February 28, 2010

Geisy na folia

FERNANDO DE BARROS E SILVA

 SÃO PAULO - Com a palavra, o apresentador do "Fantástico": "A polêmica acabou em samba. Lembra da Geisy, aquela do vestidinho rosa que provocou um rebuliço numa universidade em São Paulo? Ela está de volta, modificada, revista e ampliada". Assim começava a reportagem do dominical da Globo sobre a lipoescultura a que se submeteu a estudante Geisy Arruda. Tratava-se de mostrar em primeira mão o "novo visual" que a musa acidental da Uniban iria exibir durante os festejos momescos.

"Samba, vestidinho rosa, rebuliço" -as expressões engraçadinhas do locutor dão o tom acafajestado do suflê destinado a entreter os lares no final do domingão.

Uma das coisas que mais chamam a atenção no caso Geisy é a conversão do trauma em oportunidade, da humilhação em dinheiro, da selvageria em diversão de massa. A passagem entre uma coisa e outra se deu de maneira instantânea, sem que houvesse tempo para a elaboração do luto ou preocupação em refletir sobre o que aconteceu.

Depois de dizer que cinco litros de gordura foram pelo ralo, que "a barriga virou bumbum" e que Geisy ganhou quase meio litro de silicone em cada peito, o repórter pergunta: "Será que uma lourona dessas passa despercebida nas ruas?"

Vemos então miss Uniban desfilar pelos bares, entre marmanjos ouriçados a emitir sons de aprovação e correr para clicar a "nova Geisy" com os celulares. A cena lembra a turba em fúria nos corredores da universidade.

Aquilo que a escola prometia como perspectiva remota (uma vida melhor com o canudo na mão), Geisy alcançou num estalo, não pelo que aprendeu, mas como vítima da estupidez e da atrocidade do ambiente de ensino que frequentava.

Talvez ainda exista a tentação de criticar o deslumbramento da garota com sua fama descartável. Mas por quê? Ela não é mais vulgar do que as apelações da mídia a seu respeito. Ela não é mais frívola do que o jornalismo de celebridades e seus espectadores.


Folha, 15 de fevereiro de 2009


A incultura de todo dia



TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A cultura cristalizada, objetivada (museu, cinema, folclore) recebe atenção no Brasil. Não muita: alguma. É antes objeto de discussão que de apoio real. Mas recebe.

A microcultura, porém, que forma as relações humanas, a cultura interiorizada, modo de pensar e viver, continua à margem. Rala, esburacada, em frangalhos. A cultura formal e a cultura cotidiana seguem rotas paralelas que deveriam ser pelo menos convergentes.

Sinal claro é o Índice de Desenvolvimento Humano do país: 75º entre 182. Atrás de Sérvia, Rússia, Romênia, México, Uruguai, Argentina, Chile, Barbados, Hong Kong, Singapura, Bahamas, Costa Rica, Líbia... Índices falham. Mas algo mostram.

Integram esse índice a alfabetização e a escolaridade: quantos sabem ler e escrever, quanto tempo passam na escola. Quando se examina o conteúdo de uma e outra, a situação aqui assusta ainda mais. Nos últimos dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), os estudantes brasileiros estão na 53ª posição em matemática, entre 57 países; e na 48ª, entre 56, em compreensão de texto.

Um abismo existe entre a cultura objetivada e a cultura vivida. O resultado é o autoritarismo em todas as suas formas (incluindo a corrupção) de humilhação e abuso cotidianos -do ônibus que não para junto ao meio-fio para recolher passageiros ao lixo espalhado nas ruas e às pessoas que, no metrô, querem entrar nos vagões antes que os outros desembarquem, como se os outros não existissem. A incultura faz isso: torna os outros invisíveis. Irrelevantes.

A violência crua é o modo duro da incultura. Com a ausência do Estado em uma de suas funções indelegáveis, as pessoas, desesperadas, querem proteger-se como possível. Terceirizar parece a saída. Ninguém quer saber se os contratados são capacitados. Passa-se a responsabilidade adiante e pronto. Tudo é questão de aparência. E a aparência, aqui, é violência. O Estado passa sua responsabilidade aos que já pagaram por ela e esses a repassam a terceiros, pagando de novo, sem ocupar-se do "produto". Se algo acontecer, a culpa é do terceiro. Não é. Mas todos pretendem que sim. Resultado, "o segurança" é, ele mesmo, não raro, fator de insegurança e da violência que deveria evitar.

É evidente que falo do assassinato de um jovem pelo "segurança" de uma padaria num bairro de classe média alta, ao lado de um ótimo hospital ao qual esse jovem não pôde chegar com vida. Tragicamente emblemático.

Enquanto isso, um economista diz que o Brasil logo será a quinta economia do mundo e que então terá sua autoestima. Não terá. Sem a cultura como lastro e tecido, o país não se moverá um centímetro do horror que tentamos não ver.

Cruzar a ponte entre a cultura formal e a cultura interiorizada, que juntas sugerem, senão o amor, pelo menos o respeito pelo outro, não é o maior desafio: é o único desafio. A educação foi vista como panaceia universal. Não é. Educação sem cultura, como aqui, nada é.
Cultura tampouco é panaceia. É apenas, e não é pouco, a alavanca restante.

Este texto é uma homenagem, ínfima, aos que em 2009 caíram sob o peso da incultura brasileira.



TEIXEIRA COELHO é professor da ECA-USP, autor de "Dicionário Crítico de Política Cultural", crítico e curador do Masp (Museu de Arte de São Paulo)


Folha, 29 de dezembro de 2009


Canal pago acolhe o que Holywood baniu

RAUL JUSTE LORES
DE PEQUIM

 

ilustração de Caco Galhardo


As dez maiores bilheterias do cinema americano no ano passado não deixam dúvidas de que temas adultos, roteiros elaborados e atores com mais de 30 anos têm mais chance na TV do que em Hollywood.

"Transformers 2", "Harry Potter 6", "Se Beber, Não Case", "Up", "Lua Nova" e "Avatar" têm algo em comum, saltos tecnológicos à parte: uma escritura sem ossos ou espinhas para que adolescentes, os maiores frequentadores dos cinemas, possam mastigá-los sem medo.
"Não existem papéis tão intensos no cinema", reclama o ator Ted Danson, da série Damages. "Nos filmes de US$ 100 milhões, o investimento está nos efeitos especiais e no marketing, não no roteiro", diz.

A depressão da América pós-crise financeira ("Hung", "Damages"), os desafios morais da guerra ao terror ("24"), a América sexista e racista pré-revolução sexual ("Mad Men"), a indústria das drogas e suas insuspeitas ramificações ("The Wire") ou a intolerância ("True Blood") ganham generosos roteiros, produção em película, cenas de sexo e drogas banidas de Hollywood e um status único na cultura pop.

O jornal "El País" perguntou a famosos escritores espanhóis o que achavam da atual safra de seriados. "Se Dumas ou Balzac estivessem vivos, estariam na TV, onde é feita boa parte da melhor narrativa no mundo", compara Carlos Ruiz Safón.

"As sete temporadas de "Os Sopranos" foram pouco", reclama o fã Javier Marías. E o filósofo Fernando Savater diz que "Os Simpsons" não se limitam à sátira social, mas "que praticam com ácido entusiasmo a purificação antropológica".

A rede de TV franco-alemã Arte dedicou o documentário "Hollywood, o Reino das Séries", à era dourada da TV americana. No programa, destaca-se o poder dos roteiristas-produtores sobre o dos diretores e o cuidado com o texto.

O métier já se deu conta disso. Grandes atores hollywoodianos que não encontravam bons papéis na indústria-pipoca migraram para a TV. Glenn Close, Kathy Bates, Holly Hunter, Kiefer Sutherland, Martin Sheen e Rachel Griffiths se mudaram para a telinha, assim como nomes quentes do cinema independente, como Tim Roth, Gabriel Byrne, Patricia Clarkson, Mary Louise Parker e Chloe Sevigny.

Cineastas como o argentino Juan José Campanella ("O Filho da Noiva") e o norte-americano Bryan Singer ("Os Suspeitos") trabalham como diretor e produtor executivo da série "House" (Universal Channel).

Alan Ball, que levou o Oscar por "Beleza Americana", se consagrou mesmo com os seriados "A Sete Palmos" e "True Blood". O escritor Dennis Lehane escreveu roteiros para "The Wire", e o cineasta Rodrigo García, filho de Gabriel García Márquez, dirigiu episódios de "A Sete Palmos", "Big Love" e "In Treatment".

O riquíssimo mercado televisivo americano ajudou a revolução: 55% da audiência está nos canais a cabo, que chegam a 100 milhões de domicílios que pagam pela assinatura e são o público mais cobiçado pelos anunciantes. Se as TVs abertas visam a massa, o cabo precisa achar o seu nicho.

Por isso uma série como "Mad Men", a mais premiada nos últimos três anos no país, pode se contentar com apenas 2 milhões de espectadores por episódio. Por trás de sucessos como "True Blood", "Sex and the City" e "A Sete Palmos", a HBO arrebanhou 40 milhões de assinantes. Sua maior concorrente, Showtime, investiu em seriados ainda mais polêmicos, como "Dexter", "Queer as Folk", "Californication", "The Tudors" e "The L Word".

Roteiristas do seriado "The Wire" já participaram de festivais literários no Reino Unido e na China, onde outros escritores os tietavam. Para esses intelectuais, o esterco cultural não está no cabo.

Folha, 18 de fevereiro de 2009