October 14, 2015

Cabelo loiro não pode!


Às vezes, juntar coisas como elas aparecem na superfície é um bom mapa para entender forças que atravessam uma questão

Imagine, caro leitor, viver num lugar onde seu filho fosse proibido de pintar o próprio cabelo de loiro. Imagine que essa proibição, ao ser transgredida, pudesse levá-lo a sanções que incluem a possibilidade de morte. Não estamos falando de ficção despótica. Isso acontece hoje, perto de nossos olhos. E tem profunda relação conosco.

Em recentes conversas com jovens de algumas comunidades da periferia do Rio de Janeiro, ao perguntarmos sobre sua percepção da violência em seu entorno, a resposta imediata era de que havia pouca violência. Entretanto, numa pergunta posterior as respostas foram intrigantes: “Aqui pode tudo, só não pode pintar o cabelo de loiro, o pessoal que trabalha tomando conta não deixa.” E uma outra: “Teve um dia em que apareceu um corpo de um moleque todo cortado ali no campinho de futebol, mas isso faz tempo, e o cara tinha aprontado”. A ideia de violência estava totalmente descolada dos acontecimentos que descreviam e ligada à presença ou ausência de tiroteios e furtos. Ao mesmo tempo, numa outra ponta, não é preciso abordar ninguém numa pesquisa com rigor teórico ou em entrevistas documentais para escutar narrativas de senso comum de quem frequenta regiões nobres sobre o tema. Basta acompanhar as redes sociais que flagramos depoimentos carregados de certeza dizendo que o Rio está muito violento com flechas apontadas para culpados decretados: “São esses moleques que não querem nada da vida, sabem muito bem o caminho certo mas não querem”.

Essas duas pontas da mesma questão são pistas para a compreensão de como estamos elegendo a juventude pobre como o perigo da vida urbana. Generalizando, ao depositar nela a responsabilidade de todos os acontecimentos no imaginário e ausentando do debate a negação de direitos sofrida por eles. Esse modo de narrar é difundido por parte da opinião pública. Ao se apostar na espetacularização de determinados eventos que envolvem essa juventude — chamar pequenos furtos de arrastão, por exemplo — cria-se uma vertigem semanal que injeta mais combustível na escolha desses jovens como foco do problema e promove pouca compreensão para um possível pacto de ações que poderiam mudar o rumo dos acontecimentos. E ainda: Quando os jornais estampam na manchete on-line ou impressa “jovens de classe média presos por tráfico de drogas”, ao dar uma notícia sobre jovens brancos, e “traficantes são mortos ao reagirem a prisão”, ao falar de jovens negros envolvidos com o mesmo tipo de atividade, que ao serem presos correm risco de execução longe de qualquer legalidade, está contribuindo para esse imaginário que destina a um determinado CEP da cidade a falta de direitos, a ausência de legalidade, a exclusão e a morte. E mais: ao deixar de noticiar boas práticas de trabalho neste campo nos noticiários, deixa crer que não era um parceiro real pelas mudanças sociais.

O leitor pode dizer que exagero, juntando coisas distintas, e de graus de relevância completamente diferentes. Mas, às vezes, juntar coisas como elas aparecem na superfície é um bom mapa para entender forças que atravessam uma questão. O que quero na coluna de hoje é demonstrar a atual escalada da perigosa escolha do jovem pobre e negro como inimigo número um da vida urbana. Da milícia que proíbe pintar o cabelo ao aparato policial que é mobilizado para ser um seletor de frequência de uma região da cidade até a naturalização com as repetitivas notícias sobre a presença de adolescentes no tráfico de drogas, teimamos em deixar de ver as causas, naturalizamos e aceitamos apenas uma resposta militar para isso.

Isso não significa que nada foi feito. Tivemos avanços nos últimos anos, narrados por esta coluna, inclusive. Políticas públicas, iniciativas e projetos da sociedade civil que apostaram no reconhecimento e fomento das práticas desta juventude e na sua potência de invenção criadora alcançaram espaços importantes. Sobretudo, a cultura, a comunicação, o empreendedorismo, o ativismo, trabalhos de base comunitária e de presença da arte em escolas promoveram bons exemplos com resultados. Todavia, os bons exemplos não são mais suficientes para a dimensão da questão. Precisamos de algo que gere impacto e não apenas resultados. Isso deve ser guiado e articulado pelos governos sem interrupção por conta de fim de mandatos. Porém, devemos nos concentrar num pacto público — não é apenas tarefa dos governos — que coloque como eixo central do desenvolvimento das cidades a garantia de direitos para essa juventude. Deve ser ousado, inclusive, considerando a possibilidade de perdão para aqueles jovens envolvidos em pequenos furtos — sem risco de morte — e a aposta em seus potenciais.

Os jovens populares já deram muitas contribuições para nossas cidades. A cultura juvenil urbana e popular já inventou soluções urbanas (mototáxis) e novos campos da arte (passinho do menor). Não podemos desistir de retribuir e ofertar caminhos de garantia de direitos. Não podemos aceitar a generalização, ela é a base para perversidades de controle territorial. Longe de você?

MARCUS FAUSTINI

O Globo, 14 de outubro de 2015 

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