos maiores conjuntos de lagos de água doce do planeta, e passou a suprir a cidade com recursos vindos do Rio Flint. Apesar de esse rio ser, há muitas décadas, notório depósito de lixo industrial das fábricas locais. Festejou, assim, uma economia anual de US$ 1 milhão a US$ 2 milhões.
Dois meses depois da nova água amarelada começar a jorrar das torneiras e ser usada na comida, no banho, na bebida diária dos moradores da cidade, a pediatra Mona Hanna-Attisha, do hospital infantil municipal, soou o alarme. Ela notara uma incidência anormal de sintomas ligados a metal no organismo de seus jovens pacientes.
As autoridades não quiseram ouvi-la, mas ela persistiu. Mandou analisar a água e constatou a temida contaminação por chumbo. Embora apresentasse as provas, não lhe deram ouvidos. Pior, foi repreendida por espalhar o pânico sem necessidade. O fato de o pastor da paróquia local ter parado de usar a água malcheirosa para batismos tampouco alterou o quadro.
A General Motors, que mantém em Flint uma fábrica de motores, achou prudente agir por conta própria para salvaguardar a saúde de seus equipamentos. Seis meses depois de operar com a nova fonte hídrica implantada na cidade, a empresa comunicou às autoridades que seus motores estavam sendo danificados pelas propriedades corrosivas da água do rio e, por isso, reverteriam ao sistema anterior. E assim fizeram.
Sorte das máquinas.
O mesmo chumbo que paralisa motores de automóveis não poupa nenhum órgão humano quando ingerido ou inalado — cérebro, sistema nervoso, coração, rins, ossos, DNA, tudo. Ademais, é irreversível. E nada há a fazer: ferver a água apenas concentra ainda mais o nível do metal. E como o governador Rick Snyder levou 18 meses para admitir a calamidade, ela agravou-se de forma exponencial, pois quanto mais tempo a água contaminada corrói encanamentos e tubulações, mais tóxica ela se torna.
“Tragédias não são apenas furacões e tornados, coisas assim. O que temos aqui em Flint é uma tragédia. Todas as crianças daqui estiveram sob o risco de lesão cerebral irreparável”, desabafou a pediatra em entrevista à CNN.
Foi somente depois que os moradores da cidade se mobilizaram e atraíram especialistas ambientais, ativistas em saúde pública e a grande imprensa dos Estados Unidos que o caso adquiriu a dimensão da catástrofe e está sendo monitorado de todos os ângulos.
Simplificações e generalizações costumam ser expedientes fáceis e baratos. Tomar Flint como exemplo de qualquer coisa também é uma simplificação. Mas pior seria não falar em Flint. Até porque tem uma mini-Flint gangrenando em quase toda grande cidade brasileira — seja por ações equivocadas do poder público, seja, sobretudo, por séculos de abandono dos marginalizados a vidas entre esgotos.
O GLOBO, 24 DE JANEIRO DE 2016