March 31, 2022

Oscar para 'No Ritmo do Coração' é das maiores vergonhas do prêmio

 

 

 

Filme empilha clichês, confunde cinema com ato de caridade e cai na ladainha do assistencialismo 

Guilherme Genestreti

A Academia, quem diria, deve ao tapa de Will Smith alguma coisa. Não fosse o arroubo de troglodita dele, a cerimônia do último Oscar, no domingo, teria de se haver com o vexame de ficar marcada pela vitória do filme "No Ritmo do Coração". Mas uma piada cretina, um impulso de macho ferido e um tapão espalmado acabaram desviando o foco de uma das consagrações mais equivocadas da história do Oscar.

Tudo bem que, em 94 edições de prêmios, os constrangimentos não foram poucos. Mas a toada era promissora desde que, dois anos atrás, "Parasita" fez história no Oscar levando a principal estatueta por um filme que não é nem falado em inglês. No ano passado, a safra não ajudava e, mesmo assim, o fato de "Nomadland" ter sido o grande vencedor não era nada desabonador porque mostrava alguma sintonia com uma América em crise.

Aqui a situação é bem diferente. "No Ritmo do Coração" é daquelas hecatombes que confundem cinema com corrente do bem enviada por tia no WhatsApp, como se cineasta e assistente social fossem a mesma coisa. Pouco importa, portanto, a discussão se podemos ou não considerar o filme uma produção do streaming. O que fica é que a Academia voltou umas 30 casas nesta semana ao optar pelo gesto de caridade.

Na trama do longa de Sian Heder, temos Ruby, papel de Emilia Jones, uma garota ouvinte que é irmã de um rapaz surdo e filha de pais surdos —isto é, uma "Coda", ou "child of deaf adult", na abreviação em inglês, de onde vem o nome original do filme. Está, portanto, estabelecida desde logo a sua posição sui generis e também o fardo, digamos assim, de ter de ser a intérprete do restante da família. A inadequação não para por aí —seus parentes são todos pescadores no litoral de Massachusetts, no nordeste dos Estados Unidos, e a menina é uma adolescente com outros planos.

Eis aí a brecha para o filme se esbaldar naquela torrente de clichês dos chamados "high school movies", ou filmes de colegial. Não demora para a garota ser atazanada no corredores sobre ter cheiro de peixe ou para, no refeitório, ouvir piadas sobre os pais surdos. Nem para ela se engraçar com o garoto mais popular da turma que, como veremos adiante, apesar de gatinho e andar com os valentões, também tem um bom coração. O caco narrativo que os juntará são as aulas de canto, já que os dois são cantores promissores, pelo que o filme nos leva a crer.

As aspirações de Ruby a ser uma cantora vão entrar em choque com o mundo de sua família, que não ouve. E como deixar os pais e o irmão à mercê de um universo cheio de sons para seguir os próprios sonhos? Bem, eis aí o filme, e não muito mais do que isso. Talvez valha acrescentar que os pais fazem a garota passar vergonha na frente dos colegas, como se ser surdo fosse sinônimo de ser tapado.

claro que haverá para a protagonista a figura do mentor, aquele visionário sempre pronto a disparar alguma frase de livro de autoajuda. Aqui, ele vem numa versão ainda mais desagradável —um professor afetado e grosseiro que, não sabemos por que razão, está sempre de mau humor. É ele quem põe a turma de seu coral de alunos, brancos em sua maioria, para se esgoelar e aniquilar clássicos da Motown com tiques dignos de cantor de show de calouros. Pobre Marvin Gaye, é assassinado pela segunda vez com esse filme.

Já os surdos do longa são vítimas num mundo de gente ruim, os que escutam. São chamados de aberrações, sem qualquer cerimônia, pelos malvados ao redor só porque não ouvem. A única cena que tenta entrar no universo deles é copiada na cara dura do francês "A Família Bélier", que inspirou esse remake e que já não era lá grande coisa. Pois é, tem isso também —o vencedor do Oscar não é nem mesmo um filme original.

Se o que está em jogo é levar o espectador para o mundo daqueles que não escutam, "O Som do Silêncio" já havia feito muito mais, no ano passado. Esse, sim, conseguia manejar cinematograficamente —e até num âmbito mais, digamos, filosófico— o que é a cacofonia do entorno e o que significa estar privado dela.

Voltando à noite de domingo, houve quem comemorasse o caráter simbólico de um homem surdo, no caso Troy Kotsur, vencer o Oscar de ator coadjuvante e discursar em sinais. Bom, pode ser um marco para os surdos e uma vitória para essa comunidade. Mas mais de 40 anos atrás, ao levar a estatueta de atriz por "Amargo Regresso" —esse, sim, um filme que perpassa o tema da deficiência física sem qualquer pieguice—, Jane Fonda já havia agradecido usando a língua de sinais.

A estatueta para Kotsur, aliás, foi de uma condescendência desconcertante. O personagem passa mais da metade do filme disparando coisas chulas e não muito mais do que isso. Através dele, uma figura que pouco vai além do alívio cômico, o público ouvinte descobre como se diz "cuzão", "traçar", "foder" e outras vulgaridades na língua americana de sinais. Sua cena final, vá lá, tem algo próximo do tocante, mas não é exatamente um monumento da atuação.

Houve ainda quem escrevesse que a vitória de um "feel good movie", isto é, um filme para elevar os espíritos, caía como um bálsamo depois de um biênio de pandemia e sob os horrores de uma guerra em curso. Bem, "feel good" por "feel good", que se premiasse "Licorice Pizza", então, que ao menos tem consistência cinematográfica e faria justiça ao talento de Paul Thomas Anderson, ainda não reconhecido pela Academia.

Mas, ao escolher "No Ritmo do Coração", a entidade preferiu trocar o cinema pelo assistencialismo. Caiu, mais uma vez, naquela ladainha do "somos todos iguais apesar das diferenças, vamos então nos dar as mãos" ou do "basta querer para conseguir", enfim, aquela praga que assola o mundo dos filmes e também certa vertente de jornalismo, tarada por histórias de superação de gente sofrida.

FOLHA

 

 

 

 

 

 

 

March 30, 2022

Ucraniano que voltou sozinho a Mariupol consegue resgatar filho e ex-mulher

 

O ucraniano Oleg, que conseguiu buscar a ex-mulher, o filho de 15 anos e a ex-sogra em Mariupol
A ex-sogra, a ex-mulher e o filho de Oleg, que ele conseguiu tirar de Mariupol, na Ucrânia - Arquivo pessoal
ITÁLIA

Oleg, 47, ucraniano que no último dia 23 contou à Folha em Zaporíjia sobre sua empreitada de voltar à cercada Mariupol por conta e risco próprios para tentar resgatar familiares encurralados nas zonas de combate, conseguiu salvar o filho com paralisia cerebral de 15 anos, a ex-esposa e a ex-sogra.

Eles estão agora em Dnipro, cidade 310 quilômetros ao norte de Mariupol, de onde Oleg —ele não divulgou o sobrenome— conversou novamente com a reportagem.

Em vez das quatro horas normalmente necessárias para a viagem, foram quatro dias. Os principais obstáculos no caminho, além do tráfego intenso, eram as minas terrestres. Elas estão sendo usadas e espalhadas pelas estradas por russos e ucranianos, que esperam impedir que o inimigo avance com tanques. O problema é que também dificultam o trânsito de veículos civis —ônibus transportando refugiados, ambulâncias, caminhões com ajuda humanitária e o carro de Oleg.

Ao chegar a Mariupol, ele encontrou uma cidade completamente em ruínas. "É um desastre, um desastre completo", diz. Prédios destruídos, cabos elétricos espalhados pelas ruas, estilhaços por todos os cantos, corpos e pedaços deles, cemitérios improvisados.

Vizinhos de sua ex-mulher disseram ter caçado pombos e cachorros abandonados para se alimentar. Fosse o relato verdadeiro ou não, Oleg conta ter dado a eles toda a comida que tinha levado consigo, "para apoiá-los de alguma forma".

Soldados russos não necessariamente impedem a entrada e a saída de Mariupol desses indivíduos que se arriscam por conta própria para salvar suas famílias. "Eles pediam cigarros, carregadores de celular, tomaram meu cigarro eletrônico. Perguntavam: 'Você não se importa se pegarmos isso, não é?'. Claro que não, porque não tenho um rifle para poder me importar", afirma.

Ainda assim, todos são revistados, e Oleg diz que precisou mostrar as mensagens e fotos do celular e se despir, para que os soldados pudessem identificar tatuagens com símbolos nazistas —marcas comuns entre os combatentes do chamado Batalhão Azov.

Para ambos os lados da guerra além de estratégico, o controle sobre Mariupol é também questão de honra.

Feliz por ter conseguido resgatar parte da família, Oleg terá que voltar outra vez, para buscar ao menos outras duas pessoas que não pôde sequer procurar quando esteve lá. Como a cunhada e o sobrinho não caberiam no carro, ele continua sem saber se continuam vivos —a última vez em que se falaram foi no dia 2, e o bairro em que moram está sob controle de tropas russas. "Talvez eles estejam se escondendo no porão, vou procurar."

Nos postos de controle, o maior medo era de que o carro fosse tomado pelos soldados de Moscou. Até por isso ele agora comprou um carro bastante usado, de 2004, bom o suficiente apenas para conseguir entrar e sair de Mariupol sem despertar cobiça.

Oleg conta que as forças russas ao redor da cidade portuária se comportam como se já tivessem ocupado o território em definitivo, por exemplo impondo toques de recolher e regras de restrição para a população local, que é tratada como inimiga.

Segundo o ucraniano que trabalha para uma organização humanitária, pelo menos 95% dos soldados do Exército de Moscou que combatem em Mariupol são tchetchenos e de outras etnias. "É muito mais fácil para um não russo matar um ucraniano, porque eles não sentem que estão matando seus irmãos."

Na cidade, Oleg circulou por pouco mais de uma hora. "Quando cheguei perto de casa e vi que o prédio estava com os vidros quebrados e varandas danificadas, fiquei desesperado. Por sorte, minha família vivia num apartamento que teve só os vidros estilhaçados", conta.

Ele diz que não se permitiu sentir absolutamente nada; estava concentrado no objetivo de salvá-los. "Peguei a todos de surpresa, eles não sabiam que eu estava indo. Bati na porta e eles perguntaram: 'Quem está aí?'. Ficaram em choque, eu os abracei e disse: 'Nós vamos embora agora'."

A ex-esposa achava que ele estivesse morto e não tinha esperança de que fosse um dia chegar para o resgate. Eles haviam passado os dias rezando para Deus mantê-los vivos, mas dizem que já tinham se preparado para morrer.

Foi só em Berdiansk, no meio do caminho da volta para Dnipro, que Oleg se permitiu chorar. A cidade também fica na costa do mar de Azov e está sob cerco russo, mas num cenário bem distinto do de Mariupol: supermercados têm boa oferta de alimentos e até de vodca, que o ucraniano comprou para tomar e conseguir dormir depois do resgate.

Cercados, os soldados de Kiev em Mariupol estão separados por no máximo 500 metros dos de Moscou —em alguns pontos, eles se observam. Na cidade, Oleg conta que não teve problemas com as tropas ucranianas, que nem pediram seus documentos. Os russos, por sua vez, tentaram saber com ele quantos militares havia do outro lado; ele simplesmente respondeu que não havia tido tempo de calcular.

"As forças ucranianas estão raivosas. Não vão deixar Mariupol, vão combater até o último soldado", diz.

Nesta terça (29), a Rússia anunciou uma redução drástica que ataques na região de Kiev, dizendo que vai agora se concentrar na porção leste da Ucrânia. Nessa região, Mariupol é vista como prioridade para o Kremlin, e a falta de um acordo claro que assegure um corredor humanitário duradouro selará o destino dos civis que ainda estão presos na cidade.

Membros das forças da autoproclamada República Popular de Donetsk também combatem na região e, segundo Oleg, são ainda piores que as tropas russas. Os separatistas veem a população que busca escapar como traidores, e os ucranianos os acusam de frequentemente usar de violência e humilhação contra civis.

Em Dnipro, a família está em um abrigo preparado por voluntários. "Quando eles chegaram, perguntaram se aqui não havia bombardeios, porque durante um mês viveram num inferno total. Estão se recuperando emocionalmente", diz. Depois que ele voltar do resgate da cunhada e do sobrinho, Oleg pretende levar todos ainda mais para o oeste. "Minha irmã vive na Alemanha e vou enviá-los para lá."

Antes da guerra, Oleg trabalhava para uma agência dinamarquesa que apoia refugiados e nunca havia se imaginado numa situação como a que está vivendo agora, de ele e sua família se tornarem refugiados e sofrerem aquilo que ele viu acontecer a outras pessoas.

Se a Rússia vencer a guerra ou se a Ucrânia aceitar uma rendição e entregar o controle da região leste do país em troca de paz, Oleg diz que pode se ver permanentemente impedido de voltar para casa.

Por sorte, ele conseguiu recuperar um pedaço da memória. Foi ao apartamento de sua mãe, que morreu no verão passado, antes da guerra, e o encontrou destruído —não por bombas, mas por alguém que invadiu o lugar e roubou tudo o que pôde. Oleg conseguiu recuperar uma foto da mãe. Se nunca puder voltar, ao menos a terá consigo.




FOLHA

Entrega do Oscar foi tentativa inglória de reverter a decadência

 


Sergio Rizzo, especial para O GLOBO

Como programa de TV e também como ápice da temporada de cinema nos EUA, a 94ª cerimônia de entrega do Oscar sinalizou claramente que as coisas em Hollywood andam esquisitas — e nada mais representativo de um certo vazio criativo e da perda acelerada de relevância do que conceder o prêmio principal a um filme fofinho americano que é... refilmagem de um filme fofinho francês.

Qual o maior símbolo da pouca importância do que estava em jogo? O fato de o assunto principal da noite ser o tapa de Will Smith em Chris Rock, e as subsequentes lágrimas de Smith ao receber o prêmio de melhor ator (por “King Richard”), tentar se explicar e pedir desculpas. Se a premiação será lembrada só por isso, é porque o Oscar 2022 foi devagar, quase parando, bem fraquinho.

A escaramuça alimentou a internet com especulações e comentários de toda natureza. Se a Academia de Hollywood busca engajamento nas redes, aprendeu que um pouco de improviso e de baixaria (na piada de Rock e na reação de Smith a ela) pode apimentar as próximas cerimônias. Entrar no jogo de audiência da era das celebridades exige, com frequência, sujar as mãos. 

“No ritmo do coração” teve 100% de aproveitamento, vencendo nas três categorias em que foi indicado: melhor filme, ator coadjuvante (Troy Kotsur) e roteiro adaptado (escrito pela diretora Siân Heder a partir de “A família Bélier”). Na porcentagem, um feito equivalente ao de vencedores como “O último imperador” (1987) e “O senhor dos anéis: o retorno do rei” (2003).

A diferença, bem substancial, é que o filme do italiano Bernardo Bertolucci levou nove Oscars e o do neozelandês Peter Jackson, 11. Sintoma do pouco fôlego que demonstrava quando as indicações foram divulgadas, “No ritmo do coração” não foi nem mesmo lembrado para melhor direção — como ocorreu recentemente com os também vencedores “Argo” (2012) e “Green book” (2018).

O paralelo mais significativo é com “Green book”, que foi “descoberto” pelos eleitores da Academia de Hollywood, na reta final do Oscar, como a melhor opção para desbancar “Roma”, o candidato da Netflix — derrotada, desta vez, com “Ataque dos cães”, que carregava também o fardo de ser visto como “faroeste gay”, rótulo que abateu “O segredo de Brokeback Mountain” (2005).

Mas a derrota da Netflix foi só dela, e não dos serviços de streaming. Disponível no Amazon Prime, “No ritmo do coração” é um filme da Apple+, que teria investido entre US$ 20 milhões e US$ 25 milhões na campanha (bem-sucedida) para a premiação. Nada mais significativo do que o primeiro Oscar do streaming sair para um filme que funciona melhor no sofá do que no cinema.

E os dois superespetáculos cinematográficos na disputa, filmes para ver na sala grande? Em volume, “Duna” foi o grande vencedor da noite, com seis estatuetas, mas todas técnicas — que os acadêmicos, preconceituosamente, veem como menores. Estigmatizado por uma arrecadação muito aquém do esperado, “Amor, sublime amor” ganhou só o Oscar de coadjuvante (Ariana DeBose).

Favorito no início da maratona, “Ataque dos cães” sucumbiu ao bom-mocismo de “No ritmo do coração”, mas valeu à neozelandesa Jane Campion (“O piano”) um incontestável prêmio de direção, a primeira vez em que mulheres ganham nessa categoria em anos consecutivos (Chloé Zhao foi a vencedora em 2021 com “Nomadland”). Placar atualizado: 91 x 3 para os diretores. Ah, Hollywood.

Como programa de TV, exibido sem interrupções desde 1953, o Oscar deste ano chamou a atenção pela incapacidade de promover mudanças que de fato transformem seu formato caduco. Oito categorias foram varridas para fora da cerimônia ao vivo, e ainda assim o Oscar de melhor filme só foi entregue três horas e meia depois de Beyoncé dar a largada.

No quesito chatice, a oferta foi a habitual — piadas autocelebratórias e autoacusatórias, lerdeza para fazer a noite caminhar, empáfia cafona de quem ainda se acha o centro do universo do entretenimento. Na pretensão de abraçar públicos de todos os gostos e idades, a festa virou um Frankenstein que convida atletas para homenagear James Bond. 

Até mesmo a novidade do Oscar popular, com votação do público via internet, fracassou. Apontada como uma tentativa de contemplar um sucesso arrasador de público como “Homem-Aranha: Sem volta para casa”, a disputa virou quase que uma guerrinha entre fã-clubes, e o vencedor foi “Army of the dead: Invasão em Las Vegas”.

Na história da infâmia

Freud adoraria o ato falho dos roteiristas da cerimônia, ao inserirem uma piada sobre a “morte” do Globo de Ouro. Não seria o Oscar atração do mesmo circo, como as barracas vizinhas de “O beco do pesadelo”? Eis que a salvação para o tédio veio com o vexame entre Smith e Rock, inscrito de imediato na história da infâmia da TV ao vivo. Que belo marco.

Até mesmo uma boa ideia incorporada à cerimônia — as homenagens aos aniversários de filmes clássicos e populares — apontou também para a decadência atual que se tenta esconder debaixo da purpurina. Os 50 anos de “O Poderoso Chefão”, por exemplo, levaram ao palco Francis Coppola, Al Pacino e Robert De Niro. Liza Minnelli, de cadeira de rodas, foi celebrada por “Cabaret”, outro ícone daquele ano.

Contraste avassalador, hein? O tempo passa, o tempo voa, e a Academia continua a fingir que não é com ela. Me engana que eu gosto.

GLOBO

March 24, 2022

Entenda o que é 'westsplaining' e por que a arrogância ocidental já revolta a Europa Oriental

 



Os acadêmicos poloneses Jan Smolenski e Jan Dutkiewicz criticam especialistas dos EUA e da Europa Ocidental, à direita e à esquerda, que dão pitacos sobre a invasão russa da Ucrânia sem a menor intimidade com a realidade local, os 'westsplainers'

Do Leste russófilo ao Oeste onde colaborador de Hitler é cultuado, trajeto de motorista da Ucrânia reflete divisões históricas do país

 

Um ônibus de transporte militar ucraniano é atacado por mísseis russos na região de Sumy, no dia 24 de fevereiro, primeiro dia da invasão Foto: YAN BOECHAT / .
Um ônibus de transporte militar ucraniano é atacado por mísseis russos na região de Sumy, no dia 24 de fevereiro, primeiro dia da invasão Foto: YAN BOECHAT / .

Yan Boechat, de Lviv, Ucrânia

 Maxim* saiu de casa na manhã do dia 24 de fevereiro prometendo que voltava para o jantar. Não fez mala, não se despediu da mãe e nem disse adeus para Sasha, seu irmão mais novo com quem por 12 anos dividiu o quarto em um apartamento do período soviético em Kramatorsk, no Leste da Ucrânia. Apesar de acostumada com a guerra e com as bombas, tudo estava diferente naquela manhã nesta cidadezinha triste que se tornou o quartel general do Exército ucraniano na região de Donbass.

Era uma manhã bonita. Não havia nuvens no céu e os primeiros raios de sol cobriam os parques e as praças com uma tonalidade amarelada. Ao fundo era possível ouvir o som dos bombardeios. Mas o som das bombas não impressiona ninguém em Kramatorsk há muitos anos. Desde que separatistas apoiados pela Rússia declararam a independência das províncias de Donetsk e Luhansk em 2014, a guerra faz parte do cotidiano das pessoas em Donbass. Nestes quase oito anos de guerra, mais de 14 mil pessoas perderam suas vidas nessa região.

—  Panika, Panika, cuco, cuco —  dizia Maxim numa mistura de russo com onomatopeias de revistas em quadrinhos apontando para as pessoas que faziam filas na porta de bancos, farmácias e supermercados naquelas primeiras horas da manhã.

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Repetia o “panika" e o “cuco" a cada fila, gargalhando e em seguida dizendo  “não há problema, está tudo bem”. Ou pelo menos era isso que eu entendia.

Até hoje não sei bem se Maxim entendia de fato o que estava acontecendo naquela manhã. Depois de meses de ameaças, desmentidos e  acusações, Vladimir Putin estava invadindo a Ucrânia. Ataques estavam sendo registrados em todo o país. A guerra de baixa intensidade, com quase nenhuma movimentação dos últimos anos, estava mudando. As pessoas em Kramatorsk pareciam entender isso. As filas eram sinais de que estavam se preparando para tempos difíceis. Maxim era só sorrisos, piadas e tranquilidade. Quando uma explosão mais alta era ouvida, ele ria e repetia: "net problem, net problem”.

Conheci Maxim naquela manhã estranha de 24 de fevereiro. Horas antes eu havia despertado com duas notícias impactantes. A primeira era de que a guerra que pouca gente acreditava ser possível começara. A segunda era de que minha tradutora e seu marido, meu motorista, desapareceram do decadente Hotel Ukraina em que estávamos hospedados. Partiu para cuidar da família e deixou a mim e a uma colega para trás sem nem mesmo nossos coletes à prova de bala e capacetes. Com informações desencontradas de ataques e avanços das tropas russas, decidimos que o melhor a fazer era sair da região de Donbass o mais rápido possível para não corrermos o risco de, na melhor das hipóteses, sermos presos pelos soldados russos.AT / .

Discriminação no Oeste

Maxim estava trabalhando havia alguns dias como motorista de dois jornalistas americanos com os quais já cruzei em alguns conflitos. Naquela manhã enfiamos todas as malas e nos esprememos no Skoda Fábia de Maxim. Nosso destino era Dnipro, no Centro do país e o mais longe possível da fronteira com a Rússia. Deu tudo errado. As estradas estavam fechadas e terminamos na cidade mais próxima da fronteira, Kharkiv, que estava sendo bombardeada pela artilharia russa. Os dois colegas decidiram ficar na cidade para assistir ao que acreditavam ser uma cena histórica: tanques russos desfilando dentro da segunda maior cidade ucraniana. Eu e minha colega tínhamos planos mais ambiciosos: assistir à mesma cena em Kiev. Maxim decidiu seguir viagem conosco.

Foram longas 24 horas. Mas, na manhã seguinte, Maxim havia se dado conta do que estava acontecendo. Sua mãe, seu pai e seu irmão menor decidiram fugir de Kramatorsk. Iam se tornar refugiados. Ele não poderia segui-los. Tinha só 23 anos, estava em idade militar e por decisão do governo ucraniano todos os homens entre 18 e 60 anos estavam impedidos de deixar o país. Pelos próximos 20 dias, Maxim cruzaria o país comigo, de Leste a Oeste e novamente de Oeste para Leste.

Maxim não fala ucraniano. E até aquele dia tinha uma genuína admiração por Vladimir Putin. Como praticamente toda a população ucraniana a leste do Rio Dniéper, Maxim e sua família têm conexões culturais, étnicas e familiares com a Rússia. Seus antepassados vieram de regiões distantes do Império Russo para povoar as planícies entre os rios Don e Seversky Donets, ricas em carvão, na segunda metade do século XIV.  Durante os anos soviéticos, toda essa região se tornou um importante polo siderúrgico da URSS. 

Por conta disso, jovens como Maxim passaram a ser vistos com extrema desconfiança pelos ucranianos do Oeste do país após a deposição do presidente Victor Yanukovich, um aliado de Putin, em 2014, após os protestos da Euromaidan. Nas trincheiras no entorno de Kramatorsk, era difícil encontrar um soldado que fosse de Donbass. Em 2018, passei um mês na região, visitando as repúblicas separatistas e as posições ucranianas dessa que era a última guerra esquecida da Europa. 

— Não podemos confiar nessas pessoas, eles são russos, eles nem sequer falam a nossa língua — contava um soldado vindo da região de Lviv dentro das trincheiras que cortavam ao meio a pequena cidade de Zaitseve.

Atrás dele, nas paredes de madeira que sustentavam essa trincheira bem construída, era possível ver suásticas desenhadas à mão. Num muro não muito distante, o símbolo das SS estava pintado.

— Lviv natsisty!!, Lviv fashist!!, Lviv banderist!! — dizia Maxim para si mesmo, com lágrimas nos olhos, e raiva. 

Havíamos acabado de sair da delegacia de Lviv, a maior cidade do Oeste da Ucrânia, berço do movimento nacionalista ucraniano. A guerra já se estendia por 10 dias e eu havia decidido deixar Kiev quando meu dinheiro acabou. A capital ucraniana estava entrando em colapso. Havia pouca comida, o sistema bancário não funcionava, a gasolina acabara.

Eu, Maxim e uma colega americana viajamos por quase 20 horas por pequenas estradas e enfrentando filas gigantescas de carros que fugiam da guerra. Desde nossa chegada a Lviv, dois dias antes, era possível perceber que Maxim era visto com extrema desconfiança.

— Eles me tratam mal porque não sei falar ucraniano, acham que sou traidor — me contara ele após um guarda em uma barreira tratá-lo com extrema agressividade.

Naquela manhã, Maxim havia ido ao mercado. Ao que parece, uma mulher o tratou mal por ele não falar ucraniano. Uma discussão teve início. Começaram a acusá-lo de espião. Um policial chegou para tentar apartar a confusão. Maxim estava detido. Felizmente ele conseguiu me mandar uma mensagem, eu entrei em contato com o departamento de imprensa do Ministério da Defesa, e consegui soltá-lo. 

— Mas por favor, vamos embora daqui, não é seguro para mim — me disse ele por meio do aplicativo de tradução.

Maxim não fala inglês. No dia seguinte, voltamos para Kiev.

A mãe do soldado Ivan Skypnyk, 37, chora sobre se

Culto a fascista

A desconfiança mútua entre Leste e Oeste tem alimentado a propaganda desse conflito há quase uma década. O discurso dos manifestantes que tomaram a Maidan, a Praça da Independência de Kiev, no inverno de 2013 e deporiam o presidente russófilo meses depois nunca foi muito diferente daquele de Stepan Bandera, o líder nacionalista ucraniano que apoiou a chegada do Exército alemão em 1941 e teve participação importante na perseguição a judeus na Ucrânia. 

Apesar de protestos da União Europeia, Bandera foi reabilitado como herói nacional. No processo de “ucranização" que se deu após a queda de Yakunovich, passou a ser homenageado, com seu nome batizando ruas e praças. Com ele, voltaram os símbolos de ultradireita desse passado que os soviéticos tentaram apagar após o fim da guerra e da morte de Bandera, assassinado pela KGB nos anos 1950 na Alemanha. Por toda Ucrânia, é possível ver a bandeira vermelha e preta da União dos Nacionalistas Ucranianos nas áreas militares. Em Lviv, uma cidade que tem ligações históricas muito mais próximas da  Polônia e do Império Austro-Húngaro do que da Rússia, ela está por toda a parte.

Maxim se sente ofendido quando vê a bandeira rubro-negra tremulando nos checkpoints. Seu bisavô lutou na Segunda Guerra com o Exército Vermelho combatendo tanto os alemães quanto os banderistas. Sua avó lhe contava histórias terríveis dos tempos em que os alemães, os fascistas, ocuparam o Donbass. Para pessoas como ele, do Leste do País, o processo de ucranização foi também um processo de apagamento da história da qual as gerações anteriores à sua mais se orgulhavam. O ápice soviético ainda é visto com extrema nostalgia em diferentes partes da Ucrânia.

Maxim xingava Putin toda vez que víamos notícias dos ataques a civis em cidades como Mariupol, Kharkiv ou a sua Kramatorsk. Ao contrário de Lviv, essas são cidades com a população majoritariamente russófona. Por lá, boa parte da população ainda não fala ucraniano e, até o começo da guerra, muitos tinham uma visão muito mais pró-Moscou do que pró-Kiev. Em Kharkiv, um dia antes dos ataques começarem, ninguém acreditava que seria possível um bombardeio contra a cidade. 

— Eles são nossos irmãos, Putin jamais fará isso — contava Alexei, um professor de karatê que conheci em Kharkiv nos dias que antecederam a invasão.

Talvez por isso, naquele primeiro dia de guerra, Maxim parecia tão tranquilo. Tão seguro de que nada mais sério iria acontecer.

Deixei Maxim em Kiev no vigésimo dia da guerra. Naquele dia, como nos anteriores, Kiev estava sendo atacada. Maxim estava preocupado com seu carro. Ele ama o Skoda Fábia que ainda está pagando. Mesmo com bombas caindo perto de nós, jamais deixou de frear a cada buraco, a cada quebra-molas, a cada mínima imperfeição da pista.

A cada três dias, não importava por quanto tempo tínhamos trabalhado, ele gastava um pacote de toalhas úmidas para bebê limpando o interior do Skoda. Para sua decepção, não conseguira achar um só local para lavar o carro.

Na última sexta-feira, Maxim completou 24 anos. Por mensagem me disse que ia pra Odessa tentar encontrar um coiote para atravessá-lo ilegalmente para a Moldávia. 

“Quero encontrar minha mãe, meu pai, Sasha, eles estão na Alemanha”, escreveu Maxim, decidido a não lutar. “Essa guerra não é minha guerra”, sentenciou.

*O nome do personagem foi trocado para sua segurança

GLOBO


March 23, 2022

Museus europeus enfrentam dilema de como devolver obras de coleções russas de exposições que estão chegando ao fim

 

Sala com as pinturas de Claude Monet na concorrida mostra da coleção Morozov, na Fundação Louis Vuitton. Foto: Marc Domage / Fondation Louis Vuitton / M

Alex Marshall and Vanessa Friedman / The New York Times

 

Mais de um milhão de pessoas foram à mostra da coleção Morozov, na Fundação Louis Vuitton, nos arredores de Paris, desde a abertura em novembro.  A coleção, que inclui telas de Picasso, Gauguin, Renoir e Van Gogh, nunca havia saído da Rússia e é tão importante para o país que o presidente Vladimir Putin autorizou pessoalmente a viagem para a França.

Em outros tempos, as obras seriam embaladas em caixas e devolvidas aos museus russos após o encerramento da exposição em 3 de abril. Agora, por causa das sanções levantadas após a invasão da Ucrânia, não está claro o que vai acontecer.

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Jean-Paul Claverie, consultor de Bernard Arnault, presidente da LVMH, cita algumas das preocupações.  Os curadores de três dos principais museus da Rússia, que normalmente supervisionariam essa remoção das obras, podem não conseguir viajar para a França, devido às restrições nos voos provenientes da Rússia.

A maioria dos países europeus proibiu a entrada de companhias aéreas russas em seu espaço aéreo, enquanto muitas companhias europeias suspenderam voos de e para a Rússia.

Ainda mais complicada é a questão de como as obras podem ser devolvidas com segurança. A Fundação Louis Vuitton, em coordenação com as respectivas instituições russas, estava avaliando o que fazer “se tivermos um problema” cruzando fronteiras, disse Claverie.

— Talvez tenhamos que colocar as obras em depósito, ou guardar em uma embaixada, ou guardar a coleção na caixa de segurança que temos na Fundação — acrescenta. — A segurança das pinturas é nosso único objetivo.

“A Coleção Morozov” não é o único programa de alto nível que enfrenta esses dilemas. O Museu Victoria & Albert, em Londres, tem 13 peças de museus russos em sua exposição esgotada sobre a joalheria Fabergé, em cartaz até 8 de maio. Entre elas, um ovo Fabergé doado por Putin Museu Hermitage, em São Petersburgo. Há também itens da fundação de Viktor Vekselberg, que está na lista de sanções do governo britânico.

Picasso viajou pela Ucrânia

Um porta-voz do museu se recusou a explicar em detalhes o que acontecerá com os 13 itens quando a exposição terminar. Já a assessoria do Ministério da Cultura da Grã-Bretanha disse que “vai trabalhar com o V&A para ver como podemos devolver os ovos Fabergé à Rússia no momento certo”.


Os museus russos também estão confusos em torno do tema. No início de março, o Hermitage informou vários museus italianos que, sob ordens do Ministério da Cultura da Rússia, estava pedindo o retorno de todas as obras emprestadas até 31 de março. Na semana passada, no entanto, o museu voltou atrás, “considerando os problemas de segurança e logística”, e desistiu do pedido de devolução.

A Fundação Alda Fendi  está exibindo em Roma o quadro “Jovem Mulher 1909”, de Picasso, emprestado pelo Hermitage até 15 de maio. Raffaele Curi, diretor artístico da instituição, considera que a desistência foi “conveniente” para a Rússia, já que era difícil devolver as pinturas no momento. O Picasso viajou pela Ucrânia de caminhão a caminho de Roma, disse Curi, acrescentando que “teria sido muito difícil do ponto de vista logístico” fazer essa viagem de volta agora.

Sem confisco

Robert Read, diretor do setor de arte da seguradora Hiscox, que trabalha com museus europeus, disse que as questões em torno da devolução de obras são logísticas e não políticas. Chefe do braço russo da empresa de logística de arte ESI, Frederic de Weck concorda, e acrescenta que conversou com funcionários do Museu Estadual de Belas Artes Pushkin, em Moscou, que frisaram que as pinturas da Coleção Morozov “permanecerão na França” até que voos diretos sejam possíveis.

— Enviar as obras de arte por caminhão não é uma opção — disse De Weck, que rechaça especulações sobre as peças não voltarem para casa. — Qualquer sugestão de que as obras possam ser confiscadas é infundada.

Robert Read concorda:

— Governos e museus não gostariam de ser vistos se recusando a enviar obras de arte de volta, pois isso “perturbaria todo o sistema” de empréstimos internacionais.

March 17, 2022

I See Three Scenarios for How This War Ends

 

 

Thomas L. Friedman

The battle for Ukraine unfolding before our eyes has the potential to be the most transformational event in Europe since World War II and the most dangerous confrontation for the world since the Cuban missile crisis. I see three possible scenarios for how this story ends. I call them “the full-blown disaster,” “the dirty compromise” and “salvation.”

The disaster scenario is now underway: Unless Vladimir Putin has a change of heart or can be deterred by the West, he appears willing to kill as many people as necessary and destroy as much of Ukraine’s infrastructure as necessary to erase Ukraine as a free independent state and culture and wipe out its leadership. This scenario could lead to war crimes the scale of which has not been seen in Europe since the Nazis — crimes that would make Vladimir Putin, his cronies and Russia as a country all global pariahs.

The wired, globalized world has never had to deal with a leader accused of this level of war crimes whose country has a landmass spanning 11 time zones, is one of the world’s largest oil and gas providers and possesses the biggest arsenal of nuclear warheads of any nation.

Every day that Putin refuses to stop we get closer to the gates of hell. With each TikTok video and cellphone shot showing Putin’s brutality, it will be harder and harder for the world to look away. But to intervene risks igniting the first war in the heart of Europe involving nuclear weapons. And to let Putin reduce Kyiv to rubble, with thousands of dead — the way he conquered Aleppo and Grozny — would allow him to create a European Afghanistan, spilling out refugees and chaos.

Putin doesn’t have the ability to install a puppet leader in Ukraine and just leave him there: A puppet would face a permanent insurrection. So, Russia needs to permanently station tens of thousands of troops in Ukraine to control it — and Ukrainians will be shooting at them every day. It is terrifying how little Putin has thought about how his war ends.

I wish Putin was just motivated by a desire to keep Ukraine out of NATO; his appetite has grown far beyond that. Putin is in the grip of magical thinking: As Fiona Hill, one of America’s premier Russia experts, said in an interview published on Monday by Politico, he believes that there is something called “Russky Mir,” or a “Russian World”; that Ukrainians and Russians are “one people”; and that it is his mission to engineer “regathering all the Russian-speakers in different places that belonged at some point to the Russian tsardom.”

To realize that vision, Putin believes that it is his right and duty to challenge what Hill calls “a rules-based system in which the things that countries want are not taken by force.” And if the U.S. and its allies attempt to get in Putin’s way — or try to humiliate him the way they did Russia at the end of the Cold War — he is signaling that he is ready to out-crazy us. Or, as Putin warned the other day before putting his nuclear force on high alert, anyone who gets in his way should be ready to face “consequences they have never seen” before. Add to all this the mounting reports questioning Putin’s state of mind and you have a terrifying cocktail.

The second scenario is that somehow the Ukrainian military and people are able to hold out long enough against the Russian blitzkrieg, and that the economic sanctions start deeply wounding Putin’s economy, so that both sides feel compelled to accept a dirty compromise. Its rough contours would be that in return for a cease-fire and the withdrawal of Russian troops, Ukraine’s eastern enclaves now under de facto Russian control would be formally ceded to Russia, while Ukraine would explicitly vow never to join NATO. At the same time, the U.S. and its allies would agree to lift all recently imposed economic sanctions on Russia.

This scenario remains unlikely because it would require Putin to basically admit that he was unable to achieve his vision of reabsorbing Ukraine into the Russian motherland, after paying a huge price in terms of his economy and the deaths of Russian soldiers. Moreover, Ukraine would have to formally cede part of its territory and accept that it was going to be a permanent no man’s land between Russia and the rest of Europe — though it would at least maintain its nominal independence. It would also require everyone to ignore the lesson already learned that Putin can’t be trusted to leave Ukraine alone.

Finally, the least likely scenario but the one that could have the best outcome is that the Russian people demonstrate as much bravery and commitment to their own freedom as the Ukrainian people have shown to theirs, and deliver salvation by ousting Putin from office.

Many Russians must be starting to worry that as long as Putin is their present and future leader, they have no future. Thousands are taking to the streets to protest Putin’s insane war. They’re doing this at the risk of their own safety. And though too soon to tell, their pushback does make you wonder if the so-called fear barrier is being broken, and if a mass movement could eventually end Putin’s reign.

Even for Russians staying quiet, life is suddenly being disrupted in ways small and large. As my colleague Mark Landler put it: “In Switzerland, the Lucerne music festival canceled two symphony concerts featuring a Russian maestro. In Australia, the national swim team said it would boycott a world championship meet in Russia. At the Magic Mountain Ski Area in Vermont, a bartender poured bottles of Stolichnaya vodka down the drain. From culture to commerce, sports to travel, the world is shunning Russia in myriad ways to protest President Vladimir V. Putin’s invasion of Ukraine.”

And then there is the new “Putin tax” that every Russian will have to pay indefinitely for the pleasure of having him as their president. I am talking about the effects of the mounting sanctions being imposed on Russia by the civilized world. On Monday, the Russian central bank had to keep the Russian stock market closed to prevent a panicked meltdown and was forced to raise its benchmark interest rate in one day to 20 percent from 9.5 percent to encourage people to hold rubles. Even then the ruble nose-dived by about 30 percent against the dollar — it’s now worth less than 1 U.S. cent.

For all of these reasons I have to hope that at this very moment there are some very senior Russian intelligence and military officials, close to Putin, who are meeting in some closet in the Kremlin and saying out loud what they all must be thinking: Either Putin has lost a step as a strategist during his isolation in the pandemic or he is in deep denial over how badly he has miscalculated the strength of Ukrainians, America, its allies and global civil society at large.

If Putin goes ahead and levels Ukraine’s biggest cities and its capital, Kyiv, he and all of his cronies will never again see the London and New York apartments they bought with all their stolen riches. There will be no more Davos and no more St. Moritz. Instead, they will all be locked in a big prison called Russia — with the freedom to travel only to Syria, Crimea, Belarus, North Korea and China, maybe. Their kids will be thrown out of private boarding schools from Switzerland to Oxford.

Either they collaborate to oust Putin or they will all share his isolation cell. The same for the larger Russian public. I realize that this last scenario is the most unlikely of them all, but it is the one that holds the most promise of achieving the dream that we dreamed when the Berlin Wall fell in 1989 — a Europe whole and free, from the British Isles to the Urals.

NEW YORK TIMES

 

Em rota de fuga na Ucrânia, 'Brasil' é alegria breve para civis com medo, tristeza e cansaço da guerra

 


A senhora de cabelos brancos, olhos de um azul incrivelmente pálido e fartos dentes de ouro chorou quando me ouviu falar “Brasil”. Foi um choro desses que explodem de repente, como um espirro impossível de ser contido. Ela chorava, apertava minha mão e dizia repetidas vezes: “spasibo, spasibo, spasibo” (Obrigado em russo). Era uma típica babushka, uma vovozinha ucraniana com os cabelos cobertos com um lenço vermelho, agasalhada sob um sobretudo verde de tecido grosso e com os pés protegidos por uma bota de lã preta.

A solitária babushka estava em um campo aberto, sentada em uma cadeira de rodas, quando a encontrei. Decidi fotografar aquela cena quase bucólica. Estava no meio do caminho enlameado que dava acesso ao Rio Irpin, por onde centenas de civis escaparam, nesta terça-feira, em um dos corredores humanitários estabelecidos pela Rússia e a Ucrânia . Talvez esperasse por um filho, um vizinho, um amigo, ou mesmo um soldado que a levasse dali.

Crianças em fuga Foto: Yan Boechat / Yan Boechat
Crianças em fuga Foto: Yan Boechat / Yan Boechat

Estava tranquila. Até que o som da artilharia chegou. Primeiro espaçado. Depois intenso, alto, em cadência. Eram, claramente, disparos das forças ucranianas contra posições russas. Mas, após dias escondida em um porão, a velha senhora se agitou. Tentou levantar-se da cadeira de rodas para buscar abrigo sob a ponte agora destruída pelas forças ucranianas numa tentativa de frear o avanço das tropas russas. Não conseguiu.

Decidiu não competir com o som da artilharia. Não gritou, não falou. Apenas me olhou assustada. Empurrei a cadeira de rodas até debaixo da ponte lentamente, vencendo o terreno coberto pela lama e tomando cuidado para não derrubá-la nos pequenos declives.

Com a ajuda de dois soldados e uma jovem adolescente, levantamos a cadeira de rodas e a deixamos em algo próximo do que seria um lugar seguro naquela situação. Ela então começou a falar, a perguntar, a gesticular. Eu acho que ela queria saber de onde eu era, mas não sei se era isso exatamente o que ela dizia. Apenas respondi: “Brasil, Brasil”. E a velha babushka cedeu a toda tensão, a todo medo, a toda dor desses dias difíceis. Chorou.


Fuga em Irpin Foto: Yan Boechat / Yan Boechat
Fuga em Irpin Foto: Yan Boechat / Yan Boechat

Corredor de lágrimas

Ao longo desta terça-feira ela não foi a única a derramar lágrimas às margens do Rio Irpin. Após dias de bombardeios intensos e batalhas com tanques, drones e infantaria, finalmente o cessar-fogo parcial fora respeitado. E muitas pessoas como ela, idosos, com dificuldade para caminhar, acamados, puderam ser retirados dos porões e seguir para áreas distantes dos combates. Ao longo do dia, foram milhares de pessoas retiradas de Irpin, Bucha e outras pequenas cidades na periferia Oeste de Kiev. Ao contrário do que acontecera dias antes aqui, não foram registrados ataques contra os civis.

Ekaterina deixou sua casa em Bucha pela manhã. Atravessou a cidade, cruzou Irpin e chegou até a ponte que marca a entrada a Kiev três horas depois com sua mãe, seu marido e um vizinho.

— Hoje (terça-feira) não houve ataques, vimos os soldados russos e eles não fizeram nada conosco, seguimos em segurança até aqui — contava ela, enquanto cruzava uma imensa fila de carros abandonados sobre a ponte que antes ligava Irpin a Kiev.

Fuga em Irpin Foto: Yan Boechat / Yan Boechat
Fuga em Irpin Foto: Yan Boechat / Yan Boechat

No domingo, exatamente aqui, famílias como a dela faziam o mesmo trajeto quando morteiros começaram a cair do céu. Foram vários disparos, ao longo de todo o dia. Um deles matou três integrantes de uma família. Na segunda-feira, esforços de retirada também foram feitos, mas pouca gente teve coragem de sair dos abrigos e enfrentar uma caminhada em terreno aberto até chegar ao único ponto de fuga.

Todos que fogem de Irpin precisam passar por um pontilhão improvisado. A água gelada volta e meia ganha os pedaços de madeira, torna tudo escorregadio e incrivelmente difícil para os mais idosos e as crianças. Várias pessoas já caíram ali. Alguns foram carregados nas costas, nos braços ou em cobertores que fizeram às vezes de macas.

— Tem sido difícil, mas temos conseguido retirar as pessoas ainda que lentamente. Há muitos problemas para retirar os mais idosos — contou Mariana Belzuhla, uma integrante do Parlamento ucraniano que coordenava os trabalhos de evacuação em Irpin.

No outro lado do rio, mais choro. Mas muitas vezes de felicidade. Cruzar aqueles poucos metros de água gelada significava a salvação para muitas dessas pessoas que precisaram passar dias sem água, energia e aquecimento enquanto as batalhas ocorriam nas ruas dessas pequenas cidades ucranianas.

 A neve já havia parado de cair quando a senhora que se emocionara ao ouvir a palavra Brasil entrou em uma ambulância já do outro lado do rio. Seria levada para Kiev, como tantos outros. Ou talvez para a casa de um parente em alguma parte ainda mais distante da guerra. Sentada na cadeira de rodas ela não chorava. Não sorria. Não expressava nenhuma emoção. Apenas enfado.

GLOBO

Fuga em Irpin Foto: Yan Boechat / Yan Boechat
Fuga em Irpin Foto: Yan Boechat / Yan Boechat






March 15, 2022

I’m in Kyiv, and It Is Terrifying

 People at a bus station in the center of Kyiv, Ukraine, on Thursday.

Ms. Melkozerova is a Ukrainian journalist and the executive editor of The New Voice of Ukraine, an English-language news site.

KYIV, Ukraine — On Thursday, I woke up at dawn to the sound of blasts. I jumped out of bed, puzzled. Maybe it was a dream? But then I heard another loud blast, and then another one. Kyiv was shaking. I reached for my phone and read that President Vladimir Putin of Russia had ordered his army o attack Ukraine. They had started bombarding us.

My internet went down, and I felt fear crawling in my guts. I had never felt this way before. It was as if someone, maybe Mr. Putin himself, had grabbed my heart and squeezed it. This feeling has stayed with me: It is my new permanent condition.

It’s not that the Russian invasion came as a surprise, exactly. We’ve been expecting it, in some form, for weeks, even months. Mr. Putin’s moves earlier this week — recognizing the independence of two regions in eastern Ukraine and sending in troops to both — made plain that war was coming. To Mr. Putin, as he explained in his crazed speech on Monday, Ukraine is not a sovereign state and has no right to exist. It is to be folded up, by force, into Russia’s control.

The tanks and troops pouring into the country are intended to make Mr. Putin’s fantasy a reality. But we in Ukraine know otherwise. Some 43 percent of Ukrainians, according to a recent poll, are ready to fight the Russians — and more than 100,000 have already joined defense units across the country. We will fight, as our foreign minister said on Wednesday, for every inch of our land. Proud citizens of one of Eastern Europe’s democracies, we refuse to be ruled by military diktat.

Mr. Putin claims that he is a liberator, and that Ukraine will profit from the invasion. But even my 76-year-old granny, a typical Soviet babushka who still misses the Soviet Union and its “stability,” thinks he has gone mad.

I called her early on Thursday morning, while most of Kyiv was still sleeping. She sounded puzzled but was fully awake. Another sign of strangeness: A sleepyhead, she usually wakes up well after 10 a.m. “Save yourself, your husband and your dog,” she told me. “I will stay in my apartment. If a Russian missile hits my apartment, well, so be it. I had a long life. I would rather die in my perfectly decorated flat than in some dirty basement.”

I tried to urge her to pack her belongings and documents, but she refused. “I would rather cook some soup,” she said with sad laughter, and ended the call. This was devastating: My granny is everything to me, all the family I have left, and our lives are entwined. Though I’m not planning to leave the city, I want to be prepared if things get very bad. The thought of leaving my grandmother behind is almost too much to bear. To ward off despair, I took my dog, Hans, for a walk. Not even a Russian attack will stop Hans’s need for exercise.

As I stepped onto the street, I saw people everywhere. In the densely populated part of north Kyiv where I live, that’s not that unusual. But the atmosphere was peculiar. Neighbors were hurriedly loading their cars with belongings, while others were standing in lines for the grocery store and cash machine. People were moving fast: Some had huge backpacks and looked like they were going camping. Nobody smiled.

A woman, clearly anguished, stopped me. I recognized her: She was a neighbor and a fellow dog owner. “Can you please tell me what to do?” she asked me. “I don’t know what to do.” My terrier and her boxer started nervously barking at each other. Despite constant warnings from the media and the government that the Kremlin — which built up around 190,000 troops in and near Ukraine since October — was poised to invade, she had not believed Mr. Putin would dare to do it. She hadn’t checked if there was a bomb shelter nearby; she hadn’t stored any food.

I explained to her, as simply as I could, how to prepare for the invasion. Shelters would be hard to get to with a pet, but she should pack an emergency kit with documents and food. If there’s an airstrike, she should hide in a corridor or the bathroom of her apartment. She seemed to take the information in her stride. “Well, at least we will get to know each other,” she said. “We dog lovers should stick together.”

As I continued my walk, I saw people in all kinds of moods around me. Some of them were arguing while they waited their turn at the gas station. People were driving maniacally, and cars whizzed through the streets. Whenever there was a loud sound, people looked to the skies, fearing a Russian fighter jet. A young mother stood near her black Jeep, holding her daughter with one hand and talking on the phone. “Yes, Mom, we are leaving. We are leaving!” she screamed.

I hurried home and went online, my internet thankfully restored. Russian troops, I read, had breached Ukrainian borders from Crimea and seized several border towns. Russian tanks had come close to Kharkiv, our second largest city. In a town right next to Kyiv, Russian helicopters attacked the local airport. And Russian forces captured Chernobyl, north of the capital. In the first hours of defending the country, more than 40 Ukrainian soldiers were killed and dozens were wounded.

Their sacrifice was true to our country. In this dreadful time, its fortitude, resourcefulness and spirit of resistance will shine through. Ukraine is ours, no matter what Mr. Putin says. I’m 31, born in the year Ukraine became independent: My adult life has been lived in the shadow cast by Russian aggression. First Mr. Putin annexed Crimea, then he fomented the war in the Donbas that has killed more than 14,000 people. Now the battle for Ukraine has come to a climax.

But it’s about more than Ukraine. It’s a contest between democracy and autocracy, freedom and dictatorship, whose implications will scatter across the world. It’s not our fight alone. So please don’t leave us alone to fight it.

 

NEW YORK TIMES