December 16, 2017

Estudos de gênero se tornam alvo de protestos de grupos conservadores



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Três casos recentes deixaram a Universidade Federal da Bahia (UFBA) em alerta. Primeiro, a segurança teve que ser acionada para garantir a defesa de uma dissertação de mestrado após ameaças anônimas. O tema do estudo era educação infantil e sexualidade. Depois, um projeto colaborativo de pesquisa sofreu ataques em sua página na internet. A ideia era reunir propostas para políticas de gênero. Por último, uma professora recebeu ameaças de morte em seu email após se manifestar sobre a educação de meninos e meninas. Ela fazia um paralelo entre brincadeiras da infância e desigualdades no mercado de trabalho.

“Há um cerceamento de todo um campo de produção do conhecimento científico”, advertiu a UFBA numa moção de repúdio divulgada no mês passado. Redigido pelo conselho da instituição, o texto lamentava os ataques de que estudos sobre gênero, diversidade e feminismo têm sido alvo. Como precaução, a universidade está mantendo sob sigilo a identidade da professora ameaçada de morte enquanto reúne provas para fazer a denúncia formal à polícia (por enquanto, não se sabe quem está por trás das ameaças, já que os agressores se escondem por trás de identidades virtuais).
Segundo Maíra Kubik Mano, professora do departamento de Gênero e Feminismo da UFBA, a ameaça não foi vista exatamente como uma “surpresa”.

— Os ânimos estão acirrados há algum tempo — ela diz. — Temos visto diversas tentativas de cerceamento das liberdades dentro da universidade e na sociedade em geral, denúncias contra professores e seus temas de pesquisa, projetos de lei inconstitucionais que buscam controlar e direcionar o que é discutido em sala de aula, condução coercitiva de reitores etc. Mas chegar a uma ameaça de morte parece o extremo deste tensionamento.

A situação vivida na UFBA não é isolada do restante do país. Os casos ocorridos na universidade são apenas alguns exemplos de conflitos envolvendo os estudos de gênero. O campo de estudo parece estar no centro de uma guerra cultural travada no Brasil, como se viu nas polêmicas em torno da última visita de Judith Butler, uma das principais teóricas do feminismo contemporâneo e da teoria queer. Uma petição com 360 mil assinaturas exigiu, sem sucesso, o cancelamento de uma palestra da filósofa americana no Sesc Pompeia, em novembro. Com cartazes denunciando a “ideologia homossexual” e a “destruição das famílias”, grupos protestaram em frente à instituição no dia do evento e até queimaram um boneco representando Judith.

— Inicialmente, os estudos de gênero eram vistos como de segunda categoria dentro da universidade, e antigamente se sofria pressões dos próprios colegas — lembra Eder Fernandes, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). — Com muito esforço, esse campo acabou ganhando relevância ao longo dos anos. Atualmente, contudo, a perseguição vem principalmente de grupos conservadores e fundamentalistas.

Fernandes já foi, ele próprio, alvo de protestos. Em 2014, respondeu a uma sindicância na UFF após uma aluna se revoltar com uma de suas aulas sobre sexualidade, e a uma tentativa de instauração de inquérito pelo Ministério Público Federal que não foi adiante.

— A ofensiva que invade as esferas de liberdade de cátedra deixa os pesquisadores acuados. Individualmente, leva muitas pessoas a abandonarem as pesquisa e, institucionalmente, há uma dificuldade em relação a garantir financiamento — afirma.

Professora do curso de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), a filósofa Marcia Tiburi conta que seus alunos de mestrado e doutorado, muitos deles professores em escolas e universidades, têm relatado casos de coerção com uma frequência cada vez maior.
— Alguns foram orientados a não falar mais em gênero em suas aulas — lamenta Marcia.

Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-Uerj), Verônica Toste diz que há uma “atmosfera de perseguição e criminalização do trabalho”:

— Nós nos sentimos afetados e com medo. E o caso dos nossos colegas professores do ensino escolar é ainda mais grave. Aparecem iniciativas como sites para que pais e alunos reportem denúncias à “doutrinação de gênero” que esses profissionais supostamente estariam fazendo. Assim, a desconfiança se instala na sala de aula.

A mobilização “antigênero” no Brasil é ampla, e inclui outros grupos políticos e religiosos. Em páginas do Facebook, movimentos como Direita São Paulo, Garotas de Direita, Instituto Plínio Corrêa de Oliveira e Juntos pelo Brasil capitaneiam atos em repúdio ao que entendem por “ideologia de gênero”. Com slogans como “Deixem as nossas crianças em paz” e “Menino nasce menino e menina nasce menina”, eles alertam que esses estudos estariam confundindo os mais jovens.
— A ideologia de gênero defende a separação entre a biologia e a psicologia — diz Daniel Martins, coordenador de campanhas do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira.

Associação criada para mobilizar a sociedade civil e preservar “a civilização cristã”, o instituto participou dos protestos contra Judith Butler.

— Aos poucos, vai-se gerando um caos mental, fazendo as pessoas perderem a distinção entre o bem e o mal, entre homem e mulher, entre esquerda e direita — observa Martins.

Para Martins, a reação dos grupos conservadores mostra um “Brasil real, que foi esquecido pelos governos”.
— Temos contato com a população e sabemos que a grande maioria do Brasil não aceita a teoria de gênero — diz. — Não somos contra o estudo nas universidades, mas contra a ditadura que existe nas universidades. Pedimos mais abertura para discordar. Hoje, qualquer um que se levante contra a teoria de gênero é tratado como homofóbico.

Fundador e coordenador do Escola Sem Partido, Miguel Nagib diz que o movimento defende “liberdade absoluta” para a pesquisa de gênero nas universidades, mas critica o que chama de “engenharia social” nas escolas. Para ele, essa é uma “temática complexa” para a educação infantil e o ensino fundamental.
— Quando a temática é levada a essa faixa de idade, isso não é ciência, é lavagem cerebral — opina Nagib.

Para ele, as teorias de gênero não podem ser apresentadas como “verdade absoluta”.
— Nossa proposta apenas estabelece que este tema deve ser abordado de maneira científica, ouvindo opiniões em um sentido e no outro, não apenas apresentando a teoria de gênero como verdade absoluta — diz. — Trata-se de uma teoria controvertida no campo da ciência. Muita gente séria diz que as premissas são furadas

Pesquisadores, no entantom apontam uma tentativa de deslegitimar o debate científico sobre gênero.
— Estudar cientificamente gênero significa olhar os diferentes tipos de família e o desejo sem preconceitos e pré-julgamentos — defende Verônica Toste.

As ameaças e os cerceamentos acabaram gerando reações contrárias à desejada por aqueles que não querem o debate.

— Estamos fazendo um curso de introdução ao pensamento de Judith Butler e no primeiro dia vieram 150 pessoas. Jamais teríamos esse número se não fosse o que ocorreu em São Paulo — conta Leandro Colling, um dos criadores e coordenadores do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade, da UFBA. — Os eventos só crescem. A terceira edição do nosso seminário “Desfazendo gênero”, que ocorreu neste ano, reuniu duas mil pessoas de todo o Brasil. Antes, nossos eventos sobre diversidade recebiam 300 pessoas, agora nenhum atrai menos de mil.

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