December 18, 2017

Vemos a consolidação de uma mentalidade corrosiva sobre o ensino acadêmico e seu papel


Fred Coelho

 Para cada coluna, um motor. Nesta, o motor é a perplexidade. No período em que ocupo esse espaço, alguns assuntos passaram os dias escoando por um ralo inominável. Às vezes escrevemos sobre o que podemos, às vezes escrevemos movidos por raivas, quando um tema envenena nossos modos mínimos. E, no momento em que a condução coercitiva de reitores e vice-reitores, como ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais, não se torna assunto público de indignação, afundamos mais. Pequenas matérias e alguns comentaristas falaram rapidamente sobre o tema mas, se ampliarmos o cenário, vemos um retrato assustador para quem trabalha nas universidades do país.

Esse evento absurdo — pela forma como foi feita a condução dos professores — soma-se a muitos outros que envolvem o meio universitário e seus profissionais na função de seu ofício. Cada vez mais vemos professores e professoras sofrendo processos judiciais de diversas ordens: financeiros, morais, éticos, políticos, policiais. São ações que ampliam de forma veloz o péssimo lugar público que a profissão ocupa no imaginário contemporâneo brasileiro. A quem interessa isso?

A ideia da universidade enquanto “problema” do país está cada vez mais concentrada e materializada em ações de enfrentamento explícito. Ela se espraia em seu viés crítico liberal, muitas vezes, com apoio de editoriais em grandes jornais e revistas. Já em seu viés de redes e caixas de comentários, vemos a consolidação de uma mentalidade corrosiva sobre o ensino acadêmico e seu papel. De um lado, a crítica orçamentária, do outro, a crítica ideológica. Como muitos já escreveram com acuidade nesses últimos dias (a coluna de Lira Neto na “Folha” é exemplar nesse sentido), a insistência em colocar pesquisa, docência, trabalho administrativo, produção e inserção social via extensão (funções da universidade) numa única rubrica de gasto público é errônea. Pois também é sabido que o orçamento federal e seus grandes gastos apresentam outras prioridades que não ajudam necessariamente o contribuinte.

Aos poucos, perdemos o cerne da questão: o ensino é feito de forças que vão além do dinheiro e da ideologia. O que faz com que seus profissionais atuem diariamente em salas de aula é um compromisso vital com vidas alheias. Vejamos o que vem ocorrendo na Uerj e demais universidades do estado do Rio de Janeiro. Como ouvi na última semana de uma de suas grandes professoras, Ana Chiara (a quem, aliás, dedico esta coluna), elas não estão fechadas. Nem desistiram de existir. Elas estão é abandonadas pelo poder público em seu dever constitucional de zelar por seu funcionamento. E mesmo assim, mesmo sem salários, sem condições de saber seu futuro e ignorados pela população, seus profissionais seguem suas pesquisas na medida do possível. Seus alunos seguem buscando formas de permanecer vinculados à vida universitária. E isso ocorre porque não se faz isso exclusivamente por dinheiro ou obrigação. Se faz isso porque professores e alunos são comprometidos com seus ideais e com sua relação direta em salas de aulas e pesquisa. Aulas, para os que não lembram, são espaços abertos, coletivos, em que todos têm a palavra. Ali, docentes lidam diariamente com as angústias, os limites, as descobertas, as falhas, as dúvidas e as potências de diversas pessoas em suas lutas diárias. Fazem jus aos seus salários em dia, como qualquer trabalhador.

Por que não ligam para o que está acontecendo com a Uerj? Por que aquele que ensina pode ficar sem receber seu salário e outras categorias profissionais do estado recebem em dia? Por que a Polícia Federal pode conduzir coercitivamente reitores que estavam em suas residências, que tinham endereço profissional reconhecido, que eram atuantes na comunidade acadêmica? Por que acusar professores e professoras de doutrina ideológica ao expressarem opiniões em debates ou aulas? Por que ameaçaram fisicamente aqueles que debatem a questão de gênero em salas de aula? Em que isso vai melhorar o país? Não entendem que, mesmo em cursos de ciências exatas e profissões técnicas, a universidade não é um espaço de repetição da regra, e sim de invenção. Parece que o problema, porém, é que pensar, ponderar, escrever, debater, contradizer, criticar, investigar, são, talvez, ações cada vez menos valorizadas em nossa sociedade justicialista e simplificadora.

Vejam os atos que estão ocorrendo no país de forma diária. São muitos, e crescentes. Um reitor se suicidou em decorrência do açodamento da Justiça ao decretar penas e condenações. Pessoas estão invadindo salas por discordarem dos temas de seminários e aulas. Universidades recebem e-mails com ameaças explícitas de morte contra seus profissionais. No mesmo momento, o governo federal divulga um relatório “especializado” para repetir sem parar que uma universidade pública custa caro. Neste cenário truculento e difamador de docentes e abandono de universidades estaduais, tal sinalização oficial confirma que muita coisa ainda vai piorar. Por gerações.

 O GLOBO, DEZEMBRO 2017

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