Mônica Bergamo
O desentendimento entre um casal de professores universitários e um
agrônomo em Perdizes que sempre se deram bem vai parar na delegacia.
Motivo: os dois votam no PT. E ele tem aversão ao PT
Walquíria Leão Rego tem 70 anos e mora há três décadas no mesmo
edifício, numa rua pacata do bairro de Perdizes. A socióloga, que dá
aulas de teoria da cidadania na Unicamp, vive no 4º andar e sempre se
deu bem com seus vizinhos de baixo: o engenheiro agrônomo José Luiz
Garcia, 67, a mulher dele, Marília, e a filha do casal, Ana Luisa. A
jovem já deu aulas de inglês para Walquíria. A professora recebeu
Marília para comer bolo e tomar chá.
Walquíria já foi filiada ao PT. Hoje é "o que se pode chamar de eleitora
fiel". O vizinho nunca gostou da legenda. Mas a diferença não era um
problema. "Jamais nos desrespeitaram", diz ela.
O clima de boa vizinhança começou a mudar há cerca de um ano, na época
das eleições. Walquíria e o marido, Rubem Leão do Rego, colocaram um
adesivo de Dilma no carro, um New Fiesta vermelho. Garcia, que guarda o
automóvel na garagem justamente ao lado, colocou o seu: "Fora, Dilma. E
leva o PT junto". "Esse adesivo já é um sinal de selvageria. Achei
sintomático", diz ela.
Dilma foi reeleita e o ambiente no prédio de Perdizes azedou de vez. O
engenheiro, inconformado com o resultado das eleições, que acredita
terem sido fraudadas, começou a escrever dizeres contra o PT em cartazes
do elevador. Um deles, da Sabesp, alertava sobre a falta de água: "A
seca resiste". Garcia escreveu: "O PT também". No dia seguinte, o troco
de um morador: "Desinformado".
"Então escrevi: 'Lava Jato', diz o engenheiro. "Aí eles ficaram loucos",
segue, referindo-se ao casal petista. Repreendido pela síndica, Garcia
desistiu do elevador. "Criei um jornalzinho. Todos os dias eu escrevia
notícias numa folha de papel: 'José Dirceu, herói do PT, preso pela
segunda vez', 'Lula, lobista dos empreiteiros'. Eles [os vizinhos]
tinham que ler. Foram ficando tiriricas. Mas não podiam dizer nada
porque o papel estava colado dentro do meu carro."
A tensão foi aumentando. Em 8 de março, dia do primeiro panelaço contra
Dilma, o engenheiro "não se contentou em bater panelas", diz Walquíria.
"Ele passou minutos gritando, num grau de agressividade, de ódio:
'Petistas filhos da puta, ladrões, corruptos'", conta Walquíria. "O que
eu fiz foi gritar como todo mundo", diz Garcia.
Em 16 de agosto, o engenheiro estava com febre e não foi à passeata
contra o governo na avenida Paulista. Viu tudo pela TV e só saiu de casa
para comprar remédio. Voltou da farmácia "com aquela adrenalina", diz.
"E entrei no prédio gritando: 'Fora PT! Fora PT!'." O elevador abriu e
dele saiu Rubem, que disse: "O senhor me respeite". Garcia diz que
respondeu: "Respeito é para quem merece. O PT não merece".
Walquíria diz que ele, na verdade, gritava: "Eu não respeito petista
ladrão, corrupto, filho da puta". "Meu marido ficou lívido", afirma.
Há duas semanas, a filha dela, Daniela, foi visitar os pais e se
encontrou com Garcia na garagem do prédio. "Ela tem muito medo dele. E
ficou olhando na tentativa de prever algum gesto. Ele vira e diz: 'O que
está olhando, sua filha da puta?'. E mostra o dedo [médio] para ela. A
Daniela pega o celular, anda na direção dele e diz: 'Faz de novo que eu
quero te fotografar!'. Ele dá ré com o carro, ela tem que recuar."
A briga foi parar na delegacia. Daniela prestou queixa dizendo que teve
que "se deslocar para uma pilastra para evitar que José Luiz a
atropelasse". No fim do depoimento, um investigador, Arnaldo, se
aproximou. Armado, disse: "Vocês vão me desculpar. Mas o PT é mesmo o
partido mais corrupto da República". Walquíria reagiu: "O senhor é um
agente do Estado". E ele: "E qual é o problema de eu achar que a Dilma é
uma filha da puta?".
Garcia também foi ao 23º DP, no mesmo dia que Daniela, para dar a sua
versão dos fatos. E diz que o casal agora vai ter que provar as
acusações que fez. "Disseram até que eu quis matar a filha deles. Pegam
um 'negocinho' e transformam num 'negocião'. É o modus operandi do PT."
Ele mostra à coluna um vídeo com imagens da garagem e afirma que não
colocou a vida de Daniela em risco.
Relatado em blogs, o desentendimento despertou solidariedade de
professores e até do Ministério do Desenvolvimento Social ao casal
–Walquíria é autora de um livro sobre o impacto do Bolsa Família na vida
das mulheres que recebem o benefício.
"Ele não sabe nada de nossas vidas. Nunca se preocupou em saber por que
votamos no PT, por que 54 milhões de pessoas votam no partido", diz
Walquíria, que afirma se identificar com o projeto social da legenda, de
redução das desigualdades. "Na cabeça dele, as pessoas são ignorantes
ou ladras e por isso votam no PT."
"Quando um vizinho defende um governo cleptocrata e fobiocrata, ou ele
faz parte da cleptocracia ou ele é um idiota total", diz Garcia. "Não
tem acordo. Eu vou passar por ele todos os dias e dizer: 'Bom dia, seu
petista'?. Acabou o diálogo. Não temos outra opção, não temos como
reagir. A maioria silenciosa não aguenta mais. Só que agora não é mais
silenciosa."
Ele acredita que a Operação Lava Jato deveria convencer qualquer eleitor
a não votar mais no PT. "Eu digo, poxa, será que isso não é suficiente?
São evidências, gente. Não são invencionices do [juiz Sergio] Moro. Se o
cara não se convenceu até agora, fica difícil. Aí eu já questiono o
discernimento dele."
O engenheiro diz que leu na internet a repercussão da briga que
protagoniza. "Dizem que é preciso dar um basta [no ódio político]. Eu
concordo. Agora, para que seja dado um basta, eles precisam parar de
roubar, né?"
Ele se formou em agronomia pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do RJ)
e depois estudou nos EUA. Hoje, dá consultorias e cuida de terras que
tem em Minas Gerais. Defende a agricultura orgânica. Diz que foi de
esquerda na juventude.
"Se depois da queda do Muro de Berlim o cara não se dá conta de que o
esquerdismo é uma coisa furada, é burrice. Usar camiseta do Che Guevara,
você vai me desculpar! Com todos os livros mostrando que ele era um
assassino sanguinário?"
Acredita, no entanto, que a esquerda está mais forte do que nunca.
"Falam de recrudescimento da direita. Mas o que está havendo é um
recrudescimento do socialismo, com a China rivalizando, a Rússia. E na
América Latina tem esse pessoalzinho da Bolívia, da Venezuela."
Para ele, o Brasil não teve uma ditadura entre 1964 e 1985, e sim um
"governo militar". "Nós aqui tivemos uma ditadura tropical. Tinha até
Congresso e partido político. A ditadura brasileira avacalhou." Não
defende, no entanto, a volta dos militares. "Mesmo porque eles acabaram.
Agora são um bando comandado por um devasso, o Jaques Wagner [ministro
da Defesa, de saída do cargo]. Na internet tem até fotografia dele em
baile de Carnaval com duas mulheres se beijando. Isso pra mim é
devassidão."
Ele viu a imagem de Wagner na internet. "Ela [a web] possibilitou que as
pessoas se informassem. Hoje você tem 'zilhões' de informações para
processar. Você vê as coisas acontecendo na televisão, na internet. É
evidente que isso aí gera reação."
"Essa raiva... Raiva, não, indignação.... Como é que você separa
indignação de raiva? Aí vamos entrar numa questão de semântica", diz ele
para explicar o que sente.
A "raiva" surgiu com o mensalão. "Ali foi o começo." Antes disso, já era
um crítico do programa Bolsa Família. "Você já viajou pelo Brasil? Você
não arruma ninguém mais para trabalhar. Ninguém quer pegar no pesado.
Essa não é a receita para um país que quer se desenvolver –criar essa
legião de pessoas que têm aversão ao trabalho. O Brasil está
ingovernável, numa situação pré-falimentar", diz ele, encerrando a
entrevista e pedindo para não ser fotografado.
Entusiasta do Bolsa Família, a professora Walquíria credita à imprensa o
fenômeno do que chama de "ódio político". "Este foi o clima que a mídia
criou no país."
Ela diz que, por isso, agora vive com medo do vizinho. "Eu não sei o que
uma pessoa com esse grau de ódio político é capaz de fazer", afirma.
Há dez dias, a professora voltou ao 23º DP com o advogado Marco Aurélio
de Carvalho e o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) para pedir investigação
criminal. O policial que xingou Dilma Rousseff foi chamado por seus
chefes e obrigado a se desculpar.
Já o engenheiro Garcia permanece convicto de que suas atitudes foram
corretas. "Se eles querem que eu peça desculpas, eles não vão conseguir.
Eu não sou culpado. Eu jamais vou pedir desculpas, entendeu? Jamais.
FOLHA DE SÃO PAULO, 4 DE OUTUBRO DE 2015