March 30, 2022

Entrega do Oscar foi tentativa inglória de reverter a decadência

 


Sergio Rizzo, especial para O GLOBO

Como programa de TV e também como ápice da temporada de cinema nos EUA, a 94ª cerimônia de entrega do Oscar sinalizou claramente que as coisas em Hollywood andam esquisitas — e nada mais representativo de um certo vazio criativo e da perda acelerada de relevância do que conceder o prêmio principal a um filme fofinho americano que é... refilmagem de um filme fofinho francês.

Qual o maior símbolo da pouca importância do que estava em jogo? O fato de o assunto principal da noite ser o tapa de Will Smith em Chris Rock, e as subsequentes lágrimas de Smith ao receber o prêmio de melhor ator (por “King Richard”), tentar se explicar e pedir desculpas. Se a premiação será lembrada só por isso, é porque o Oscar 2022 foi devagar, quase parando, bem fraquinho.

A escaramuça alimentou a internet com especulações e comentários de toda natureza. Se a Academia de Hollywood busca engajamento nas redes, aprendeu que um pouco de improviso e de baixaria (na piada de Rock e na reação de Smith a ela) pode apimentar as próximas cerimônias. Entrar no jogo de audiência da era das celebridades exige, com frequência, sujar as mãos. 

“No ritmo do coração” teve 100% de aproveitamento, vencendo nas três categorias em que foi indicado: melhor filme, ator coadjuvante (Troy Kotsur) e roteiro adaptado (escrito pela diretora Siân Heder a partir de “A família Bélier”). Na porcentagem, um feito equivalente ao de vencedores como “O último imperador” (1987) e “O senhor dos anéis: o retorno do rei” (2003).

A diferença, bem substancial, é que o filme do italiano Bernardo Bertolucci levou nove Oscars e o do neozelandês Peter Jackson, 11. Sintoma do pouco fôlego que demonstrava quando as indicações foram divulgadas, “No ritmo do coração” não foi nem mesmo lembrado para melhor direção — como ocorreu recentemente com os também vencedores “Argo” (2012) e “Green book” (2018).

O paralelo mais significativo é com “Green book”, que foi “descoberto” pelos eleitores da Academia de Hollywood, na reta final do Oscar, como a melhor opção para desbancar “Roma”, o candidato da Netflix — derrotada, desta vez, com “Ataque dos cães”, que carregava também o fardo de ser visto como “faroeste gay”, rótulo que abateu “O segredo de Brokeback Mountain” (2005).

Mas a derrota da Netflix foi só dela, e não dos serviços de streaming. Disponível no Amazon Prime, “No ritmo do coração” é um filme da Apple+, que teria investido entre US$ 20 milhões e US$ 25 milhões na campanha (bem-sucedida) para a premiação. Nada mais significativo do que o primeiro Oscar do streaming sair para um filme que funciona melhor no sofá do que no cinema.

E os dois superespetáculos cinematográficos na disputa, filmes para ver na sala grande? Em volume, “Duna” foi o grande vencedor da noite, com seis estatuetas, mas todas técnicas — que os acadêmicos, preconceituosamente, veem como menores. Estigmatizado por uma arrecadação muito aquém do esperado, “Amor, sublime amor” ganhou só o Oscar de coadjuvante (Ariana DeBose).

Favorito no início da maratona, “Ataque dos cães” sucumbiu ao bom-mocismo de “No ritmo do coração”, mas valeu à neozelandesa Jane Campion (“O piano”) um incontestável prêmio de direção, a primeira vez em que mulheres ganham nessa categoria em anos consecutivos (Chloé Zhao foi a vencedora em 2021 com “Nomadland”). Placar atualizado: 91 x 3 para os diretores. Ah, Hollywood.

Como programa de TV, exibido sem interrupções desde 1953, o Oscar deste ano chamou a atenção pela incapacidade de promover mudanças que de fato transformem seu formato caduco. Oito categorias foram varridas para fora da cerimônia ao vivo, e ainda assim o Oscar de melhor filme só foi entregue três horas e meia depois de Beyoncé dar a largada.

No quesito chatice, a oferta foi a habitual — piadas autocelebratórias e autoacusatórias, lerdeza para fazer a noite caminhar, empáfia cafona de quem ainda se acha o centro do universo do entretenimento. Na pretensão de abraçar públicos de todos os gostos e idades, a festa virou um Frankenstein que convida atletas para homenagear James Bond. 

Até mesmo a novidade do Oscar popular, com votação do público via internet, fracassou. Apontada como uma tentativa de contemplar um sucesso arrasador de público como “Homem-Aranha: Sem volta para casa”, a disputa virou quase que uma guerrinha entre fã-clubes, e o vencedor foi “Army of the dead: Invasão em Las Vegas”.

Na história da infâmia

Freud adoraria o ato falho dos roteiristas da cerimônia, ao inserirem uma piada sobre a “morte” do Globo de Ouro. Não seria o Oscar atração do mesmo circo, como as barracas vizinhas de “O beco do pesadelo”? Eis que a salvação para o tédio veio com o vexame entre Smith e Rock, inscrito de imediato na história da infâmia da TV ao vivo. Que belo marco.

Até mesmo uma boa ideia incorporada à cerimônia — as homenagens aos aniversários de filmes clássicos e populares — apontou também para a decadência atual que se tenta esconder debaixo da purpurina. Os 50 anos de “O Poderoso Chefão”, por exemplo, levaram ao palco Francis Coppola, Al Pacino e Robert De Niro. Liza Minnelli, de cadeira de rodas, foi celebrada por “Cabaret”, outro ícone daquele ano.

Contraste avassalador, hein? O tempo passa, o tempo voa, e a Academia continua a fingir que não é com ela. Me engana que eu gosto.

GLOBO

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