May 2, 2024

'A marujada brasileira sentia-se humilhada': Uma entrevista com o próprio João Cândido sobre a Revolta da Chibata

 

 João Candido, líder da Revolta da Chibata, aos 73 anos

 

Por William Helal Filho

 João Candido Felisberto tinha 30 anos quando foi protagonista de um capítulo da História do Brasil, liderando cerca de 2 mil marujos contra o comando da Marinha na Revolta da Chibata, em 1910. Realizado para pressionar o governo a banir a aplicação de açoites como punição para marinheiros, o motim alcançou seu objetivo. Mas o líder da insurreição foi preso e expulso das Forças Armadas. Pouco se ouviu falar de João Cândido a partir de então, até que, em março de 1947, uma equipe do GLOBO descobriu o ex-militar trabalhando como descarregador de peixe na Praça XV, no Rio.

À época, o gaúcho nascido em Encruzilhada do Sul estava longe de ser considerado pela sociedade um herói do Brasil, como prevê, agora, o projeto de lei no Senado Federal para incluir o nome de João Cândido no "Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria", mais de 110 anos depois da famosa rebelião.

Em 1947, o ex-militar morava na Vila Rosali, em São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Acordava todo dia a 1h da madrugada para estar às 3h no entreposto de pesca no Centro da capital fluminense. Anônimo para a maior parte da população, Cândido contou ao jornal que, depois de entregar a farda, trabalhou muito tempo na marinha mercante. Naquele período, perdera a primeira mulher e se casara novamente, com Ana do Nascimento. Quando foi encontrado pelo jornal, na manhã gelada de 13 de agosto de 1947, ele já tinha dez filhos. O mais novo, Adalberto Cândido, havia nascido em 1939.

João Cândido em 1910, na época da Revolta da Chibata — Foto: Reprodução/Domínio Público
João Cândido em 1910, na época da Revolta da Chibata — Foto: Reprodução/Domínio Público

Naquela ocasião, o líder da Revolta da Chibata não quis falar da rebelião de 1910. "Águas passadas não tocam moinho", disse ele. Mas, em 1958, o ex-marinheiro voltou a ser entrevistado pelo jornal, na sua casa em São João do Meriti. Aí, então, Cândido deu detalhes sobre a insurreição.

Como nos conta a História, o motim aconteceu de 22 a 26 e novembro de 1910, quando cerca de 2 mil homens se rebelaram contra os açoites aplicados por oficiais brancos como punição em marinheiros negros. Mais de 22 anos haviam se passado desde a Lei Áurea, assinada em 1888, mas a corporação seguia tratando marujos como escravizados. Os insurgentes, então, tomaram oito embarcações na costa do Rio, entre elas os poderosos navios São Paulo e Minas Geraes, recém-construídos na Inglaterra, e apontaram seus canhões para a cidade, que na época era a capital federal. Em seguida, enviaram um telegrama ao então presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca.

"Não queremos o retorno da chibata. Isto é o que pedimos ao Presidente da República e ao Ministro da Marinha. Queremos uma resposta imediata. Se não recebermos tal resposta, destruiremos a cidade e os navios que não são revoltantes", ameaçava a mensagem.

Marinheiros rebeldes durante Revolta da Chibata — Foto: Reprodução
Marinheiros rebeldes durante Revolta da Chibata — Foto: Reprodução

"O castigo corporal era usual nas Forças Armadas", relatou João Cândido ao GLOBO, na entrevista em 1958. "A marujada brasileira, nos portos estrangeiros, em contato com marinheiros de outras nações, sentia-se humilhada, pois somente na Marinha do Brasil se usava ainda, em 1910, a pena do castigo corporal. Mesmo no estrangeiro, eram aplicados açoites em nossos marujos, sob a vista de pessoas e de autoridades de outros países. Assim, a ideia da rebelião grassava em toda a marinhagem, até que resolvemos acabar com aquelas cenas humilhantes que desmoralizavam o Brasil. A forma de castigo variava desde a chibata, na Marinha, até a vara de marmelo e a espada, em outras corporações".

Os marujos levaram algo em torno de dois anos para organizar o movimento. De acordo com o ex-marinheiro, imediatamente alçado à condição de almirante durante a revolta, toda a "marujada" sabia dos planos, e o sentimento contra a chibata era tão grande que não houve caso de delator.

"Na época, muitos estavam aguardando em Londres a construção dos encouraçados Minas Geraes e São Paulo. Eram membros das guarnições que trariam os vasos de guerrear para o Brasil. Formamos, então, lá na Europa, os nossos comitês de conspiração. Onde havia um marujo brasileiro, havia um comitê de conspiração. O plano era aguardar a construção dos dois navios e com eles fazer eclodir a revolta", narrou João Cândido, acrescentando que a rebelião havia sido inicialmente marcada para 15 de novembro de 1910, dia da posse de Hermes da Fonseca na Presidência da República, mas foi adiada para o 22 do mesmo mês devido a suspeitas de vazamento.

João Cândido na sua casa em São João do Meriti, em 1958, aos 78 anos — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
João Cândido na sua casa em São João do Meriti, em 1958, aos 78 anos — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Naquela noite, durante a tomada do Minas Geraes, vários marinheiros e um oficial foram mortos. Os navios controlados por rebeldes também dispararam tiros de canhão contra fortes militares na Baía de Guanabara. Um tiro atingiu um cortiço no Castelo, no Centro do Rio, matando duas crianças.

Com os navios mais poderosos do Brasil nas mãos dos revoltosos, as autoridades do país não viram outra saída a não ser ceder. O Congresso Nacional aprovou uma lei dando anistia aos rebeldes, o que foi sancionado pelo presidente. O governo também concordou em banir os castigos corporais. No dia 26 de novembro, os amotinados deram fim à insurreição. Mas, dois dias depois, Fonseca voltou atrás e promulgou um decreto instituindo a perseguição de marinheiros que representassem risco às Forças Armadas. Mais de 1,2 mil revoltosos foram expulsos da corporação, centenas foram presos e outros tantos, banidos para trabalhar na extração de borracha na Amazônia.

Chamado de "almirante negro" pelo escritor João do Rio, Cândido foi jogado em uma masmorra na Ilha das Cobras, onde dividiu uma cela pequena com mais 17 presos. Após três dias sem comer e beber, e em condições subumanas, apenas o líder da revolta e mais um amotinado sobreviveram. Em seguida, o gaúcho foi trancafiado em uma instituição para doentes mentais, antes de retornar à Ilha das Cobras. Em 1912, Cândido foi julgado e absolvido, mas, àquela altura, já havia sido expulso da Marinha.

Apesar de tudo, na entrevista ao GLOBO em 1958, o líder da Revolta da Chibata disse que não sentia mágoas. "Não guardo o menor rancor da Marinha e sei que hoje se respeita ali a dignidade humana, dentro dos princípios democráticos", disse o ex-militar, que morreria de câncer, em 1969, aos 89 anos.

Enterro de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, em 1969 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Enterro de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, em 1969 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

O GLOBO

 

April 30, 2024

No front da Ucrânia, frustração silencia esperança na vitória contra a Rússia

 

 Monya (nome de guerra) de 43 anos, passou os últimos dois anos na linha de frente e teve apenas uma folga

Kiev sustenta esforço de guerra com tropa formada por homens envelhecidos, esgotados e, agora, experientes em combates brutais que, quase sempre, terminaram em derrota

Por Yan Boechat,

 Monya carrega no olhar o peso e o horror de batalhas perdidas. O azul dos olhos pequenos se acinzenta quando tenta evitar as lágrimas. Ele se enche de vergonha, esconde o rosto, termina abruptamente o que queria dizer, até se recompor. Não consegue esconder a raiva nem pela derrota, nem pelo choro.

— Nós demos tudo o que podíamos, acredite, mas não conseguimos. Deixei meu coração lá, deixei tudo lá — contava ele num dia ensolarado e frio na estação de Pokrovsk, no extremo leste da Ucrânia, a poucos quilômetros das forças russas que avançam de forma lenta, porém gradual, nas vastas planícies que circundam o Rio Don. 

Monya tem 43 anos e passou os últimos dois em Avdiivka, uma pequena cidade na região do Donbass, que os ucranianos acreditavam ser uma fortaleza inexpugnável. Sede de uma das maiores siderúrgicas da Europa, Avdiivka foi alvo de batalhas por uma década, desde os primeiros combates entre as forças rebeldes apoiadas pela Rússia, em 2014, até fevereiro deste ano, quando foi tomada após um avanço rápido das tropas russas e uma retirada caótica dos ucranianos.  

Monya deixou o coração em Adviivka, mas escapou vivo. Naquela tarde fria em Pokrovsk, estava indo para casa, no centro da Ucrânia. Desde que a invasão russa começara, em fevereiro de 2022, teve o direito de ver a família por apenas dez dias. Agora, uma vez mais, voltaria a ver a mulher, a mãe e os dois filhos por outra semana e meia. Quando as lágrimas secaram, perguntei a Monya se não estava cansado após tanto tempo no front. Ele se calou.

Folgas escassas

Monya é, de certa forma, o retrato dos soldados ucranianos que estão combatendo a Rússia desde que o vizinho invadiu o país. São homens envelhecidos, esgotados e, agora, experientes em combates brutais que, quase sempre, terminaram em derrota. A idade média das tropas ucranianas neste momento é de exatos 43 anos, e poucos dos que estão no front tiveram mais de 20 dias de folga nestes mais de dois anos extremamente duros para a Ucrânia.

 Não se sabe ao certo quantos pereceram. Oficialmente, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, admite que 31 mil homens perderam a vida desde a invasão russa — número bastante aquém das estimativas consideradas conservadoras do governo americano de que mais de 100 mil teriam morrido nos campos de batalha.

Com a crescente escassez de soldados nas áreas de combate, o governo ucraniano alterou neste mês a idade mínima para o alistamento obrigatório, de 27 para 25 anos. Idades consideradas ainda extremamente altas para os padrões internacionais de nações em guerra. Em todo o país, em especial em áreas de fronteira, funcionários do governo ampliam a fiscalização na tentativa de reduzir o número dos que buscam escapar da mobilização em um conflito que vem se mostrando incapaz de parar o avanço russo.

Presos no buraco

Enquanto em grandes cidades como Kiev, Lviv e Odessa a vida segue seu ritmo com um misto de incertezas e medo, nas áreas de combate, um manto de pessimismo e cansaço parece ter caído de forma abrupta sobre os soldados ucranianos após a derrota de Avdiivka. O espírito de otimismo que se seguiu às reconquistas de territórios ocupados pelos russos no primeiro ano de guerra desapareceu. As esperanças de que uma ofensiva sustentada pelo poderio militar das armas tecnológicas americanas e da Otan (aliança militar liderada pelos EUA) se transformaram em frustração após sucessivos fracassos na segunda metade do ano passado. 

 

 Rússia amplia ofensivas no Leste da Ucrânia — Foto: Arte/O GLOBO

 As coisas não estão boas... nossa moral, nosso psicológico, nada está bom neste momento — contava Bielorrusso, nome de guerra de um soldado que veio de uma pequena cidade na fronteira com o país vizinho. — Estamos sem munição, presos neste buraco o tempo todo, não há substituição para os que se foram, não é fácil.

Até pouco tempo atrás, era raro encontrar um soldado falando tão abertamente das dificuldades enfrentadas na guerra. Nas conversas superficiais que repórteres e soldados mantinham sob o escrutínio de funcionários do governo em visitas próximas ao front, em geral havia um misto de bravata, hiperpatriotismo e confiança exacerbada.

Agora, tudo parece diferente. Bielorrusso estava em uma posição de artilharia na área rural de Kupiansk, um importante entroncamento ferroviário que liga o sul da Rússia ao norte do Donbass. Desde a metade do ano passado, as tropas russas têm renovado os ataques na tentativa de tomar a cidade. Estávamos no bunker, espremidos nas camas e nos banquinhos de madeira.

Soldados ucranianos fritam barriga de porco para comer como jantar em um bunker nas linhas de frente — Foto: Yan Boechat
Soldados ucranianos fritam barriga de porco para comer como jantar em um bunker nas linhas de frente — Foto: Yan Boechat

— Passamos a maior parte do tempo aqui, esperando ordens para disparar. Elas são mais escassas, e está cada vez mais perigoso ficar lá fora por que eles têm muito mais drones e muito mais munição do que temos — me dizia em frente ao funcionário de imprensa que obrigatoriamente acompanha jornalistas em áreas próximas ao front.

Bielorrusso e os outros quatro soldados que operam um canhão de 122 milímetros passam 10 dias no front e têm um dia de folga em uma casa na retaguarda que serve como base para sua equipe, onde ele pode tomar banho, ter alguma privacidade e não estar atento ao rádio 24 horas por dia. Ele, como Monya, só visitou a família duas vezes desde o início da guerra.

Soldados ucranianos saem em patrulha em região de combates no entorno da cidade Kupiansk — Foto: Yan Boechat
Soldados ucranianos saem em patrulha em região de combates no entorno da cidade Kupiansk — Foto: Yan Boechat

— Não há nada de bom aqui, não há nada de bom na guerra, quero voltar à minha vida quando tudo isso acabar — disse.

Bielorrusso tem 49 anos, e, assim como Monya, foi convocado e obrigado a ir para o front, ao contrário dos jovens que se voluntariaram para lutar assim que a guerra começou. Com pouca experiência, muito ímpeto, muitos morreram no início, como atestam os cemitérios repletos de novas sepulturas por todo o país. E, desde que a realidade da guerra se impôs, um número cada vez menor de jovens tem decidido ir para o combate por conta própria.

— No começo a gente via as postagens no Tik-Tok, a aventura, a camaradagem, a alegria — dizia Cadete, um soldado de 22 anos que lutou em Bakhmut e agora combate em Chasv Yar. — Mas ninguém nos conta dos gritos, a gente só descobre os gritos, o sangue, o medo quando chega aqui.

Disputa homem a homem

Cadete se preparava para um novo turno de três dias nas chamadas linha de contato, onde soldados ucranianos e russos disputam posições em combates quase homem a homem, sob intensa artilharia, e onde o risco de perder a vida é imensamente maior do que em uma posição de artilharia, em geral distante ao menos 10 quilômetros da linha de combate.

Cadete não gosta de falar sobre os amigos que perdeu, nem de contar como são as coisas onde a guerra acontece de forma intensa, o tempo todo. Seus olhos, como o de Monya, também carregam o peso da guerra. Nos despedimos no escuro, sob as luzes verdes que iluminam os equipamentos de visão noturna em um posto de gasolina abandonado, a poucos quilômetros de sua posição. Na noite sem lua vemos o tracejar dos disparos, os clarões das bombas explodindo no horizonte, e há o constante som da artilharia. Desejo boa sorte. Ele responde com um breve aceno de cabeça, em silêncio. 

O GLOBO 

April 26, 2024

Marcha a ré: A vitória do Brazilstão

 

 

 A chantagem política no Congresso, somada ao suprassumo do rea­cionarismo e à falta de mobilização social, levaram mais uma vez o Brasil a desprezar as evidências científicas e a ignorar um avanço legal adotado em um número expressivo de países ocidentais. Na terça-feira 16, o Senado aprovou por 52 votos a 9 a Proposta de Emenda Constitucional que tipifica como crime “a posse ou porte de qualquer quantidade de droga”. A PEC tem como autor o próprio presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, do PSD, e não traz alteração significativa à Lei de Entorpecentes em vigor desde 2006. Sua aprovação é, porém, mais um round da briga do Parlamento com o Supremo Tribunal Federal. Desde agosto do ano passado, o STF julga uma ação que poderia liberar o porte de maconha para consumo pessoal e estabelecer um critério objetivo para diferenciar usuários de traficantes: a quantidade de narcótico apreendido. Após o pedido de vista do ministro José Dias Toffoli, a votação foi interrompida com 5 votos favoráveis à mudança e 3 contrários.

 Não há previsão para o julgamento ser retomado, mas, nesse ínterim, a decisão do Senado aproxima o Brasil de ditaduras e teocracias que adotam uma política de tolerância zero em relação às drogas. Além de contribuir para o encarceramento em massa e de afastar dependentes químicos de tratamentos, devido ao temor de sofrer processos criminais, a iniciativa impede o País de avançar na regulamentação da Cannabis para fins medicinais e recreativos, uma indústria que movimentou 29,5 bilhões de dólares no ano passado ao redor do mundo e pode chegar a 58 bilhões em 2028, segundo um estudo da BDSA, principal empresa de pesquisa do setor.

Desde a virada do século, ao menos 21
países adotaram leis para legalizar ou
descriminalizar do uso pessoal de maco-
nha, bem como dos numerosos subprodu-
tos explorados pela indústria farmacêu-
tica. O ingresso mais recente no clube foi
o da Alemanha, onde, desde o começo do
mês, existem leis para reger a produção e
o consumo de Cannabis, e qualquer cida-
dão pode plantar mudas em casa, além de
portar até 25 gramas da erva.

 
A significativa adesão alemã tende a

impulsionar outras leis nacionais seme-
lhantes nos próximos anos. Desde 2022,
a legalização completa aconteceu em
Malta e Luxemburgo, um passo à frente
da Europa em uma direção indicada pe-
las sucessivas leis de descriminalização
iniciadas por Portugal, em 2001, e pos-
teriormente adotadas por Bélgica, Eslo-
vênia, República Tcheca, Suíça, Croácia,
Itália, Áustria e Geórgia. Famosa por su-
as coffee shops, onde ninguém é incomo-
dado se acender um baseado, a Holanda

curiosamente, jamais legalizou ou sequer
descriminalizou qualquer tipo de droga,
tendo sido apenas pioneira, ainda na déca-
da de 1970, de uma política de “vista gros-
sa” emulada em maior ou menor grau por
outras nações europeias. Portugal, por
sua vez, tornou-se referência pela ousa-
dia de suas leis de descriminalização, que,
além da maconha, abrangem outros tipos
de narcóticos, como cocaína e heroína.

 
Mais recentemente, os portugueses inclu-
íram as drogas sintéticas no rol de subs-
tâncias toleradas. Adendo: em nenhum
desses países houve uma explosão do
consumo, das mortes e da violência, uma
fake news repetida pelos proibicionistas.

 
Os avanços não são privilégio da Eu-
ropa. Leis de descriminalização da ma-
conha foram recentemente adotadas
em Israel, África do Sul, Tailândia e Ja-
maica. Entre as maiores economias, o
Canadá foi o primeiro a adotar a lega-
lização completa, em 2018, ao replicar
leis adotadas seis anos antes pelos esta-
dos de Washington e Colorado, nos Es-
tados Unidos. A iniciativa espalhou-se
por outros estados e, embora não exis-
ta uma lei federal sobre o tema, 54% d

regiões onde a maconha é legalizada. Na
nossa vizinhança, a Argentina descrimi-
nalizou a maconha desde 2009 e quatro
anos depois o Uruguai foi o primeiro país
do mundo a legalizar completamente a
produção e venda de maconha, além do
“uso recreativo” da planta. A pioneira na
América do Sul, entretanto, é a Colômbia,
que, após viver o pesadelo do narcoterro-
rismo nos “anos Pablo Escobar”, desde
1994 vem, entre idas e vindas, adotando
leis de descriminalização fundamentais
para reduzir os números da violência.
No Brasil, após diversos
governos, legislaturas
e presidências do STF
fugirem do assunto du-
rante anos, o proibicio-
nismo ganhou força, sobretudo após a
ascensão política da extrema-direita
nas eleições de 2018. “Esse atraso refle-
te o pânico moral disseminado pelos rea-
cionários que operam muitas vezes com
o discurso religioso para demonizar a
maconha. Quando esse discurso não é re-
ligioso, é policialesco. Às vezes, ambos.

 
Mas, de qualquer modo, é um discurso
bastante fechado para o debate e para a
influência de informações científicas e de
pesquisas sobre o racismo estrutural da
lei de drogas”, lamenta o neurocientista
e biólogo Sidarta Ribeiro. A dificuldade
para se travar o debate científico em
esferas como o Congresso acontece,
segundo o especialista, porque “existe
um posicionamento extremamente
lucrativo do ponto de vista político, que
joga para a plateia e com os preconceitos,
medos e mitos”.

 
Os prejuízos para o País são evidentes,
a começar pela segurança pública, onde
a “guerra às drogas” travada nos últimos
anos resultou em um espantoso aumento
tanto da violência policial contra pretos,
pobres e periféricos quanto da população
carcerária nacional. Um estudo elaborado
pelo economista Daniel Cerqueira e publi-
cado pelo Instituto de PesquisaEconômica

Aplicada revela que, em média, 34,3% dos
homicídios são atribuídos a questões re-
lativas a drogas, número que cresce para
46,6% no Rio de Janeiro. Em todo o Bra-
sil, os negros são objeto de 68% dos proces-
sos e prisões relacionados ao porte de dro-
gas. “Temos observado o impacto das po-
líticas de abordagem punitiva e da violên-
cia policial na vida de moradores de fave-
las e outras comunidades periféricas, on-
de a maioria da população é negra e em-
pobrecida”, diz o tcheco Jan Jarab, repre-
sentante de Direitos Humanos da ONU pa-
ra a América do Sul. Desde 2000, acres-
centa, a população carcerária brasileira
aumentou mais de 200% e continua em
crescimento. “No fim de 2023, o Brasil
registrou uma população carcerária de

852 mil detentos. Estima-se que até 40%
deles podem ter vínculos com drogas.”

 
Ao encher as unidades prisionais com
centenas de milhares de usuários e pe-
quenos traficantes a cada ano, o País re-
força o poder das facções que dominam
os presídios e cria uma base de recruta-
mento para o crime, alerta o deputado es-
tadual Carlos Minc, do PSB, pioneiro ao
tratar da questão da legalização da maco-
nha desde o seu primeiro mandato parla-
mentar, logo após o fim da ditadura. “En-
topem os presídios, onde pouco se estuda
e se trabalha, mas não faltam drogas e ce-
lulares. As principais facções comandam
o crime a partir dos presídios, como é o
caso do PCC e do Comando Vermelho”,
observa o parlamentar carioca

Para Cristiano Maronna, diretor da
organização Justa e autor do livro Lei de
Drogas Interpretada na Perspectiva da Li-
berdade (Ed. Contracorrente), a visão do
“direito penal máximo” que prega o en-
carceramento é deletéria porque não re-
duz a criminalidade: “O Brasil tem a ter-
ceira maior população prisional do plane-
ta e os índices de criminalidade são muito
elevados em comparação com outros paí-
ses. Esse modelo político criminal não en-
trega bons resultados, não entrega paz,
não entrega índices de segurança públi-
ca que sejam razoáveis. Quanto mais se
prende, mais as facções são fortalecidas
e esse círculo vicioso é retroalimentado”.

 
Em parceria com o Centro de Estudos
de Segurança e Cidadania, a Justa lançou
um guia com os principais pontos e pro-
postas sobre a legalização da maconha. O
documento menciona a pesquisa do neu-
ropsicofarmacologista inglês David John
Nutt, a revelar quais as drogas mais pre-
judiciais ao próprio usuário e aos que es-
tão no seu entorno. “Essa pesquisa con-

siderou drogas lícitas e ilícitas, e o álco-
ol é o campeão. Maconha, ecstasy e LSD
estão lá embaixo. Não tem nada mais da-
noso ao indivíduo e ao seu entorno do que
o álcool. No entanto, ele é glorificado em
comerciais na tevê, até patrocina even-
tos. A mensagem é clara: tomem cada vez
mais cerveja”, lamenta a socióloga Julita
Lemgruber, diretora do CESeC.
Uma das maiores anomalias
na Lei de Entorpecentes,
dizem os especialistas, é
deixar ao critério subjeti-
vo do policial – ou do juiz
– a decisão sobre se determinado caso con-
figura tráfico ou porte para uso pessoal. A
PEC de Pacheco não mexe com isso, embo-
ra o senador afirme o contrário. “A propos-
ta faz a ressalva da impossibilidade da pri-
vação da liberdade do porte para uso. Ou
seja, o usuário não será jamais penalizado
com o encarceramento”, disse o senador
logo após a aprovação. Depois, acenou às
bancadas da Bala e da Bíblia com a clássica
visão retrógrada sobre o uso de drogas. “O
motivo da dupla criminalização é que não
há tráfico de drogas se não há interessados
em adquiri-las. O traficante só aufere
renda, e a utiliza para comprar armas e
aumentar seu domínio territorial, por
meio da venda a um usuário final.”

 
Também pioneiro no debate, ao orga-
nizar nas universidades do Rio tribunais
populares sobre a legalização da maconha
nos anos 1990, o advogado Rogério Rocc

aponta a hipocrisia da visão majoritária
do Senado: “A classe média não é condu-
zida nesse tipo de flagrante como trafi-
cante, mas os pobres, os pretos em geral,
são”. Tal prática, diz, alimenta os índices
de sucesso de prisões e da eliminação de
“inimigos” em ações policiais. “Esse ini-
migo muitas vezes é forjado por uma lei
que permite que o policial ou o delegado
configure a lógica de um flagrante a seu
bel-prazer. As políticas de eliminação de
pobres e pretos nos mantêm num círculo
vicioso que justifica o aumento de investi-
mentos no combate à violência.”

 
Rocco avalia que o Senado faz o Bra-
sil andar quase 60 anos para trás na po-
lítica de drogas e reviver a implementa-
ção da punição aos usuários decretada
em dezembro de 1968, 13 dias após a de-
cretação do AI-5. “Foi uma medida explí-
cita de perseguição à juventude, aos que
resistiam aos arbítrios da ditadura, no
momento mais grave e grotesco do regi-
me militar. Hoje, significa um retroces-
so gravíssimo que se explica pela forma-
ção bem-sucedida de uma nova organiza-
ção da extrema-direita nacional.”
Oadvogado Ladislau Porto
lamenta que o Brasil es-
teja prestes a repetir um
erro histórico ao tratar a
questão das drogas sob a
ótica da segurança pública, e não da saú-
de. “Esse atraso é fruto de um racismo es-
trutural muito forte, porque a erva era
consumida pelos negros, em cachimbos
de barro. Fomos um dos primeiros paí-
ses a criminalizar o uso da maconha, na
década de 1830, em uma lei racista que
previa multa para quem vendesse a erva
e prisão de três dias para o escravo que
fumasse.” Além do racismo, persiste
uma falta de conhecimento muito gran-
de sobre a maconha, lamenta. “Enquanto
a ciência avança em demonstrar todas as
aplicações médicas da Cannabis, nós re-
trocedemos ao criminalizar o uso. Para
reverter esse quadro é preciso informa-
ção, é preciso fomentar o debate.”

O MERCADO DE
CANNABIS LEGAL
DEVE MOVIMENTAR
ATÉ  BILHÕES DE
DÓLARES  EM 2028

O tempo desperdiçado pelo Brasil no
uso da Cannabis pela saúde pública é a
outra faceta socialmente cruel da posi-
ção atrasada do País. Enquanto cente-
nas de milhares de brasileiros de bai-
xa renda que poderiam ter seus pro-
blemas de saúde curados ou ameniza-
dos com substâncias derivadas da plan-
ta – como o Canabidiol (também conhe-
cido como CDB), o composto molecular
GHB ou o próprio princípio ativo THC –
seguem sem tratamento nem acesso aos
produtos, os mais abastados pagam até
500 reais por um único frasco de medi-
camento nas farmácias. De acordo com
a Associação Brasileira da Indústria de
Canabinoides, a comercialização da cha-
mada Cannabis medicinal nas farmácias
do País mais que dobrou em 2023, ao re-
gistrar um crescimento de 127% em re-
lação ao ano anterior. Foram comercia-
lizadas 356,6 mil unidades de produtos
entre janeiro e dezembro do ano passa-
do, ante 157 mil em 2022, e o faturamen-
to do setor nas farmácias atingiu 150 mi-
lhões de reais, um salto de 119% diante
dos 65,2 milhões registrados em 2022.

 
“Muitas famílias de usuários de maco-
nha medicinal enfrentam desafios legais
e estigmas sociais relacionados ao uso da
planta para esse fim. Retrocessos na le-
gislação como essa PEC podem aumen-
tar o medo de criminalização e também
a perseguição por parte das autoridades,
colocando em risco a segurança e a es-
tabilidade dessas famílias”, alerta Mar-
garete Brito, fundadora da organização
Apoio à Pesquisa e Pacientes deCannabis
Medicinal. Dirigente da Associação Bra-
sileira para Cannabis, que também de-
fende o direito ao cultivo individual e co-
letivo da maconha, Pedro Zarur define
como “nefastas” as consequências da po-
lítica nacional. “Inocentes morrem dia-
riamente em nome de uma guerra con-
tra uma planta.”

 
Para Sidarta Ribeiro, “a maconha é
uma fronteira científica ativa na pes-
quisa biomédica brasileira”. Ele men-
ciona o professor Elisaldo Carlini que,
na Escola Paulista de Medicina da Uni-
fesp, foi o primeiro no mundo a demons-
trar em ratos, e depois em seres huma-
nos, que o Canabidiol é um poderoso an-
tiepiléptico. Professor da UFRN, Ribeiro
elenca outros trabalhos desenvolvidos na
USP e nas universidades federais de São
Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul e Rio Grande do Norte. “O
Brasil tem tradição, tem cientistas e tem
alta qualidade científica nesse assunto,
mas tem também todos os entraves que
mantêm o País em uma posição de sub-
serviência científica.”
Um dos mais destacados
nomes nesse cenário, o
psiquiatra Dartiu Xavier
Silveira, professor da
Unifesp, afirma que, en-
tre os usuários de álcool, a dependên-
cia é de 15%, enquanto nos consumido-
res de maconha é de 9%. “Quando se tem
uma postura proibicionista, qualquer uso
vai ser visto como patologia. Daí surgem
aquelas medidas absurdas de internação
compulsória de um usuário. Gastam-se
rios de dinheiro do Estado para tratar
pessoas que nem sequer têm diagnósti-
co de dependência, que não precisariam
ser tratadas.” Silveira dá como exemplo
os discursos das igrejas fundamentalis-
tas. “O sujeito é usuário de álcool, mas,
quando se trata de maconha, é dependen-
te. As pessoas têm dificuldade de usar o
termo ‘usuário de maconha’, é como se
não existisse. Só isso já significa um viés,
e as políticas públicas seguem esse cami-
nho, que é o mais ridículo, porque caem
nas mãos de pessoas que são reacionárias.
Tem muito médico reacionário.”

 
Neurocientista e doutor em bioquími-
ca, Aderbal Aguiar afirma que a maco-
nha tem eficácia comprovada na terapia
de doenças que atingem o cérebro em vá-
rias fases da vida, a exemplo das crianças
com transtorno de espectro autista, dos
adultos com transtornos de humor, an-
siedade, depressão e insônia, e dos ido-
sos com doenças neurodegenerativas,
como Parkinson, Alzheimer e esclero-
se múltipla. Sem falar da epilepsia, que
atinge todas as idades. “Essa planta fun-
ciona muito bem, só que temos de impor-
tar, porque aqui é proibido.” Ele lembra
que quem consegue comprar o produto
importado é a população mais rica. “Já
quem depende unicamente do SUS fi-
ca prejudicado, porque o acesso é mui-
to mais restrito. Sem falar que, no SUS,
o uso desses medicamentos é limitado a
alguns casos raros de epilepsia.”

 
O Brasil ignora, ainda, o imenso poten-
cial da exploração da planta e seus deriva-
dos, que têm aplicação muito além da me-
dicina e atende setores como alimentação,
vestuário, cosméticos, navegação e cons-
trução civil. Somente a fibra de cânhamo
tem centenas de aplicações industriais
possíveis. “Poderíamos estar produzin-
do, mas estamos importando”, diz Aguiar.

 
A PEC da criminalização do uso e por-
te de drogas terá de passar pela análise e
votação na Câmara, mas a expectativa é
de aprovação. Isso se o texto não for pio-
rado ainda mais. Um dos nove senadores
que votaram contra a proposta, Humber-
to Costa, do PT, falou com CartaCapital
minutos após a votação. “Infelizmente,
o Brasil tem falhado bastante na políti-
ca sobre drogas. Essa questão deveria ser
tratada como problema de saúde públi-
ca. Temos de garantir àqueles que preci-
sam de tratamento humanizado, tirá-los
da esfera criminal e fortalecer a rede de
atendimento psicossocial. Estamos tam-
bém nos privando de pesquisar e adotar
produtos derivados da Cannabis, com
evidentes prejuízos econômicos e cien-
tíficos.” A maioria dos senadores prefe-
riu, no entanto, abraçar o populismo pe-
nal e o fundamentalismo moral e religio-
so. Foi a vitória do Brazilstão

CARTA CAPITAL