October 29, 2009

Coração balão

Quando a hipereficiência da comunicação global se une à supercarência do público, notícia e ficção se equivalem no show da vida


ARNALDO BLOCH


Sinopse de notícia: menino de seis anos com nome de boneco parte num balão desgovernado rumo ao infinito.

Rastreado por helicópteros munidos de câmaras, o balão se materializa, é notícia, tangível, o argumento ganha voo e, em minutos, convertese no maior espetáculo da Terra, à guisa de confirmação, o lazer à solta, o taxímetro correndo em megabytes por segundo.

Em terra, equipes de resgate, polícia, milicos, acompanham o trajeto até que, duas horas depois, a aldeia global se contorce diante do desfecho grego: o balão, em forma de espaçonave, pousa suavemente, mas está vazio, Falcon morreu, caiu, despedaçou-se num descampado qualquer, foi até visto por um policial, ali está, o corpo que cai.

Correntes de solidariedade se formam no twitter em torno da palavra-chave balloonboy, campeã de audiência.

Mulheres e alguns homens choram copiosamente em casa, em repartições, em escritórios, redações de jornal: o pequeno Falcon, de seis anos, se foi, lançou-se, em pânico, lá do alto (4,5 mil metros).

Morte, rapto ou abdução

Permanecesse a bordo, na cesta (mas que cesta?, posto que era um balão em forma de disco voador?) até a involuntária aterragem, o menininho chegaria incólume à outra margem da travessia, como um Moisés contemporâneo, vítima inocente das vicissitudes dos adultos.

Os pais, aliás, logo estão na boca do povo: numa reedição do caso da portuguesa Madeleine, teriam, acidentalmente, causado a morte do filho. Diante do inevitável, enterraram-no, desenlaçaram o balão e mandaram o filho mais velho, de oito anos (fonte primária do grande esforço de reportagem multinacional!) , dizer que Falcon partira a bordo do artefato.

Ou seria obra de um forasteiro?, como no conto de Aníbal Machado, “O iniciado do vento”, que inspirou, junto com outros escritos dele, a novela “Felicidade”, de Manoel Carlos: em uma cidade pequena, um garoto é carregado por uma ventania e um viajante de passagem, amigo seu, é acusado de tê-lo molestado...

Na melhor das hipóteses, tratar-se-ia de alta negligência daqueles anormais rancheiros ufólogos soltadores de balões, deixar suas naves loucas assim, dando sopa no quintal, ao alcance do filhinho. Isso se não tivessem enviado o menino numa imaginária missão de terceiro grau no olho de algum tornado.

Na trilha do livre-pensar cibernético, até a abdução extraterrestre, para quem acredita, esteve entre as primeiras cogitações de blogueiros, twitteiros e circunstantes, naquelas horas em que a CNN se transformou na janela do mundo. Pois ali, na janela, estava o balão e, enquanto não se resolvesse a trama do balão e do menino, o mundo não dormiria em paz.

Se o menino morresse, por outro lado, o mundo teria emoção, dor e revolta suficientes para entreter-se por uma semana.

No início da noite, contudo, o desfecho se fez como uma ducha de água fria, para o bem e para o mal: um suspiro de alívio ecoou Terra afora, Falcon estava vivo, na garagem de casa, e o que se anunciava como um drama de longa duração convertera-se numa piada. Esse traquinas vai é levar uma surra!, e vão lhe contar de novo a fábula do menino e do lobo, pois da próxima vez que Falcon soltar o balão de papai ninguém vai acreditar, e o balão vai esvairse espaço afora, e o menino vai estar lá dentro, como no romance de Ian McEwan, “Um amor para sempre” (que virou filme), em que o avô, mesmo ajudado por um grupo de homens, não consegue evitar que o neto parta, sozinho, a bordo de um artefato voador.

Ontem, novos ingredientes se adicionariam à avalanche ficcional que, de súbito, tomou conta da corrente instantânea das comunicações humanas: uma inconfidência do menino, ao vivo, na televisão, levantava a hipótese patética de o pai, habitué de shows televisivos, ter armado tudo, com o objetivo de atrair mais publicidade aos seus feitos e suas aventuras. O menino, nesta versão, seria um mero fantoche nas mãos de Richard Heene, gênio do mal, caçador de furacões, criador de títeres, manipulador do coração vazio do público e do vazio de idéias do jornalismo travestido em entretenimento.

Confirmada a armação — que teria contado com a anuência, ou, pelo menos, com a ingenuidade dos meios de comunicação — reforça-se a constatação de que, durante poucas horas, o mundo esteve à mercê de um conto de carochinha, obra não só da família Heene, mas obra coletiva, escrita a dezenas de milhões de mãos, por jornalistas, cinegrafistas, internautas e telespectadores.

Um jovem Orson Welles ressuscitado faria a festa se noticiasse, em pleno 2009, uma invasão marciana (como fez em 1938 numa transmissão radiofônica que causou ondas pânico nos Estados Unidos), desde que as imagens fossem minimamente críveis, como a sua narrativa de então.

Bin Laden e o padre voador

Tal tipo de mobilização espetaculosa em escala global não é de hoje. Ela começa com a primeira invasão dos EUA ao Iraque, quando se inaugurou a transmissão de conflitos pela televisão em tempo real. Dez anos depois, o ataque e a queda das Torres Gêmeas no 11 de setembro assombrou o mundo com uma qualidade de transmissão irretocável, só que, ali, não havia margem para muita criação: ao contrário, era a materialização de todo um imaginário ficcional construído pela paranoia americana, em consonância com seus ideais de grandeza insuplantável.

Poucas dúvidas restavam, então, quanto ao que acontecera e de onde vinha a ameaça (a ficção, com a culpabilização do Iraque, veio depois). Mesmo assim, o compositor contemporâneo Karl Stockhousen, em declarações que chocaram os incautos, elevou a armação de Bin Laden a arte, por sua perfeição estética, sua simetria, aliada aos seus propósitos ideológicos.

Jamais, contudo, desde a primeira Guerra do Golfo, um espetáculo do gênero mobilizou, num curto espaço de tempo, tanta emoção em torno de tantas incógnitas e com tanto conteúdo simbólico envolvido como no caso do menino no balão. Talvez, justamente, por se tratar de um balão, objeto que, desde sua invenção, em inícios do século 18, pelo jesuíta brasileiro Bartolomeu de Gusmão (o “padre voador”) vem transcendendo suas múltiplas utilidades e formatos (exploração, transporte, pesquisa, lazer) à medida que seu caráter revolucionário se transforma em história remota e ele passa a habitar o terreno do lúdico.

Passados quase dois séculos da fictícia volta ao mundo de Phileas Fogg e seu fiel mordomo em 80 dias (com uma ajudinha do fuso-horário), uma outra história de menino e balão foi um dos maiores sucessos de bilheteria este ano nos EUA. No Brasil em cartaz há um mês, o desenho “Up — Altas aventuras” narra o drama de um velhinho aposentado, sem filhos, que vende balões (no caso, bexigas) num parque de diversões. Quando sua mulher, que sonhava viajar para a América do Sul, morre, ele fica sozinho e é ameaçado de ir para um asilo. Um menino, escoteiro, é seu único amigo.

Diariamente, vem visitá-lo, ajuda-o na jardinagem, faz tarefas várias. Um dia, em desespero, o velho resolve atar centenas de balões ao telhado de sua casa que, em consequência, alça voo. Mas ele não está só: o menino, no último instante, conseguira entrar na casa, e eles partem para a maior aventura de suas vidas; destino: uma América do Sul meio fantástica, desértica, venturosa.

O sonho de perder-se

Aqui, onde pipas ainda singram os céus e balões o embelezam ao mesmo tempo que provocam incêndios e acidentes, comovemo-nos com histórias como as do balão que se vai e que, serendipitosamente, volta ao quintal da casa, na quasememória do menino recriado por Carlos Heitor Cony. Toda criança, um dia, sonhou ir-se num balão, e toda criança perdida sonhou voltar para casa sã e salva. Por isso seguimos Falcon com tanta expectativa: era nosso destino, e o de nossas emoções movidas por boas e más notícias (verdadeiras ou falsas, pouco importa) que estava em jogo naquele balão.

O Globo, 17 de outubro de 2009


 


Menino viaja 9 horas em lataria de ônibus para pagar promessa

DA AGÊNCIA FOLHA

Um garoto de 11 anos viajou os cerca de 550 km entre Sales e Aparecida (ambas no interior paulista) escondido entre o pneu e o para-lama de um ônibus para pagar uma promessa para que os pais parassem de brigar.

Na noite da última sexta, o menino Jefferson disse à mãe que iria se despedir de amigos na rodoviária, mas se escondeu no ônibus, que partia em excursão.

Ele ficou deitado sobre um compartimento da lataria durante as nove horas de viagem. "Achei um lugarzinho e fiquei sossegado lá", contou.

Jefferson disse que "foi tudo tranquilo", mas que sentiu medo quando o ônibus batia nos buracos. "Deu até para dormir um pouquinho."

A mãe, Sílvia Helena Aparecida da Silva, 43, relatou o desaparecimento à polícia e ao Conselho Tutelar. O motorista foi avisado da possibilidade de o garoto estar no ônibus, mas só depois de algum tempo o encontrou.

"Cumpri o prometido e fui pedir direto para ela [a santa]", contou Jefferson.

O garoto recebeu ajuda das pessoas da excursão, assistiu a uma missa no Santuário de Nossa Senhora Aparecida e foi de joelhos ver a santa.

A volta para casa foi anteontem. Segundo a mãe, não há brigas em casa. Ela diz que ele queria apenas voltar a Aparecida, onde havia estado três vezes com a família, por ser "muito religioso".

(RENATA BAPTISTA)

Folha, 20 de outubro de 2009



October 27, 2009

Governo ignora lições da floresta atlântica

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

O mais deprimente na batalha em torno do Código Florestal não são as repetidas tentativas dos ruralistas de desmontá-lo, nem as repetidas reações do Meio Ambiente para manter as proibições. O que deprime é o fato de essa mesma batalha já ter sido travada antes, na mata atlântica, sem que o governo tenha tirado dela nenhuma lição. A floresta perdeu, claro.

Aconteceu em 1961, ano de aprovação do Código Florestal, a mesma lei que se tenta mudar agora. A legislação estabelecia que 20% da área das propriedades rurais fosse deixada como reserva legal de floresta. Quem tivesse desmatado a mais deveria recompor suas propriedades, sob pena de multa.

"Mas o fim da isenção fiscal para áreas com floresta, além das injeções cada vez maiores de créditos na agricultura, tiveram o efeito pernicioso de tornar extremamente caro até para os fazendeiros mais conscienciosos preservar o mínimo de 20% de floresta, e inteiramente além de seu orçamento reservar quaisquer trechos de mata." Assim, escreveu há 15 anos o brasilianista Warren Dean no livro "A Ferro e Fogo", que tanto Carlos Minc quanto seu rival Reinhold Stephanes fariam bem em ler.

Por conta disso, as áreas desmatadas de floresta atlântica no Sudeste não puderam ser recompostas a partir de 1970.

O mesmo destino aguarda a Amazônia: com uma exigência de 80% de reserva legal, imposta por uma medida provisória que alterou o código em 1996, e um passivo ambiental imenso (o limite de desmatamento antes disso era 50%), ficou caro demais para os fazendeiros reflorestarem suas áreas. Ninguém nunca fez isso, apostando que o limite de 80% seria derrubado um dia. E esse dia parece estar chegando.

Quase cinco décadas depois da aprovação do código, o Brasil continua sem uma política fiscal florestal. Não há isenção fiscal para áreas de floresta nem crédito oficial para reflorestamento ou para o manejo sustentável de madeira em áreas replantadas com mata nativa. Em compensação, sobra crédito barato e apoio governamental para plantar capim.

O governo poderia resolver essa tragédia com uma canetada esperta. Não o faz. No apagar das luzes da gestão Marina Silva, em 2008, uma tal Operação Arcoverde prometia cortar pela metade os juros da atividade madeireira e do reflorestamento. Inexplicavelmente, Minc manteve a proposta na gaveta por um ano e meio, para ressuscitá-la agora com novo nome. A medida é bem-vinda. Mas chega com 48 anos de atraso.

Folha, 24 de outubro de 2009




 

October 21, 2009

Responsabilidade, segurança e trégua

César Oiticica

Agradecemos, emocionados, às dezenas de mensagens de solidariedade enviadas por pessoas de várias partes do mundo pela tragédia do incêndio que destruiu grande parte da obra de Hélio Oiticica.

Não concordamos, de maneira nenhuma, que cabe culpa ao governo, municipal, estadual ou federal, por esse acidente trágico que deixa o mundo da arte órfão de uma das mais destacadas obras da segunda metade do século XX. Uma tragédia absurda, muitas vezes, tem como reação uma série de protestos contra o governo. É mais ou menos como a revolta do filho contra Deus pela morte prematura do pai.

Nós escolhemos, conscientemente, desde o início, o modelo no qual acreditávamos ser o melhor para gerir a obra de Hélio. Fundamos, em 1981, o Projeto Hélio Oiticica, uma associação cultural sem fins lucrativos, com as finalidades de guardar, conservar, estudar e difundir a obra do artista.

O projeto teve um desempenho excelente, nestes 28 anos, como provam o grande aumento do prestígio da obra a nível mundial, as inúmeras teses acadêmicas elaboradas sobre a obra de Oiticica, as restaurações de grande parte do acervo e o acondicionamento correto com controle ambiental perfeito em sua reserva técnica. O item segurança não foi negligenciado, contando com dois sensores de fumaça ligados ao sistema de alarme.

No interior da reserva, no momento do incêndio, só havia um ponto com energia elétrica ativo: o desumidificador, já que o sistema de ar-condicionado não tinha ponto de energia interno e a iluminação estava sempre desligada quando a reserva se encontrava vazia. Inúmeros especialistas em museus, restauradores, curadores, historiadores de arte e artistas visitaram a nossa reserva técnica e sempre a elogiaram.

Nunca houve uma crítica.

Mesmo assim, sempre nos perseguirá o sentimento de que talvez pudéssemos ter evitado o que ocorreu. A responsabilidade é só nossa e não seria justo tentar dividi-la com alguém.
Não duvidamos, porém, que o caminho que escolhemos para gerenciar a obra de Hélio foi o correto.

A administração da obra de um artista nunca deve ser feita pelo poder público principalmente quando não há o conhecimento e a estrutura necessários para isso.

A obra de Hélio Oiticica é extremamente complexa.


Até hoje é motivo de estudos até pelos mais veteranos pesquisadores e estimula, mais do que qualquer outra, os jovens acadêmicos a elaborarem monografias e teses. A sua ousadia a torna fonte de inspiração e estímulo à liberdade de criação em todo o mundo.

Uma estrutura estatal, burocrática, jamais poderia fazer o que foi feito pelo Projeto Hélio Oiticica nestes 28 anos. Depois do desespero, uma tristeza profunda, doída, tomou conta de todos que se acostumaram a amar a obra de Hélio Oiticica. Mas esse sentimento deve ser substituído pela vontade vital de continuar o trabalho de cuidar e difundir a sua obra.

Agradecemos à imensa ajuda do Ministério da Cultura, que rapidamente acionou o Ibram para nos ajudar a resgatar as obras que sobreviveram ao incêndio.

Essa força, neste momento, transformou a perplexidade diante da tragédia em ação para a recuperação do que restou do acervo.

Temos que pedir uma trégua a todos que, por um motivo ou outro, discordam ou desgostam do Projeto HO ou de nossa família. Por favor, um pouco de solidariedade.

Pedimos também um tempo a todos que, mesmo por motivos profissionais, desejam entrar em contato conosco. Estamos tentando salvar o que sobrou do incêndio.

Contamos com a sua colaboração.

CÉSAR OITICICA é irmão de Hélio e diretor do Projeto HO

O Globo , 21 de outubro de 2009

Muita discussão e... "até o próximo incêndio?"

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
DA REPORTAGEM LOCAL

Na madrugada do dia 8 de julho de 1978, a quase totalidade do acervo do Museu de Arte Moderna do Rio foi consumida por um incêndio. Pinturas de Di Cavalcanti, Portinari e Ivan Serpa viraram cinzas ao lado de obras de Picasso, Miró, Dalí, Magritte e do grande artista uruguaio Joaquín Torres-García -que figurava numa ampla exposição no museu e teve a maior parte de sua obra destruída pelo fogo.

O incêndio no MAM foi um trauma, uma espécie de chacina cultural ocorrida numa instituição criada para evitá-la. Num lance de trágica ironia, alguns anos depois ardeu o apartamento de Niomar Moniz Sodré, fundadora do museu. Desapareceram obras de Mondrian, Chagall e Volpi, entre outros artistas da coleção.

Incêndios nunca mais? Bem, há poucos anos o curador Paulo Herkenhoff deixou a direção do Museu de Belas Artes depois de denunciar riscos de incêndio. E sexta-feira, foi a vez de Hélio Oiticica. Culpa da família? Culpa do poder público?

É fácil sair atirando na hora da fúria -e não é de todo mal que se atire, mesmo com a chance de errar o alvo. A energia da revolta ajuda a criar movimento. O risco é conhecido: indignação nos botequins, discussões na imprensa, promessas de autoridades e... "nos vemos no próximo incêndio?".

Seria desejável que essa tragédia ajudasse a transferir para o plano das medidas práticas a reflexão sobre o papel dos museus de arte no Brasil já elaborada por críticos e curadores como Paulo Sergio Duarte e o próprio Herkenhoff.

O sistema de instituições é irracional, invertebrado e pobre, embora no meio artístico circule bastante dinheiro. Abrem-se centros culturais como lanchonetes, empresas bancam mostras com renúncia fiscal, mas os museus vivem com pires na mão. Alguns deles nem sequer possuem acervos próprios -apenas coleções particulares em regime de comodato. Aliás, é preciso pagar para expor em instituições como o Masp ou o MAM-Rio. Essa é a realidade.
A produção de arte se expande e os problemas vão se avolumando. Já é hora de criar meios para financiar e qualificar essas instituições -e o que é básico: fazer da aquisição de acervos uma rotina cultural no país.

Folha, 21 de outubro de 2009

October 14, 2009

As cores da intolerância na raia olímpica de 2016

Federação de Remo tira jovens de uma ONG de Campos do pódio por causa de diferenças nos uniformes




Aloisio Balbi e Ary Cunha

CAMPOS e RIO. A aventura dos remadores David Motta Chagas, de 14 anos, e Guilherme Braga, de 15, começara na última quarta-feira, quando eles deixaram Campos dos Goytacazes cedo, sob chuva torrencial, para cinco horas de viagem apertados com outros dois jovens no banco traseiro de um sedã. Junto com o cabo do Corpo de Bombeiros e técnico do Rema Campos, Dimisson Nogueira, hospedaram-se de favor na sede náutica do Vasco, dormiram em colchonetes e jantaram sanduíche de mortadela por quatro dias. Na manhã de domingo passado, com um barco emprestado pelo Clube Piraquê, as jovens promessas da ONG sem fins lucrativos que a duras penas mantém viva a tradição secular do remo no leito do Rio Paraíba, deixaram o favoritíssimo barco do Flamengo para trás e garantiram, dentro d’água, o terceiro lugar e o direito à medalha de bronze na final do double skiff infantil da sétima regata do Campeonato Estadual, na Lagoa Rodrigo de Freitas.

Entretanto, o que deveria ser apenas mais um episódio de superação, nas raias que abrigarão as competições dos Jogos de 2016, terminou em lágrimas e revolta, até mesmo entre torcedores de outros clubes.

Jovens promessas de um esporte há décadas carente de novos ídolos, David e Guilherme já estavam no pódio para a premiação, quando foram informados de que estavam desclassificados, sob a justificativa de que vestiam malhas de cores diferentes, o que, segundo os árbitros, fere o Código de Regatas da Federação de Remo do Rio (FRERJ). O item X do artigo 137 diz que será excluída “a guarnição que se apresente para participar da prova ou premiação, com atletas que não estejam devidamente uniformizados”.

— Se havia infração, como deixaram que os meninos competissem? Foi uma humilhação para eles. Já estavam contentes, com a bandeirinha do nosso clube, à espera da medalha, junto com os atletas de Vasco e Botafogo (primeiro e segundo lugares na prova, respectivamente), quando souberam que estavam eliminados e saíram chorando — indaga Dimisson, que foi remador e é pai de David. — Em 20 anos de remo, nunca vi torcedores de diferentes clubes gritando “Campos” juntos, tamanha era a revolta com a decisão. Disse a eles que aquele reconhecimento do público que assistiu à conquista deles na raia era muito maior do que qualquer medalha.

Sem recursos para investir em material esportivo para vestir as 260 crianças e adolescentes de seu projeto social, o Rema Campos normalmente compete com malhas antigas e mais recentes misturadas, todas no tom azul, amarelo e branco do clube.

Foi assim durante cinco das sete regatas do Estadual, garante Dimisson, sem que nenhum integrante da equipe sequer tivesse sido advertidos pela FRERJ. Na regata de domingo, David e Guilherme foram acompanhados por nada menos do que quatro árbitros, divididos em duas lanchas, e nenhum deles apontou a infração antes da largada. O mais grave é que a dupla já havia sido premiada na quinta regata. Segundo David, eles receberam a prata com as mesmas malhas que provocaram a desclassificação no domingo passado.

— Só temos aquele uniforme e foi o que usamos da outra vez. As meninas do nosso clube também competem assim e nunca implicaram. Os árbitros viram desde a saída e até filmaram a prova. Mandaram a gente descer do pódio. Passei uma vergonha enorme — afirmou David.

Remadora master do Vasco, Silvia Pontes assistiu à cena e, revoltada com a decisão, chegou a protestar com os árbitros e até com a diretoria da FRERJ. De nada adiantou.

— A árbitra disse que era a regra, que eles deveriam estar com o mesmo uniforme. Mas, então, por que deixaram os meninos largarem? Fui ao presidente Zelesco (Alessandro Zelesco) e ele alegou que não tinha estrutura para fiscalizar todas as partidas.

Ora, que não fossem tão rigorosos com o estatuto. Que exemplo eles querem dar para as crianças pensando na Rio-2016? — indagou.

Procurado pelo GLOBO, o presidente da FRERJ, Alessandro Zelesco, não retornou as ligações ontem.

O Globo, 13 de outubro de 2009