March 30, 2022

Ucraniano que voltou sozinho a Mariupol consegue resgatar filho e ex-mulher

 

O ucraniano Oleg, que conseguiu buscar a ex-mulher, o filho de 15 anos e a ex-sogra em Mariupol
A ex-sogra, a ex-mulher e o filho de Oleg, que ele conseguiu tirar de Mariupol, na Ucrânia - Arquivo pessoal
ITÁLIA

Oleg, 47, ucraniano que no último dia 23 contou à Folha em Zaporíjia sobre sua empreitada de voltar à cercada Mariupol por conta e risco próprios para tentar resgatar familiares encurralados nas zonas de combate, conseguiu salvar o filho com paralisia cerebral de 15 anos, a ex-esposa e a ex-sogra.

Eles estão agora em Dnipro, cidade 310 quilômetros ao norte de Mariupol, de onde Oleg —ele não divulgou o sobrenome— conversou novamente com a reportagem.

Em vez das quatro horas normalmente necessárias para a viagem, foram quatro dias. Os principais obstáculos no caminho, além do tráfego intenso, eram as minas terrestres. Elas estão sendo usadas e espalhadas pelas estradas por russos e ucranianos, que esperam impedir que o inimigo avance com tanques. O problema é que também dificultam o trânsito de veículos civis —ônibus transportando refugiados, ambulâncias, caminhões com ajuda humanitária e o carro de Oleg.

Ao chegar a Mariupol, ele encontrou uma cidade completamente em ruínas. "É um desastre, um desastre completo", diz. Prédios destruídos, cabos elétricos espalhados pelas ruas, estilhaços por todos os cantos, corpos e pedaços deles, cemitérios improvisados.

Vizinhos de sua ex-mulher disseram ter caçado pombos e cachorros abandonados para se alimentar. Fosse o relato verdadeiro ou não, Oleg conta ter dado a eles toda a comida que tinha levado consigo, "para apoiá-los de alguma forma".

Soldados russos não necessariamente impedem a entrada e a saída de Mariupol desses indivíduos que se arriscam por conta própria para salvar suas famílias. "Eles pediam cigarros, carregadores de celular, tomaram meu cigarro eletrônico. Perguntavam: 'Você não se importa se pegarmos isso, não é?'. Claro que não, porque não tenho um rifle para poder me importar", afirma.

Ainda assim, todos são revistados, e Oleg diz que precisou mostrar as mensagens e fotos do celular e se despir, para que os soldados pudessem identificar tatuagens com símbolos nazistas —marcas comuns entre os combatentes do chamado Batalhão Azov.

Para ambos os lados da guerra além de estratégico, o controle sobre Mariupol é também questão de honra.

Feliz por ter conseguido resgatar parte da família, Oleg terá que voltar outra vez, para buscar ao menos outras duas pessoas que não pôde sequer procurar quando esteve lá. Como a cunhada e o sobrinho não caberiam no carro, ele continua sem saber se continuam vivos —a última vez em que se falaram foi no dia 2, e o bairro em que moram está sob controle de tropas russas. "Talvez eles estejam se escondendo no porão, vou procurar."

Nos postos de controle, o maior medo era de que o carro fosse tomado pelos soldados de Moscou. Até por isso ele agora comprou um carro bastante usado, de 2004, bom o suficiente apenas para conseguir entrar e sair de Mariupol sem despertar cobiça.

Oleg conta que as forças russas ao redor da cidade portuária se comportam como se já tivessem ocupado o território em definitivo, por exemplo impondo toques de recolher e regras de restrição para a população local, que é tratada como inimiga.

Segundo o ucraniano que trabalha para uma organização humanitária, pelo menos 95% dos soldados do Exército de Moscou que combatem em Mariupol são tchetchenos e de outras etnias. "É muito mais fácil para um não russo matar um ucraniano, porque eles não sentem que estão matando seus irmãos."

Na cidade, Oleg circulou por pouco mais de uma hora. "Quando cheguei perto de casa e vi que o prédio estava com os vidros quebrados e varandas danificadas, fiquei desesperado. Por sorte, minha família vivia num apartamento que teve só os vidros estilhaçados", conta.

Ele diz que não se permitiu sentir absolutamente nada; estava concentrado no objetivo de salvá-los. "Peguei a todos de surpresa, eles não sabiam que eu estava indo. Bati na porta e eles perguntaram: 'Quem está aí?'. Ficaram em choque, eu os abracei e disse: 'Nós vamos embora agora'."

A ex-esposa achava que ele estivesse morto e não tinha esperança de que fosse um dia chegar para o resgate. Eles haviam passado os dias rezando para Deus mantê-los vivos, mas dizem que já tinham se preparado para morrer.

Foi só em Berdiansk, no meio do caminho da volta para Dnipro, que Oleg se permitiu chorar. A cidade também fica na costa do mar de Azov e está sob cerco russo, mas num cenário bem distinto do de Mariupol: supermercados têm boa oferta de alimentos e até de vodca, que o ucraniano comprou para tomar e conseguir dormir depois do resgate.

Cercados, os soldados de Kiev em Mariupol estão separados por no máximo 500 metros dos de Moscou —em alguns pontos, eles se observam. Na cidade, Oleg conta que não teve problemas com as tropas ucranianas, que nem pediram seus documentos. Os russos, por sua vez, tentaram saber com ele quantos militares havia do outro lado; ele simplesmente respondeu que não havia tido tempo de calcular.

"As forças ucranianas estão raivosas. Não vão deixar Mariupol, vão combater até o último soldado", diz.

Nesta terça (29), a Rússia anunciou uma redução drástica que ataques na região de Kiev, dizendo que vai agora se concentrar na porção leste da Ucrânia. Nessa região, Mariupol é vista como prioridade para o Kremlin, e a falta de um acordo claro que assegure um corredor humanitário duradouro selará o destino dos civis que ainda estão presos na cidade.

Membros das forças da autoproclamada República Popular de Donetsk também combatem na região e, segundo Oleg, são ainda piores que as tropas russas. Os separatistas veem a população que busca escapar como traidores, e os ucranianos os acusam de frequentemente usar de violência e humilhação contra civis.

Em Dnipro, a família está em um abrigo preparado por voluntários. "Quando eles chegaram, perguntaram se aqui não havia bombardeios, porque durante um mês viveram num inferno total. Estão se recuperando emocionalmente", diz. Depois que ele voltar do resgate da cunhada e do sobrinho, Oleg pretende levar todos ainda mais para o oeste. "Minha irmã vive na Alemanha e vou enviá-los para lá."

Antes da guerra, Oleg trabalhava para uma agência dinamarquesa que apoia refugiados e nunca havia se imaginado numa situação como a que está vivendo agora, de ele e sua família se tornarem refugiados e sofrerem aquilo que ele viu acontecer a outras pessoas.

Se a Rússia vencer a guerra ou se a Ucrânia aceitar uma rendição e entregar o controle da região leste do país em troca de paz, Oleg diz que pode se ver permanentemente impedido de voltar para casa.

Por sorte, ele conseguiu recuperar um pedaço da memória. Foi ao apartamento de sua mãe, que morreu no verão passado, antes da guerra, e o encontrou destruído —não por bombas, mas por alguém que invadiu o lugar e roubou tudo o que pôde. Oleg conseguiu recuperar uma foto da mãe. Se nunca puder voltar, ao menos a terá consigo.




FOLHA

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