Quando a hipereficiência da comunicação global se une à supercarência do público, notícia e ficção se equivalem no show da vida
ARNALDO BLOCH
Sinopse de notícia: menino de seis anos com nome de boneco parte num balão desgovernado rumo ao infinito.
Rastreado por helicópteros munidos de câmaras, o balão se materializa, é notícia, tangível, o argumento ganha voo e, em minutos, convertese no maior espetáculo da Terra, à guisa de confirmação, o lazer à solta, o taxímetro correndo em megabytes por segundo.
Em terra, equipes de resgate, polícia, milicos, acompanham o trajeto até que, duas horas depois, a aldeia global se contorce diante do desfecho grego: o balão, em forma de espaçonave, pousa suavemente, mas está vazio, Falcon morreu, caiu, despedaçou-se num descampado qualquer, foi até visto por um policial, ali está, o corpo que cai.
Correntes de solidariedade se formam no twitter em torno da palavra-chave balloonboy, campeã de audiência.
Mulheres e alguns homens choram copiosamente em casa, em repartições, em escritórios, redações de jornal: o pequeno Falcon, de seis anos, se foi, lançou-se, em pânico, lá do alto (4,5 mil metros).
Morte, rapto ou abdução
Permanecesse a bordo, na cesta (mas que cesta?, posto que era um balão em forma de disco voador?) até a involuntária aterragem, o menininho chegaria incólume à outra margem da travessia, como um Moisés contemporâneo, vítima inocente das vicissitudes dos adultos.
Os pais, aliás, logo estão na boca do povo: numa reedição do caso da portuguesa Madeleine, teriam, acidentalmente, causado a morte do filho. Diante do inevitável, enterraram-no, desenlaçaram o balão e mandaram o filho mais velho, de oito anos (fonte primária do grande esforço de reportagem multinacional!) , dizer que Falcon partira a bordo do artefato.
Ou seria obra de um forasteiro?, como no conto de Aníbal Machado, “O iniciado do vento”, que inspirou, junto com outros escritos dele, a novela “Felicidade”, de Manoel Carlos: em uma cidade pequena, um garoto é carregado por uma ventania e um viajante de passagem, amigo seu, é acusado de tê-lo molestado...
Na melhor das hipóteses, tratar-se-ia de alta negligência daqueles anormais rancheiros ufólogos soltadores de balões, deixar suas naves loucas assim, dando sopa no quintal, ao alcance do filhinho. Isso se não tivessem enviado o menino numa imaginária missão de terceiro grau no olho de algum tornado.
Na trilha do livre-pensar cibernético, até a abdução extraterrestre, para quem acredita, esteve entre as primeiras cogitações de blogueiros, twitteiros e circunstantes, naquelas horas em que a CNN se transformou na janela do mundo. Pois ali, na janela, estava o balão e, enquanto não se resolvesse a trama do balão e do menino, o mundo não dormiria em paz.
Se o menino morresse, por outro lado, o mundo teria emoção, dor e revolta suficientes para entreter-se por uma semana.
No início da noite, contudo, o desfecho se fez como uma ducha de água fria, para o bem e para o mal: um suspiro de alívio ecoou Terra afora, Falcon estava vivo, na garagem de casa, e o que se anunciava como um drama de longa duração convertera-se numa piada. Esse traquinas vai é levar uma surra!, e vão lhe contar de novo a fábula do menino e do lobo, pois da próxima vez que Falcon soltar o balão de papai ninguém vai acreditar, e o balão vai esvairse espaço afora, e o menino vai estar lá dentro, como no romance de Ian McEwan, “Um amor para sempre” (que virou filme), em que o avô, mesmo ajudado por um grupo de homens, não consegue evitar que o neto parta, sozinho, a bordo de um artefato voador.
Ontem, novos ingredientes se adicionariam à avalanche ficcional que, de súbito, tomou conta da corrente instantânea das comunicações humanas: uma inconfidência do menino, ao vivo, na televisão, levantava a hipótese patética de o pai, habitué de shows televisivos, ter armado tudo, com o objetivo de atrair mais publicidade aos seus feitos e suas aventuras. O menino, nesta versão, seria um mero fantoche nas mãos de Richard Heene, gênio do mal, caçador de furacões, criador de títeres, manipulador do coração vazio do público e do vazio de idéias do jornalismo travestido em entretenimento.
Confirmada a armação — que teria contado com a anuência, ou, pelo menos, com a ingenuidade dos meios de comunicação — reforça-se a constatação de que, durante poucas horas, o mundo esteve à mercê de um conto de carochinha, obra não só da família Heene, mas obra coletiva, escrita a dezenas de milhões de mãos, por jornalistas, cinegrafistas, internautas e telespectadores.
Um jovem Orson Welles ressuscitado faria a festa se noticiasse, em pleno 2009, uma invasão marciana (como fez em 1938 numa transmissão radiofônica que causou ondas pânico nos Estados Unidos), desde que as imagens fossem minimamente críveis, como a sua narrativa de então.
Bin Laden e o padre voador
Tal tipo de mobilização espetaculosa em escala global não é de hoje. Ela começa com a primeira invasão dos EUA ao Iraque, quando se inaugurou a transmissão de conflitos pela televisão em tempo real. Dez anos depois, o ataque e a queda das Torres Gêmeas no 11 de setembro assombrou o mundo com uma qualidade de transmissão irretocável, só que, ali, não havia margem para muita criação: ao contrário, era a materialização de todo um imaginário ficcional construído pela paranoia americana, em consonância com seus ideais de grandeza insuplantável.
Poucas dúvidas restavam, então, quanto ao que acontecera e de onde vinha a ameaça (a ficção, com a culpabilização do Iraque, veio depois). Mesmo assim, o compositor contemporâneo Karl Stockhousen, em declarações que chocaram os incautos, elevou a armação de Bin Laden a arte, por sua perfeição estética, sua simetria, aliada aos seus propósitos ideológicos.
Jamais, contudo, desde a primeira Guerra do Golfo, um espetáculo do gênero mobilizou, num curto espaço de tempo, tanta emoção em torno de tantas incógnitas e com tanto conteúdo simbólico envolvido como no caso do menino no balão. Talvez, justamente, por se tratar de um balão, objeto que, desde sua invenção, em inícios do século 18, pelo jesuíta brasileiro Bartolomeu de Gusmão (o “padre voador”) vem transcendendo suas múltiplas utilidades e formatos (exploração, transporte, pesquisa, lazer) à medida que seu caráter revolucionário se transforma em história remota e ele passa a habitar o terreno do lúdico.
Passados quase dois séculos da fictícia volta ao mundo de Phileas Fogg e seu fiel mordomo em 80 dias (com uma ajudinha do fuso-horário), uma outra história de menino e balão foi um dos maiores sucessos de bilheteria este ano nos EUA. No Brasil em cartaz há um mês, o desenho “Up — Altas aventuras” narra o drama de um velhinho aposentado, sem filhos, que vende balões (no caso, bexigas) num parque de diversões. Quando sua mulher, que sonhava viajar para a América do Sul, morre, ele fica sozinho e é ameaçado de ir para um asilo. Um menino, escoteiro, é seu único amigo.
Diariamente, vem visitá-lo, ajuda-o na jardinagem, faz tarefas várias. Um dia, em desespero, o velho resolve atar centenas de balões ao telhado de sua casa que, em consequência, alça voo. Mas ele não está só: o menino, no último instante, conseguira entrar na casa, e eles partem para a maior aventura de suas vidas; destino: uma América do Sul meio fantástica, desértica, venturosa.
O sonho de perder-se
Aqui, onde pipas ainda singram os céus e balões o embelezam ao mesmo tempo que provocam incêndios e acidentes, comovemo-nos com histórias como as do balão que se vai e que, serendipitosamente, volta ao quintal da casa, na quasememória do menino recriado por Carlos Heitor Cony. Toda criança, um dia, sonhou ir-se num balão, e toda criança perdida sonhou voltar para casa sã e salva. Por isso seguimos Falcon com tanta expectativa: era nosso destino, e o de nossas emoções movidas por boas e más notícias (verdadeiras ou falsas, pouco importa) que estava em jogo naquele balão.
O Globo, 17 de outubro de 2009