December 30, 2017

As flechas inivisíveis



Luiz Antonio Simas

Uma cena de Ano Novo inesquecível para mim é a da vizinha católica que na noite da virada tomava uns biricoticos a mais, virava na Dona Maria Padilha e saía gargalhando com uma garrafa de sidra de macieira pelas escadas do prédio em que eu morava. Depois de aprontar, a Padilha dava passagem para o caboclo da dona, que metia esporro em todo mundo e lançava flechas imaginárias pra tudo quanto é lado, garantindo matar as coisas ruins do ano que findava. É o tipo de coisa que moldou a minha personalidade e o meu assombro com o mundo.

Final de ciclo é tempo de todos os tipos de crendices e superstições. Do jeito que foi 2017, acho que vale tudo pra afastar a uruca: saltar sete ondas; vestir cuecas e calcinhas novas; tomar banho de arruda; andar feito Saci-Pererê repetindo a oração da cabra preta do livro de São Cipriano; vestir a cor do orixá regente; comer duzentas uvas fazendo pedidos; beber champanhe de cabeça pra baixo; imitar índio do velho Oeste; cantar o pirulito que bate-bate em chinês; tomar passe espírita de caboclo mais fajuto que nota de três reais e outros babados.

Ouço dizer aqui e ali que o réveillon vai ser minguado na praia, em virtude da crise. Eu tenho uma sugestão melhor, que evidentemente vai ser ignorada, sobre o que o poder público e os gestores do turismo deveriam fazer nas praias na última noite do ano: nada. Apenas não atrapalhem e deixem, por exemplo, que os terreiros de umbanda voltem a fazer uma comemoração que foram eles, os terreiros, que inventaram. A festa é garantida.

A iniciativa de fazer a festa na Praia de Copacabana partiu da turma que acompanhava Tancredo da Silva Pinto, o Tata Tancredo, líder religioso, sambista e personagem fundamental da cultura do Rio de Janeiro. “Tata” é título de grande sacerdote em cultos de origem angolo-congoleses (bantos). Nascentes e Nei Lopes, que manjam do babado, o vinculam ao termo multilinguístico “tata” (pai, no quimbundo e no quicongo).

Tata Tancredo nasceu em 1905, em Cantagalo. Foi parceiro e gravou com Moreira da Silva, Blecaute, Zé Kéti, Jorge Veiga e outros tantos. Conheceu a turma toda do Estácio de Sá, a geração de ouro que inventou o “samba de sambar” característico do Rio de Janeiro, e participou dos fuzuês que envolveram a criação da Deixa Falar. Sua música mais conhecida é “General da banda” — louvação a Ogum e evocação das rodas de pernada e batucadas —, gravada pelo Blecaute

Os poucos relatos existentes indicam que o avô de Tancredo Silva foi bamba do carnaval de Cantagalo, onde fundou os blocos Avança e Treme-Terra e o Cordão Místico, uma mistura de carnaval, festa de caboclo e ritual africano, conforme relatado, em 1976, na “Revista da Congregação Espírita Umbandista do Brasil”. A tia de Tancredo, Olga da Mata (que foi mãe de santo com casa aberta em Caxias), saía no cordão vestida de Rainha Ginga.

Pois foi a turma do Tata Tancredo que resolveu difundir a ideia do fim de ano na praia, em um furdunço que não excluía ninguém. Ateus, católicas, crentes, budistas, flamenguistas, tricolores, bacalhaus e botafoguenses, por via das dúvidas, garantiam o ano bom recebendo passes de caboclos e pretas velhas nas areias, com direito a cocares, charutos e sidra de macieira. Quem não quisesse curtir uma curimba montava a farofada na areia, e a festa comia solta da mesma forma.

A confraternização nas areias de Copacabana virou atração turística bacana, atrai gente de tudo quanto é canto, gera divisas e garante a ocupação da rede hoteleira. Em contrapartida, os atabaques foram silenciados e os terreiros buscaram alternativas para continuar batendo em praias fora da centralidade turística, driblando ainda a intolerância e o fanatismo de uma turma. A festa, que era um potente evento da cultura, andou nos últimos tempos sucumbindo aos ditames da cultura do evento, aquela que espetaculariza tudo como simulacro. Tem até pacote turístico que já inclui o barquinho de Iemanjá e revista de celebridade que monta cercadinho com jogo de búzios fashion. A elitização do furdunço é evidente nos espaços reservados nas areias, controlados por grupos privados, hotéis, quiosques e similares.

Eu me agarro, em tempos difíceis, no exemplo do Tata Tancredo Silva para ainda acreditar na cidade do Rio de Janeiro e na capacidade que temos de inventar a vida no perrengue, dando nó no rabo da tinhosa e fazendo a festa. Não se faz festa, afinal, porque a vida é boa. A razão é exatamente a inversa. No fim das contas, sou ainda o menino que acredita nas flechas invisíveis dos caboclos. Que elas atinjam os alvos certos no ano que vem. Um bom 2018 para todos nós!
 
O GLOBO

December 27, 2017

Vote no melhor grampo de 2017



Débora Gonzales/Folhapress



RENATO TERRA

Acontece neste final de semana, em Maricá, o 1º Prêmio Romero Jucá de Melhor Conversa Grampeada 2017. A cerimônia terá patrocínio da JBS. Todos os envelopes com os vencedores serão trazidos por Bessias.

Autor de clássicos do cancioneiro popular grampeado como "Um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo" e "O primeiro a ser comido vai ser o Aécio" (em parceria com Sérgio Machado), Romero Jucá atingiu, como Clóvis Bornay, a categoria hors-concours.

Além de emprestar seu nome para conferir grandeza à primeira edição do prêmio, Jucá foi convidado para comentar os áudios indicados.

A escolha do grande vencedor do 1º Prêmio Romero Jucá de Melhor Conversa Grampeada 2017 será feita por voto popular *. Eis os concorrentes
:
( ) "Tem que manter isso, viu?" (Temer, Michel)
Comentário de Romero Jucá: O presidente se referia aos resultados da dieta de seu interlocutor, que trocou a carne por robalo. Tanto que, em outro trecho, Temer enfatiza: "Você tá bem de corpo, não é Joesley?"

( ) "Tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação" (Neves, Aécio)
Comentário do Jucá: Aécio possui um bom humor do tamanho de seu caráter.

( ) "Na verdade eu sou muito agredido pelo negócio do helicóptero até hoje, sabe Aécio, eu não faço nada de errado, eu só trafico drogas" (Perrela, Zezé)
Comentário do Jucá: Conhecidos por sua natureza zombeteira, Aécio e Perrela ensaiavam uma esquete para o "Zorra Total".

( ) "Rapaz, eu vou comer duas véias" (Batista, Joesley)
Comentário do Jucá: Não recomendo o voto neste áudio. Afinal, como já disse, suruba é suruba. Não pode ser selecionada.

( ) "A Lava Jato não pode fazer o que está fazendo com o Rio" (Lula)
Comentário do Jucá: Grampeado por um microfone num palanque em Maricá, o ex-presidente mostrou grandeza ao esquecer as rusgas políticas e manifestar apoio ao Grande Acordo Nacional.
*
*Avisos importantes de última hora. O desembargador Hilton José Gomes de Queiroz determinou, por meio de uma liminar, que a lista com os cinco concorrentes mais votados deve ser enviada para o presidente Temer. Caberá a ele escolher o vencedor. Além disso, um novo adendo ao regulamento permite que Gilmar Mendes peça vista e suspenda o prêmio a qualquer momento.

O medo do nu


José Eduardo Agualusa

Há alguns anos, viajando na Malásia, reparei num cartoon publicado num jornal local. O primeiro quadrinho mostrava um grupo de navegadores europeus desembarcando das caravelas, há 500 anos, e protestando horrorizados contra a sem vergonhice dos indígenas que os acolhiam nus. O segundo quadrinho mostrava esses mesmos indígenas, 500 anos depois, vestidos dos pés à cabeça, e gritando muito zangados com duas ou três mulheres europeias, turistas, na praia, em topless.

Passei um ano em Berlim, na virada do século, com uma bolsa de criação literária. Muito próximo ao apartamento onde vivíamos, havia um parque bonito, muito verde, com um grande lago. Não sei como se chamava. Sempre lhe chamamos a Praia Verde. No verão, muito de vez em quando, fazia sol e o dia esquentava. Então largávamos o que quer que estivéssemos fazendo e descíamos até à Praia Verde. Nesses milagrosos instantes de luz, o extenso relvado enchia-se de gente. Eram famílias inteiras, avós, pais e crianças pequenas; jovens casais de namorados; doces velhinhas, que chegavam em passos minúsculos, por vezes em grupo, e nos ofereciam água e biscoitos; o senegalês que nos vendia fruta; o escritor romeno que vivia no andar de cima; os russos marombados que conhecíamos da academia. Todos eles nus.

Levei amigos brasileiros, de passagem por Berlim, a banharem-se no lago. Nos primeiros minutos estranhavam a nudez alheia. Alguns não escondiam o desconforto. Contudo, depressa se esqueciam. Vários terminavam despindo toda a roupa e curtindo o sol e a liberdade.

Volta e meia surge nas redes sociais uma fotografia de três jovens mulheres nuas, supostamente nalguma praia da antiga Alemanha Democrática. Uma delas tem grandes semelhanças com a chanceler alemã, Angela Merkel. A imagem costuma vir acompanhada de frases trocistas, de portugueses ou brasileiros, como se o fato de Merkel ter praticado nudismo, na adolescência e juventude, à semelhança de milhões de compatriotas seus, pudesse comprometer as suas qualidades humanas e de liderança política.

Creio que todos os meus leitores, de direita e de esquerda, concordarão comigo se disser que a maioria dos dirigentes alemães, já para não falar nos suecos ou dinamarqueses (povos que também apreciam conviver nus, nas praias e nas saunas), são, regra geral, infinitamente mais confiáveis do que os políticos brasileiros.

A nudez é uma manifestação de confiança. Confiança no outro e confiança em si mesmo. Quem está nu não tem onde esconder armas, nem dinheiro, nem gravadores. A minha confiança nos políticos aumentaria se estes começassem a se apresentar pelados em público. Os debates nas televisões não seriam um espetáculo bonito, bem sei, mas o país ganharia em transparência.

Nus, os políticos seriam forçados a pensar, a defender ideias, ao invés de simplesmente discursarem. Os que não se mostrassem capazes de pensar, e os canalhas explícitos, cujo pensamento assenta por inteiro no ódio e no rancor, esses ficariam então verdadeiramente nus.

No fundo, a gimnofobia de certos setores da sociedade brasileira, e de alguns dos seus políticos mais notórios, tem muito a ver com o pavor de que os outros os vejam como são.

Há alguns anos escrevi um conto baseado na história autêntica de um amigo meu, que certa madrugada se achou nu no corredor de um grande hotel londrino. Num acesso de sonambulismo ergueu-se a meio da noite, saiu para o corredor pelado e deitou-se numa poltrona. Acordou com a primeira luz da manhã. Aflito, tentou retornar ao quarto, mas a porta estava fechada. Então lembrou-se da avó. A avó desse meu amigo nasceu e cresceu numa pequena localidade do interior de Angola, sem luz elétrica. Ela achava que a luz artificial, nas grandes cidades, ao impedir-nos de ver as estrelas nos tornou demasiado arrogantes. Sob a luz das estrelas, confrontado com a vastidão do universo, o Homem compreende como é insignificante e passa a relativizar tudo. Tendo percebido a tremenda irrelevância do seu estado e condição, o meu amigo desceu para o hall, explicou o que lhe sucedera, e pediu uma cópia da chave do quarto. O recepcionista nem percebeu que ele estava nu. Viu apenas um homem digno, e deu-lhe a chave.

Também na Praia Verde, em Berlim, não havia pessoas nuas. Havia pessoas curtindo a natureza. O mesmo se pode dizer do ator Wagner Schwartz, interagindo com o público, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Era apenas um ator interagindo com o público.

Saber que esta polêmica tem lugar num país no qual, à semelhança da Malásia, as pessoas andavam nuas antes da chegada dos primeiros colonizadores, é muito irônico. Falta, talvez, descolonizar o Brasil.
O GLOBO

December 22, 2017

Governo propõe nova política sobre drogas sem legalização


Por

O ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, apresentou nesta terça-feira proposta de uma nova Política Nacional sobre Drogas para o país, com diretrizes expressas contra a legalização de qualquer substância ilícita, com foco na promoção da abstinência nos tratamentos e em favor de parcerias entre União e comunidades terapêuticas para acolhimento de dependentes. Uma cópia de projeto de resolução com as regras foi distribuída para debate no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), órgão composto pelo governo e sociedade civil que formula políticas públicas na área, do qual Terra é integrante.
 
O projeto de resolução apresentado por Terra vai na contramão do viés menos punitivo. Diz, por exemplo, que a “orientação central da política nacional sobre drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto a iniciativas de legalização das drogas”. Coloca como enfoque das ações de tratamento a “promoção da abstinência”, reposicionando a importância das medidas de “redução de danos”, que tem um lugar privilegiado na atual política.

O papel das comunidades terapêuticas é amplamente ressaltado no documento, sob o termo mais genérico de ‘organizações’ ou ‘entidades da sociedade civil’. A minuta de resolução aponta que a “União deve promover de forma contínua o fomento à rede de suporte social, composta por organizações da sociedade civil de prevenção, acolhimento e reinserção social”. Além disso, determina “imediata alteração do documentos legais da política nacional sobre drogas” para realinhá-los às novas diretrizes.

Após um ano e dois meses sem se reunir, o Conad fez um encontro para dar posse a novos integrantes e instituir a agenda futura de trabalhos. A proposta do ministro entrou na pauta de um grupo, formado entre os conselheiros, que ficou responsável por apresentar o cronograma do Conad para os próximos meses e os temas prioritários que serão tratados. Há uma preocupação do conselho em se antecipar a deliberações na área que podem ser feitas por parte do próprio governo e pelo Judiciário, sobretudo o Supremo Tribunal Federal (STF), que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio.

O procurador da República Domingos Silveira, representante do Ministério Público Federal no Conad, criticou o texto de resolução proposto. Para ele, vários trechos representam “a expressão do desejo de alguns”, numa referência indireta a Osmar Terra, de flexibilizar as exigências legais da política de drogas. Silveira ressaltou ainda que a minuta não menciona, entre várias normas norteadoras, a Lei 10.216/2001, que trata da reforma antimanicomial no país. Por outro lado, cita um projeto de lei que tramita no Senado para alterar questões relacionadas ao tratamento de dependentes.
— Estamos discutindo com base no marco legal que ainda não existe e virando as costas para o que existe. Pode se fazer esse debate na mesa de bar, na academia, mas não num órgão estatal. Debater com base nessa resolução é praticar uma ilegalidade — afirmou Silveira.

A conselheira Solange Moreira, que representa o Conselho Federal de Serviço Social no Conad, também reclamou do documento, observando que ele estava inclusive já numerado, como “Resolução Conad 1/2017”:
— É muito ruim chamar um grupo de trabalho e já vir com uma proposta praticamente pronta. Acho muito desagradável e autoritário, como é prática desse governo. Sinceramente, me sinto desrespeitada — alfinetou.

— Sempre que se vai debater, há uma proposta inicial, um papel que pode ser modificado. Onde está o desrespeito nisso? — retrucou Terra.

Em meio às discussões acaloradas, o secretário-executivo do Conad, Humberto Viana, que é secretário nacional antidrogas, cumpriu enfim seu papel de condutor da reunião, desempenhado até então por Osmar Terra. Embora seja apenas um dos conselheiros, o ministro se sentou na cabeceira da reunião e fez as vezes de moderador na maior parte do tempo. Mas Viana tomou a dianteira para apaziguar as discordâncias:
— Se o Conselho não se posicionar, outras instâncias farão. O Supremo já está definindo votos. O próprio Ministério da Saúde vai fazer — argumentou.

Antes de ficar definida a formação de um grupo que vai elaborar a pauta do Conad nos próximos meses, na qual pode entrar a proposta de resolução de Terra, muitas outras farpas deram o tom da reunião. Ficou explícita a divisão de duas correntes no conselho: defensores e detratores das comunidades terapêuticas no país – instituições em geral religiosas que oferecem internação a dependentes químicos – e dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que fazem tratamento em meio aberto e são parte do SUS.

O ministro Osmar Terra subiu o tom ao criticar órgãos e entidades que fiscalizam as comunidades terapêuticas, a exemplo de uma recente blitz organizada pelo Ministério Público Federal, Conselho Federal de Psicologia e Mecanismo de Prevenção à Tortura, que é ligado à Presidência da República.

— Elas não estão preocupadas com as propostas de políticas sobre drogas, estão preocupadas em atacar um setor que trabalha com o tratamento no Brasil. Não vejo elas preocupadas em investigar o fracasso dos Caps no Brasil, que resolvem muito pouco o problema.
Walmir Almeida, representante dos Conselhos Estaduais de Políticas sobre Drogas no Conad e que trabalha com comunidades terapêuticas, reforçou os ataques , dando como exemplo a exigência de camas feitas durante uma inspeção, que considerou inadequado ter beliches no estabelecimento, sem dar detalhes sobre quando e onde ocorreu a blitz.

— Eu propus até o uso de redes na Amazônia. Tem residente da Ilha do Marajó que não consegue dormir em cama, fica até com insônia. Aí chega uma comissão formada por OAB, MP e outros conselheiros com Exigências que nem estão na resolução da Anvisa — protestou Almeida.
Representante do Conselho Federal de Psicologia no Conad, Paulo Pessoa reagiu às queixas.

— Qual o estudo que revela que o Caps é um fracasso? Qual o estudo que revela que as comunidades terapêuticas funcionam? — questionou o conselheiro, antes de falar das inspeções em comunidades terapêuticas:

— É um show de horrores. Está constatado. Violência, violação de direitos humanos. E ainda por cima com base religiosa. Quando chegamos lá, Deus não está presente. Pelo contrário, está muito mais próximo do diabo. É uma hipocrisia falar em nome de Deus e praticar violência. Se a comunidade é perfeita, qual a indisposição com as inspeções?

O procurador Silveira, do MPF, também rebateu a provocação de Terra sobre uma suposta perseguição das fiscalizações:
— O MPF não está com os olhos postos somente nas comunidades terapêuticas, mas está com os olhos nas diversas políticas.

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Palavra de Especialistas


lona Sabó, Diretora Executiva Do Instituto Igarapé



A proposta é um passo para trás. Descarta estudos científicos e debates contemporâneos. Na esfera da saúde pública, poderíamos aproveitar o tema das drogas para investir em intervenções e tratamentos que aliviem o sofrimento dos pacientes. Contamos com conhecimento médico e experiências internacionais que mostram como estas técnicas são válidas.


A abstinência abordada pela nova proposta não deve ser encarada como uma única métrica para o tratamento do dependente químico. Trata-se de uma estratégia que não dialoga com sua recuperação e ignora a possibilidade de recaídas.



Também devemos acabar com a criminalização dos usuários. Eles não podem ser alvos da polícia, que tem outras prioridades. O país sequer conta com um critério objetivo que diferenciaria o usuário do traficante, como a quantidade de drogas cujo porte seria permitido. A indefinição deste debate, que está parado no STF, contribui para o aumento da população carcerária e a precariedade do sistema prisional.



Mais de 30 países acabaram com a criminalização da droga e não houve explosão no consumo. Pelo contrário: seu uso foi até reduzido entre os mais jovens.



Nenhum projeto pode se dar ao luxo de ser elaborado sem levar em conta os avanços registrados recentemente. O texto ignora o quanto o Brasil havia progredido nas discussões sobre as drogas.




Antônio Geraldo da Silva, Presidente Eleito Da Associação Psiquiátrica Da América Latina


Recebo a nova proposta do governo com surpresa e felicidade, porque há muito tempo era perceptível que a população deveria ser protegida do aumento do consumo do álcool e da droga. Hoje não há qualquer controle sobre o consumo dessas substâncias, mesmo entre menores de idade. Com a nova política, observamos uma vitória das comunidades terapêuticas médicas, que investem em infraestrutura e vigilância sanitária no atendimento a dependentes químicos. Não serão mais confundidas com serviços despreparados, que não contam com profissionais de saúde responsáveis.

   A população já manifestou que é contrária à legalização de drogas. Qualquer medida com este direcionamento só facilitará a disseminação de substâncias ilícitas. Não existem garantias de que a violência diminuiria. Provavelmente o tráfico manteria a força, porque venderia um produto livre de impostos e, por isso, mais barato para o consumidor. Há diversos exemplos de que liberar a maconha é uma iniciativa ineficaz — em todos os locais em que esta experiência foi realizada, a criminalidade aumentou.

O governo federal parece disposto a tentar, com as drogas, restrições severas como aquelas tomadas contra o cigarro. Foi uma medida muito bem sucedida: décadas atrás, quase metade da população fumava. Hoje, menos de 12% têm esse hábito.




Julita Lemgruber, Coordenadora Do Centro De Estudos E Segurança E Cidadania Da Universidade Candido Mendes


É um desastre que, em pleno século XXI, alguém defenda algo tão retrógrado quanto uma proposta de abstinência. Inúmeras pesquisas mostram que o uso desta estratégia para evitar o uso abusivo de drogas costuma fracassar. O governo brasileiro está fechando os olhos para conclusões de pesquisas exaustivas, assinadas inclusive por cientistas respeitados no país.

Lamento que um ministro de Desenvolvimento Social (Osmar Terra) esteja ditando as normas da política de drogas. Não é atribuição dele ou de sua pasta. Terra rotineiramente analisa estudos sob ângulos que lhe interessam para reforçar suas afirmações. Cita, por exemplo, uma pesquisa realizada em Porto Alegre, que mostra o envolvimento de pessoas que usaram maconha em acidentes de carro. Mas, por conveniência, ele ignora que a maior parte dos acidentes fatais ocorreu por outro motivo: as vítimas estavam embriagadas. O álcool era o verdadeiro culpado.


De fato, segundo levantamentos, a maioria da população brasileira é contrária às drogas. Mas este posicionamento tende a mudar conforme mais informações são disponibilizadas. Foi um processo que ocorreu em outros países, como os Estados Unidos. Aqui, muitos já sabem que a cannabis tem propriedades medicinas. Quanto mais temos acesso a esses dados, mais as pessoas percebem que proibir as drogas é uma insensatez.








 

December 20, 2017

BAIACU


Fred Coelho



Ainda bem jovem, formando as bases de leituras solitárias para além dos livros da escola ou do meu pai (que eram poucos, mas ótimos), os quadrinhos foram meus melhores companheiros. Lia de todos os tipos e gostos, mas principalmente os de heróis. Em meio a esse universo pré-adolescente, eu vejo na banca uma revista chamada “Chiclete com banana”. De forma talvez até precoce para o meu entendimento das coisas, mergulho em um mundo estranho e excitante. Os personagens de Angeli, seu criador, e as histórias de Laerte, um de seus parceiros, me deixavam sem rumo pela velocidade de referências, pelos comportamentos desregrados e, muitas vezes, pela estética que fazia pensar.

Desde então, Angeli e Laerte sempre foram vistos por mim como pensadores contemporâneos dos problemas brasileiros. Após suas revistas nos anos 1980 — Laerte publicou treze exemplares da não menos sensacional “Piratas do Tietê” —, eles viveram décadas no cotidiano das tiras em quadrinhos em jornais. Em um microespaço, bem antes da exiguidade eloquente do Twitter, davam recados absurdamente complexos e certeiros. Sempre foram políticos, principalmente quando eram esteticamente independentes. Quanto mais ousados em seus desenhos, mais revolucionários em suas ideias. Tornaram-se, ao menos do meu ponto de vista, criadores diários, ofício dificílimo, cujo fato de ontem precisa ser metabolizado na imagem e texto de hoje. Se Angeli sempre foi mais ligado em personagens desviantes que muitas vezes sintetizavam comportamentos urbanos geracionais, Laerte criou histórias antológicas que vão desde questões identitárias, como no clássico “A insustentável leveza do ser”, até uma vasta galeria de tipos ordinários — e alucinadamente reais — sejam eles gatos, síndicos ou deuses. Em maio do ano passado, Angeli abriu mão das tiras diárias da “Folha de S.Paulo” e diminuiu seu ritmo por questões pessoais. Já Laerte, além de ativista incansável, permanece publicando diariamente no jornal. 

A dupla lançou recentemente uma publicação chamada “Baiacu”. Com acabamento gráfico excelente e um coletivo de artistas gráficos, poetas e prosadores, o volume se desdobra em diversas camadas de relação entre palavra e imagem. Do mais tradicional quadrinho de tirinha até o mais elaborado trabalho gráfico, atravessar suas mais de 300 páginas é, de alguma forma, mergulhar em uma tormenta de referências e imagens. A vida brasileira contemporânea, em suas múltiplas formas e frentes, está ali. Não na obviedade de pautas, mas na profundidade do seu impacto nas pessoas que aqui vivem — e criam. Textos como os de Anna Claudia Magalhães, Daniel Galera e André Sant’Anna são histórias que encapsulam os dias tensos de 2017, cada qual em estilo bem distinto na abordagem de seus temas. 

O projeto é fruto de uma residência com os artistas envolvidos. Dez pessoas reunidas durante duas semanas na Casa do Sol, moradia de Hilda Hilst e onde hoje em dia funciona o instituto com seu nome. Posteriormente, juntaram-se escritores e poetas. Com Angeli e Laerte como idealizadores da empreitada, e a parceria da editora Todavia, a publicação precisa ser louvada pela sua força coletiva. Seu formato nos remete a algumas publicações dos anos 1970, como “Pólen”, em que a autoria compartilhada flui sem hierarquias entre os seus participantes. Em tempos atuais, empreitadas coletivas funcionam como um mosaico salutar de ideias em tempos que diálogos entre diferenças se tornam cada vez mais problemáticos. 

A presença do espaço da casa de Hilda, ou a presença da própria, é espraiada nos trabalhos de diferentes formas, perspectivas e abordagens. Do humor ácido às inseguranças pessoais, do corte biográfico exacerbado ao esvaziamento radical de personas artísticas, da tragédia brasileira aos abismos mundiais, das imagens da cultura pop local e internacional aos traços do abstrato e do absurdo, “Baiacu” surge como uma usina de ideias e vazios. São textos e imagens que transformam o quadrinho no Brasil — já tão sofisticado em sua versão de novelas gráficas de alta qualidade — em uma ação decisiva no cruzamento de fronteiras entre palavra e imagem. Mesmo que os quadrinhos já sejam formas centenárias dessa operação, “Baiacu” a leva um pouco além porque acumula densidades e aponta caminhos em profusão. Ao vermos o volume cuja capa traz um homem de terno com o rosto completamente enfaixado, abrimos suas páginas, e a alternância entre desenhos e textos faz os olhos fluírem em um curso intercalado de dispersão e concentração. Se sorrimos em alguns momentos, calamos fundo em outros. 

Não é por causa da “Baiacu”, em 2017, que carreiras longevas e consagradas como as de Angeli e Laerte devem ser valorizadas. A publicação atual, porém, mostra algo raro: os mestres convocando diversas gerações, lado a lado, para criarem algo novo. Como diz Laerte no editorial, experimentar um ritual do fazer junto. Instalar um projeto coletivo no mundo e respirar mais um pouco. Juntos.

O GLOBO, DEZEMBRO 2017


Quem são os vândalos do Maracanã




Cacá Diegues

Quem quiser que acredite na visão convencional de que o brasileiro é um povo ordeiro e pacífico, incapaz de qualquer violência. Essa fake news histórica está na maioria dos livros didáticos sobre nós mesmos e, ainda, em ensaios dignos de respeito pela assinatura de seus autores. Assim como nosso povo não é tão bonzinho assim, as elites do país não deixam também de ser, muitas vezes, assombrosamente injustas e selvagens.

Na História do Brasil, a reação das elites a movimentos de iniciativa popular nos ajuda a compreender como elas consideram quem afirmam representar. Peguem, por exemplo, sem ordem cronológica, Canudos, os Malês, as Revoltas da Vacina e da Chibata, a Guerra do Contestado, a Revolução de 32, os Mascates, Cabanagem, Balaiada, Palmares, a Revolução Federalista de 1894, os Farrapos, Confederação do Equador e muito mais (ufa!). Todas essas revoltas foram encerradas com muita cadeia, tortura e morte.

Os movimentos de alguma grandeza e importância, que não sofreram reação armada de quem estava no poder, foram aqueles em que as elites se entenderam muito bem entre elas mesmas, num acordo de cúpula em que as partes garantiram suas vantagens. Como a Independência (sob proteção da Inglaterra e aquiescência de Portugal) ou a República (proclamada pelos cafeicultores senhores de terras, irritados com a Abolição da Escravatura).

Nossa história é contada em séculos de conflitos sangrentos, resistências heroicas, lutas contra o trabalho escravo a serviço dos senhores das múltiplas riquezas do país. E com muita porrada das oligarquias que sempre mandaram, sobre aqueles que, em algum momento, se negaram a obedecer. Não é à toa que o Brasil foi o país ocidental que mais escravos importou da África negra, sendo o último a acabar formalmente com a escravidão.

Na minha modesta e inculta opinião, a revolta do povo rubro-negro, na noite da final contra o Independiente da Argentina, não foi uma simples reação ao empate do time e sua consequente perda da Copa Sul Americana. Tem mais do que futebol por trás disso.

Em primeiro lugar, chega de cinismo em relação à natureza dos descontentes. Eles não eram “vândalos” que nada tinham a ver com a torcida do Flamengo, como certos observadores tentam nos convencer. Eles eram, antes de tudo, torcedores do Flamengo. Segundo a empresa Maracanã S.A., que administra o estádio, cerca de oito mil pessoas entraram à força para ver o jogo sem pagar ingresso. Ora, qualquer grupo de vândalos com oito mil membros é capaz de fazer muito mais do que simplesmente acabar com um jogo de futebol. E ninguém garante que só esses oito mil é que fizeram arruaça.

Quem atuou antes e depois do jogo, na porta dos hotéis, nos portões do Maracanã, nas arquibancadas do estádio, foram mesmo alguns autênticos torcedores do Flamengo, uma parte da torcida insatisfeita com alguma coisa que, pela cronologia dos fatos, não pode ser apenas o infeliz empate no campo.

Antes da Copa do Mundo de 2014, todo mundo cabia no Maracanã. Quem não tinha dinheiro para comprar um ingresso na democrática arquibancada, ia para a bem-humorada geral que, como lembra o rubro-negro Leo Jaime em belo artigo no GLOBO, se divertia e divertia o público. Com a Copa no Brasil, a Fifa exigiu que o velho estádio fosse transformado em moderna arena. Mesmo que isso significasse uma diminuição de espaço e representasse, como é a lógica do comércio, uma subida geral nos preços, acompanhada do fim de “ingressos populares”.


Além de palco principal de nosso futebol, o Maraca sempre foi um monumento nacional. Transformá-lo em “arena” e “embelezá-lo” foi como se, da noite para o dia, o governo decidisse levar a estátua do Cristo para um morro mais baixinho que o Corcovado, por ela estar um pouco alta demais e ser mais elegante desse novo jeito. Hoje, depois de tanta esclarecedora Lava-Jato, podemos supor que as obras do Maracanã foram ditadas pelo interesse das empreiteiras, com o apoio de políticos beneficiados. E o povo não é cego, nem besta.

O “vandalismo” aconteceu no Rio de Janeiro, estado onde mais se achou desgoverno e corrupção nesses anos de passagem a limpo da política nacional. A selvageria daquela noite não era por ser a torcida do Flamengo; mas por ser a torcida mais popular do Brasil, aquela que estava dizendo não aguentar mais a selvageria que vem de cima, o exemplo do descalabro das elites que nos governam. E que tem consequências no comportamento da população.

Cabe à polícia impedir a desordem nas ruas, é esse o seu papel. Mas é preciso também dar-se um fim à desordem protegida pelo poder, o vandalismo das elites. Se o governante pratica conosco a barbárie do roubo, do desprezo às nossas necessidades, do desinteresse por nossa saúde, educação, segurança, por que não podemos responder com nossa própria barbárie, dizer a eles que, se é esta a regra, também sabemos praticá-la? Essa é uma escolha da população, só dela, diante de seu futuro.

O GLOBO, DEZEMBRO 2017 

December 18, 2017

Vemos a consolidação de uma mentalidade corrosiva sobre o ensino acadêmico e seu papel


Fred Coelho

 Para cada coluna, um motor. Nesta, o motor é a perplexidade. No período em que ocupo esse espaço, alguns assuntos passaram os dias escoando por um ralo inominável. Às vezes escrevemos sobre o que podemos, às vezes escrevemos movidos por raivas, quando um tema envenena nossos modos mínimos. E, no momento em que a condução coercitiva de reitores e vice-reitores, como ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais, não se torna assunto público de indignação, afundamos mais. Pequenas matérias e alguns comentaristas falaram rapidamente sobre o tema mas, se ampliarmos o cenário, vemos um retrato assustador para quem trabalha nas universidades do país.

Esse evento absurdo — pela forma como foi feita a condução dos professores — soma-se a muitos outros que envolvem o meio universitário e seus profissionais na função de seu ofício. Cada vez mais vemos professores e professoras sofrendo processos judiciais de diversas ordens: financeiros, morais, éticos, políticos, policiais. São ações que ampliam de forma veloz o péssimo lugar público que a profissão ocupa no imaginário contemporâneo brasileiro. A quem interessa isso?

A ideia da universidade enquanto “problema” do país está cada vez mais concentrada e materializada em ações de enfrentamento explícito. Ela se espraia em seu viés crítico liberal, muitas vezes, com apoio de editoriais em grandes jornais e revistas. Já em seu viés de redes e caixas de comentários, vemos a consolidação de uma mentalidade corrosiva sobre o ensino acadêmico e seu papel. De um lado, a crítica orçamentária, do outro, a crítica ideológica. Como muitos já escreveram com acuidade nesses últimos dias (a coluna de Lira Neto na “Folha” é exemplar nesse sentido), a insistência em colocar pesquisa, docência, trabalho administrativo, produção e inserção social via extensão (funções da universidade) numa única rubrica de gasto público é errônea. Pois também é sabido que o orçamento federal e seus grandes gastos apresentam outras prioridades que não ajudam necessariamente o contribuinte.

Aos poucos, perdemos o cerne da questão: o ensino é feito de forças que vão além do dinheiro e da ideologia. O que faz com que seus profissionais atuem diariamente em salas de aula é um compromisso vital com vidas alheias. Vejamos o que vem ocorrendo na Uerj e demais universidades do estado do Rio de Janeiro. Como ouvi na última semana de uma de suas grandes professoras, Ana Chiara (a quem, aliás, dedico esta coluna), elas não estão fechadas. Nem desistiram de existir. Elas estão é abandonadas pelo poder público em seu dever constitucional de zelar por seu funcionamento. E mesmo assim, mesmo sem salários, sem condições de saber seu futuro e ignorados pela população, seus profissionais seguem suas pesquisas na medida do possível. Seus alunos seguem buscando formas de permanecer vinculados à vida universitária. E isso ocorre porque não se faz isso exclusivamente por dinheiro ou obrigação. Se faz isso porque professores e alunos são comprometidos com seus ideais e com sua relação direta em salas de aulas e pesquisa. Aulas, para os que não lembram, são espaços abertos, coletivos, em que todos têm a palavra. Ali, docentes lidam diariamente com as angústias, os limites, as descobertas, as falhas, as dúvidas e as potências de diversas pessoas em suas lutas diárias. Fazem jus aos seus salários em dia, como qualquer trabalhador.

Por que não ligam para o que está acontecendo com a Uerj? Por que aquele que ensina pode ficar sem receber seu salário e outras categorias profissionais do estado recebem em dia? Por que a Polícia Federal pode conduzir coercitivamente reitores que estavam em suas residências, que tinham endereço profissional reconhecido, que eram atuantes na comunidade acadêmica? Por que acusar professores e professoras de doutrina ideológica ao expressarem opiniões em debates ou aulas? Por que ameaçaram fisicamente aqueles que debatem a questão de gênero em salas de aula? Em que isso vai melhorar o país? Não entendem que, mesmo em cursos de ciências exatas e profissões técnicas, a universidade não é um espaço de repetição da regra, e sim de invenção. Parece que o problema, porém, é que pensar, ponderar, escrever, debater, contradizer, criticar, investigar, são, talvez, ações cada vez menos valorizadas em nossa sociedade justicialista e simplificadora.

Vejam os atos que estão ocorrendo no país de forma diária. São muitos, e crescentes. Um reitor se suicidou em decorrência do açodamento da Justiça ao decretar penas e condenações. Pessoas estão invadindo salas por discordarem dos temas de seminários e aulas. Universidades recebem e-mails com ameaças explícitas de morte contra seus profissionais. No mesmo momento, o governo federal divulga um relatório “especializado” para repetir sem parar que uma universidade pública custa caro. Neste cenário truculento e difamador de docentes e abandono de universidades estaduais, tal sinalização oficial confirma que muita coisa ainda vai piorar. Por gerações.

 O GLOBO, DEZEMBRO 2017

December 16, 2017

Estudos de gênero se tornam alvo de protestos de grupos conservadores



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Três casos recentes deixaram a Universidade Federal da Bahia (UFBA) em alerta. Primeiro, a segurança teve que ser acionada para garantir a defesa de uma dissertação de mestrado após ameaças anônimas. O tema do estudo era educação infantil e sexualidade. Depois, um projeto colaborativo de pesquisa sofreu ataques em sua página na internet. A ideia era reunir propostas para políticas de gênero. Por último, uma professora recebeu ameaças de morte em seu email após se manifestar sobre a educação de meninos e meninas. Ela fazia um paralelo entre brincadeiras da infância e desigualdades no mercado de trabalho.

“Há um cerceamento de todo um campo de produção do conhecimento científico”, advertiu a UFBA numa moção de repúdio divulgada no mês passado. Redigido pelo conselho da instituição, o texto lamentava os ataques de que estudos sobre gênero, diversidade e feminismo têm sido alvo. Como precaução, a universidade está mantendo sob sigilo a identidade da professora ameaçada de morte enquanto reúne provas para fazer a denúncia formal à polícia (por enquanto, não se sabe quem está por trás das ameaças, já que os agressores se escondem por trás de identidades virtuais).
Segundo Maíra Kubik Mano, professora do departamento de Gênero e Feminismo da UFBA, a ameaça não foi vista exatamente como uma “surpresa”.

— Os ânimos estão acirrados há algum tempo — ela diz. — Temos visto diversas tentativas de cerceamento das liberdades dentro da universidade e na sociedade em geral, denúncias contra professores e seus temas de pesquisa, projetos de lei inconstitucionais que buscam controlar e direcionar o que é discutido em sala de aula, condução coercitiva de reitores etc. Mas chegar a uma ameaça de morte parece o extremo deste tensionamento.

A situação vivida na UFBA não é isolada do restante do país. Os casos ocorridos na universidade são apenas alguns exemplos de conflitos envolvendo os estudos de gênero. O campo de estudo parece estar no centro de uma guerra cultural travada no Brasil, como se viu nas polêmicas em torno da última visita de Judith Butler, uma das principais teóricas do feminismo contemporâneo e da teoria queer. Uma petição com 360 mil assinaturas exigiu, sem sucesso, o cancelamento de uma palestra da filósofa americana no Sesc Pompeia, em novembro. Com cartazes denunciando a “ideologia homossexual” e a “destruição das famílias”, grupos protestaram em frente à instituição no dia do evento e até queimaram um boneco representando Judith.

— Inicialmente, os estudos de gênero eram vistos como de segunda categoria dentro da universidade, e antigamente se sofria pressões dos próprios colegas — lembra Eder Fernandes, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). — Com muito esforço, esse campo acabou ganhando relevância ao longo dos anos. Atualmente, contudo, a perseguição vem principalmente de grupos conservadores e fundamentalistas.

Fernandes já foi, ele próprio, alvo de protestos. Em 2014, respondeu a uma sindicância na UFF após uma aluna se revoltar com uma de suas aulas sobre sexualidade, e a uma tentativa de instauração de inquérito pelo Ministério Público Federal que não foi adiante.

— A ofensiva que invade as esferas de liberdade de cátedra deixa os pesquisadores acuados. Individualmente, leva muitas pessoas a abandonarem as pesquisa e, institucionalmente, há uma dificuldade em relação a garantir financiamento — afirma.

Professora do curso de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), a filósofa Marcia Tiburi conta que seus alunos de mestrado e doutorado, muitos deles professores em escolas e universidades, têm relatado casos de coerção com uma frequência cada vez maior.
— Alguns foram orientados a não falar mais em gênero em suas aulas — lamenta Marcia.

Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-Uerj), Verônica Toste diz que há uma “atmosfera de perseguição e criminalização do trabalho”:

— Nós nos sentimos afetados e com medo. E o caso dos nossos colegas professores do ensino escolar é ainda mais grave. Aparecem iniciativas como sites para que pais e alunos reportem denúncias à “doutrinação de gênero” que esses profissionais supostamente estariam fazendo. Assim, a desconfiança se instala na sala de aula.

A mobilização “antigênero” no Brasil é ampla, e inclui outros grupos políticos e religiosos. Em páginas do Facebook, movimentos como Direita São Paulo, Garotas de Direita, Instituto Plínio Corrêa de Oliveira e Juntos pelo Brasil capitaneiam atos em repúdio ao que entendem por “ideologia de gênero”. Com slogans como “Deixem as nossas crianças em paz” e “Menino nasce menino e menina nasce menina”, eles alertam que esses estudos estariam confundindo os mais jovens.
— A ideologia de gênero defende a separação entre a biologia e a psicologia — diz Daniel Martins, coordenador de campanhas do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira.

Associação criada para mobilizar a sociedade civil e preservar “a civilização cristã”, o instituto participou dos protestos contra Judith Butler.

— Aos poucos, vai-se gerando um caos mental, fazendo as pessoas perderem a distinção entre o bem e o mal, entre homem e mulher, entre esquerda e direita — observa Martins.

Para Martins, a reação dos grupos conservadores mostra um “Brasil real, que foi esquecido pelos governos”.
— Temos contato com a população e sabemos que a grande maioria do Brasil não aceita a teoria de gênero — diz. — Não somos contra o estudo nas universidades, mas contra a ditadura que existe nas universidades. Pedimos mais abertura para discordar. Hoje, qualquer um que se levante contra a teoria de gênero é tratado como homofóbico.

Fundador e coordenador do Escola Sem Partido, Miguel Nagib diz que o movimento defende “liberdade absoluta” para a pesquisa de gênero nas universidades, mas critica o que chama de “engenharia social” nas escolas. Para ele, essa é uma “temática complexa” para a educação infantil e o ensino fundamental.
— Quando a temática é levada a essa faixa de idade, isso não é ciência, é lavagem cerebral — opina Nagib.

Para ele, as teorias de gênero não podem ser apresentadas como “verdade absoluta”.
— Nossa proposta apenas estabelece que este tema deve ser abordado de maneira científica, ouvindo opiniões em um sentido e no outro, não apenas apresentando a teoria de gênero como verdade absoluta — diz. — Trata-se de uma teoria controvertida no campo da ciência. Muita gente séria diz que as premissas são furadas

Pesquisadores, no entantom apontam uma tentativa de deslegitimar o debate científico sobre gênero.
— Estudar cientificamente gênero significa olhar os diferentes tipos de família e o desejo sem preconceitos e pré-julgamentos — defende Verônica Toste.

As ameaças e os cerceamentos acabaram gerando reações contrárias à desejada por aqueles que não querem o debate.

— Estamos fazendo um curso de introdução ao pensamento de Judith Butler e no primeiro dia vieram 150 pessoas. Jamais teríamos esse número se não fosse o que ocorreu em São Paulo — conta Leandro Colling, um dos criadores e coordenadores do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade, da UFBA. — Os eventos só crescem. A terceira edição do nosso seminário “Desfazendo gênero”, que ocorreu neste ano, reuniu duas mil pessoas de todo o Brasil. Antes, nossos eventos sobre diversidade recebiam 300 pessoas, agora nenhum atrai menos de mil.

December 15, 2017

Militares respondem por quase metade do déficit da previdência



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Os militares respondem por quase metade do déficit da previdência da União. Cálculos feitos pelo ex-secretário da previdência e consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados Leonardo Rolim mostram que, em 2015, o déficit dos militares era de R$ 32,5 bilhões, ou 44,8% do rombo de R$ 72,5 bilhões da previdência da União, enquanto o déficit dos civis era de R$ 40 bilhões. O número de militares no país — na ativa, na reserva e já reformados — é de 662 mil ou 43% do total de 1,536 milhão de servidores.

 As contas de Rolim consideram como aposentados os militares que estão na reserva e os reformados. Os militares, no entanto, só incluem pensionistas e reformados no cálculo pois argumentam que quem está na reserva pode ser chamado para trabalhar.

Pelas projeções, o déficit dos militares aumentará lentamente ao longo das próximas décadas, até 2090, enquanto o dos civis crescerá fortemente nos próximos anos mas, a partir de 2040, começará a cair. O desempenho é reflexo das mudanças que já foram feitas nas regras de aposentadorias para servidores civis: aqueles que entraram depois de 2003 não se aposentam mais com 100% do salário final — mas com 80% da média dos últimos dez anos — e os servidores também têm idade mínima de aposentadoria, de 55 anos (mulheres) e 60 anos (homens).

Já os militares viram acabar a pensão para as filhas solteiras — no caso dos que ingressaram na carreira após 2001 — mas não têm idade mínima de aposentadoria e vão para a reserva com 30 anos de contribuição. Além disso, a contribuição previdenciária dos militares é de apenas 7,5% do salário bruto, contra 11% dos civis.

— Os militares se aposentam pelo salário final e, em alguns casos, ainda ganham uma patente quando vão para a reserva. Com isso, o inativo militar ganha muito mais do que aquele na ativa. Isso torna a previdência dos militares uma bomba — afirma Leonardo Rolim.

Há várias questões em jogo: a necessidade de preparo físico é uma explicação, na visão dos militares, para não concordarem com a exigência de uma idade mínima. Outro aspecto é o salário menor que o de outras carreiras públicas. E os números comprovam isso: a média é de R$ 6.056, enquanto no Executivo é de R$ 8.401; no Legislativo, de R$ 18.991; e no Judiciário, de R$ 19.101.

MAIS PATENTES PARA ALONGAR

Já na reserva, o fuzileiro naval Moisés Queiroz diz reconhecer a gravidade da situação da previdência e se mostra aberto a possíveis mudanças, como o aumento da alíquota de contribuição para a previdência, de 7,5% para 11%. Mas é contra o aumento da idade mínima para aposentadoria. Hoje com 52 anos, foi para a reserva assim que completou 30 anos de serviço e trabalha como consultor.

Ele lembra, no entanto, que, mesmo na reserva, o militar pode ser convocado a trabalhar, como ocorreu recentemente na Olimpíada. E argumenta que o militar não pode trabalhar por mais tempo porque dele é exigido um preparo físico que se torna mais difícil de ser mantido depois desses 30 anos.

— É difícil falar sobre o que não se sabe direito que pode ocorrer, mas é preciso um tratamento diferente para quem não é igual. Os 30 anos de serviço do militar correspondem a 45 anos de serviço dos demais, se somados todos os períodos a mais que trabalhamos — diz Queiroz.

Para o professor da Universidade Candido Mendes e especialista em previdência Paulo Tafner, no entanto, o argumento do preparo físico não pode ser usado. Ele reconhece que um sargento não pode ter a mesma função física que tinha aos 30 anos, por exemplo, mas que é possível se manter ativo em outras atividades, como treinamento e coordenação. Por isso, destaca a importância de mudanças na carreira militar para permitir que eles trabalhem por mais tempo.

— A carreira dos militares vem de um período em que havia muitas guerras e as pessoas morriam cedo. É preciso ter um entendimento de que é necessário ficar mais tempo na ativa. Por isso, é preciso mudar a carreira militar — afirma Tafner, que sugere, por exemplo, a inclusão de uma ou duas patentes, de maneira a permitir o alongamento da carreira militar.


December 13, 2017

Espantando a miséria


Luiz Antonio Simas

Meu avô era um pernambucano sem papas na língua. O velho tinha uma tirada clássica para responder aos que desciam o malho em um costume que a minha família sempre cultivou; o de festejar qualquer coisa nas situações mais complicadas. Bastava surgir alguém reclamando da irresponsabilidade de se fazer a festa sem razão aparente e ele mandava na lata: “A gente aqui não faz festa porque a vida é boa, mas porque tá tudo uma porcaria”.

Na onda do meu velho, o sambista Laudemir Casemiro, mais conhecido nas quebradas do Rato Molhado, da Vila Isabel e da Serrinha como Beto Sem Braço, é autor de uma sentença definitiva; um aforismo cheio dos borogodós e profundamente carioca sobre o mesmo tema: o que espanta a miséria é festa. Matutando sobre as frases, concluo que a festa foi de fato a maneira mais potente que a turma da banda de cá encontrou para estar no mundo e driblar os perrengues cotidianos. Ritualizamos em folguedos e festejos diversos, nascimentos, espantos da fé, amenidades corriqueiras, carnavais, conquistas, desacertos, amores e perdas.

Não custa recordar que, ao longo dos tempos, o poder instituído no Brasil articulou ações em relação às ditas “classes perigosas” (expressão comum em arquivos policiais da Primeira República) a partir de uma lógica de controle social fundamentada em estratégias de disciplina dos corpos, com inúmeras variantes: corpos amansados pela catequese, pelo trabalho bruto, pela chibata, e pelo confinamento em espaços precários; entre porões, senzalas, canaviais, linhas de montagem e cadeias.

O fim da escravidão exigiu redefinições nas estratégias de controle dos corpos e coincidiu com a montagem de projetos modernizadores que buscaram estabelecer, a partir da segunda metade do século XIX, caminhos de inserção do Brasil entre os povos ditos civilizados. Ao lado do controle dos corpos, vigorou a desqualificação completa das camadas subalternizadas como agentes incessantes de invenção de modos de vida. A ordem no terreiro carioca era criminalizar os batuques, sambas, macumbas, capoeiras, carnavais e demais elementos lúdicos do cotidiano dos pretos e pobres (penso no jogo do bicho, reprimido por ser, no início do século XX, uma loteria dos mais humildes). Tudo, enfim, que resistisse ao confinamento dos corpos deveria se escafeder em nome da nostalgia de uma Europa que nunca fomos.

A prevenção contra os perigosos manifestou-se também no campo do discurso em que atua a História como espaço de produção de conhecimento. Apenas elementos externos aos subalternizados — a ciência, o cristianismo, o consumo de bens, a escola ocidental etc. — poderiam inseri-los precariamente, e ainda como subalternos, naquilo que imaginamos ser a trajetória da Humanidade. As festas — penso especialmente nos furdunços de rua — nadam contra esta corrente. Elas legitimam-se muitas vezes como terreiros de produção de conhecimentos não normativos, viabilizando modos de vida e estratégias de sobrevivência surpreendentes. Zabumbar no fio da navalha, no meio da tempestade, foi a saída mais potente para se driblar a tormenta da noite grande. A cultura do samba veio de um aparente paradoxo: não se samba porque a vida é mole; mas porque é dura pra dedéu.

Cada um que elabore os sentidos que forem convenientes para as festas. A ideia de felicidade sempre me pareceu conformista. Minha onda, por isso mesmo, é a de mandar a felicidade para a casa do chapéu e desejar, dando nó no rabo da tirana, que a cidade batuque cada vez mais alto, dispute cada vez mais as esquinas, encante cada vez mais os espaços com os clarins da banda, o bumbo do Zé Pereira, os fogos da alvorada de São Jorge, os doces de Cosme e Damião, os cantos de torcida, as palmas do partido alto, as rimas do rap, a flauta no choro, o chora cavaco e os saravás de Ogunhê. O sarapatel carioca é feito de uma receita apimentada.

Nós estamos em um momento especialmente propenso ao sucesso dos que desqualificam e demonizam o hábito de festejar e praticar as ruas. Artimanhas do demônio, coisa de gentinha, herança maldita ou sintoma de alienação, a festa — e não o evento meramente mercantil — é vista como acintosa em um contexto que parece mais propício às imolações raivosas no chão especulado e esvaziado de sentido. A terra destroçada necessita das giras de reencanto. A disputa está aberta e eu tenho lado: jogo no time do Beto Sem Braço, do meu avô, dos caciques, bolas e bafos. É no arrepiado das arrelias e na plenitude dos corpos em transe de liberdade que o mais subversivo dos enigmas há de nos salvar de todas as misérias: a capacidade criadora de alegria nos infernos.

December 3, 2017

‘Bombshell’ Tells the Amazing Story of Hedy Lamarr, the Star and Inventor


  • By Manohla Dargis, www.nytimes.com
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    “Any girl can be glamorous,” the actress Hedy Lamarr once said. “All you have to do is stand still and look stupid.” It’s a withering observation, especially for a Hollywood star once known as “the most beautiful woman in the world.” Beauty brought Lamarr fame, at least until everything fell spectacularly apart; as with too many actresses, beauty was also her gilded cage. The new documentary “Bombshell: The Hedy Lamarr Story” shows how hard and how long she struggled to escape it — including through her invention in the 1940s of a groundbreaking communication system that underlies modern encryption.

    The story of that invention has been told before though it’s curiously missing from Lamarr’s contribution to a dubious 1966 memoir, “Ecstasy and Me: My Life as a Woman,” which, bizarrely, includes an introduction by a shrink. (She unsuccessfully tried to stop its publication.) The title refers to the 1933 film that set her on the path toward scandal and stardom. Directed by Gustav Machaty, “Ecstasy” involves a young woman’s sexual desire and disappointment, and remains best known for the sight of its teenage Viennese star — then called Hedy Kiesler — frolicking naked and, more notoriously, feigning orgasm. (Machaty apparently jabbed her with a pin to achieve the desired writhing.)

    By 1938, Hedy Kiesler had been renamed Hedy Lamarr, and she was under contract to Metro-Goldwyn-Mayer and starring alongside Charles Boyer in the romantic thriller “Algiers.” It was Boyer’s show; Lamarr was a side dish. In his review of the film, the critic Otis Ferguson all but shrugged her off as “the girl,” while movie magazine writers slobbered over her looks. “No more beautiful woman,” one columnist gushed, “has ever stormed the doors of moviedom than Hedy, grey-eyed, raven-haired Viennese known as the ‘Ecstasy Girl.’” Four years later, Lamarr was still battling such typecasting blather, despite having patented a secret communications system called frequency hopping.

    Directed by Alexandra Dean, “Bombshell” is a very enjoyable addition to what has become a minor Hedy Lamarr industry that includes documentaries, books and stage productions. Like some of these other accounts, this documentary traces the arcs of Lamarr’s personal and professional lives, which by turns harmoniously converged and wildly veered in opposite directions. Whatever happened, it was rarely dull. The daughter of assimilated Jews, she married a munitions magnate who came with a castle and did business with Mussolini. When she decided to ditch her husband, she staged (or so she claimed) an escape that turned her into the heroine of her own thrilling adventure.

    Lamarr’s subsequent tenure in Hollywood comes across as tame by comparison. There were tasty and dreary roles, missed opportunities and heartbreak. She married again (and then four more times) and raised a few children, one of whom she treated unspeakably. She also tinkered and she invented. At home, Lamarr had what her biographer Richard Rhodes, one of the movie’s on-camera experts, describes as an inventing table. Howard Hughes gave her a small version of this setup, Mr. Rhodes explains, that was kept in the trailer she used while shooting films. Hughes also lent her a few of his chemists for one of her projects; for her part, Lamarr counseled him on a plane design.
    Ms. Dean relates Lamarr’s ventures, those onscreen and off, with savvy and narrative snap, fluidly marshaling a mix of original interviews and archival material that includes film clips, home movies and other footage. Ms. Dean’s most valuable resource, though, are Lamarr’s taped interviews with Fleming Meeks, a journalist. In a 1990 Forbes article, he helped refurbish her legend by recounting how some 50 years earlier Lamarr — who wanted to contribute to the war effort — created a communication system with her friend, the composer George Antheil. What she was after was a radio-controlled torpedo that couldn’t be jammed. Her solution: randomly switched frequencies.

    By the time Mr. Meeks wrote about Lamarr, she was in her 70s and no longer of use to Hollywood. That part of her story is bleakly familiar; it’s a sad, maddening movie-industry refrain, especially for older actresses. Another hurdle, as “Bombshell” makes clear, is that a female performer who subverted expectations — who was smart and not just lovely — wasn’t welcome in the world. Some of the period coverage of Lamarr’s invention attests to this. “It does seem incredible that anyone as beautiful and as fragile-looking as the luscious Hedy could be mechanically minded,” one 1942 magazine story trumpeted, adding that “she can sing, has a flare for designing and interior decorating.”

    Over Lamarr’s lifetime, the brilliance of her discovery was overshadowed by the spectacle of failure as her stardom gave way to forgettable roles, misfires, catastrophes and more scandal. “Bombshell” sympathetically tracks her downward spiral without reducing her to the sum of her misfortunes. That’s a relief and seems right given how tough and proud Lamarr can sound in the interviews. Back in 1942, in that breathless story about her invention, Lamarr insisted that she hadn’t changed. “I’ve always been as I am today,” she said. “If I am a ‘new Hedy’ as some say, it is because they are seeing me as I really am, not looking at the outside of me.” History finally figured out that she was right.