April 12, 2024

Às Favas a Democracia

 

Para bilionários como Musk, o único valor é a liberdade dos poderosos

Sérgio Amadeu da Silveira 

Elon Musk comprou o ­Twitter, um dos primeiros ­microblogs, por dois motivos. O primeiro é que seu grupo empresarial não possuía nenhuma rede social de escala mundial para acompanhar a conversão das Big Techs nos gigantescos trustes do século XXI, isto é, em agrupamentos com grande poder econômico que atuam em diversos ramos da economia de forma cada vez mais coordenada. Na corrida espacial e na busca por contratos da Nasa, a Amazon tornou-se a grande concorrente de Musk. Seu adversário, Jeff Bezos, dono da Amazon, construiu um truste que atua no comércio eletrônico e a venda de hardwares e dispositivos conhecidos como assistentes virtuais ao domínio de 40% do mercado mundial de ­nuvem. ­Bezos apostou em outro tipo de rede social, ao adquirir a GoodReads, lançar o Amazon Prime na área de entretenimento, a plataforma de streaming ­Twitch e consolidar o trabalho precarizado a partir do Mechanical Turk, entre dezenas de outros empreendimentos. Faltava a Musk uma rede social mais robusta.


A Microsoft comprou o LinkedIn, o Grupo Alphabet possui redes descomunais como o YouTube, e o Grupo ­Meta controla o Facebook, o Instagram e o cliente de mensagens instantâneas WhatsApp. Curiosamente, no ano passado, o bilionário Musk irritou-se com Mark Zuckerberg, criador e controlador do Grupo Meta, promovendo uma cena digna de pré-primário ou de filmes que cultuam a doutrina do “macho alfa”. Musk desafiou Zuckerberg para uma luta no estilo jaula do Ultimate ­Fighting Championship (UFC). Disse que daria porradas em seu concorrente, para delírio dos bolsonaristas e recalcados em geral. Musk é uma figura que cultua valores da extrema-direita norte-americana.

 O segundo motivo é poder interferir no
debate político de modo mais permanen-
te e efetivo. Para isso, retirou o Twitter da
Bolsa de Valores e fechou seu capital. Tor-
nou-se, assim, seu único controlador. Mu-
dou inúmeras regras do antigo Twitter e
até mudou o nome do microblog para “X”.
Musk trouxe para a plataforma a sua con-
cepção de liberdade, ou melhor, a visão
que a extrema-direita norte-americana
tem da liberdade. Por isso, enfrenta as de-
cisões do Judiciário brasileiro. Liberdade
para Musk deve ser entendida como o po-
der de cada um fazer absolutamente o que
puder e quiser. Desse modo, os poderosos
e ricos podem agir até o limite de seu po-
der ou de seu capital. Nesse sentido, liber-
dade e poder são noções que se confun-
dem no ideário da extrema-direita.

Um dos antigos sócios de Musk no
PayPal, o investidor do Vale do Silício
Peter Thiel, em um evento promovido
pelo Cato Unbound, em abril de 2009,
afirmou: “Já não acredito que a liberda-
de e a democracia sejam compatíveis”. A
extrema-direita pensa a democracia co-
mo um freio ou bloqueio à liberdade. Co-
mo bem descreveu o filósofo libertário
Nick Land, a democracia é um vetor, um
sentido que exige ou depende do respeito
ao Estado e às maiorias. Isso incomoda
Musk e seus amigos bilionários. Por isso,
desgostam das regras democráticas, pois
preferem ter um poder ilimitado. Os neo-
liberais começaram a aderir a esse pen-
samento reacionário que se alia e se mis-
tura aos primados neofascistas.

 
Musk não quer aplicar nossa legisla-
ção que proíbe o discurso de ódio e men-
sagens falsas que podem colocar em ris-
co a saúde da população no Twitter. De-
sinformar é sinônimo de liberdade de ex-
pressão para o dono do X. Essa doutrina
é adequada à estratégia da extrema-di-
reita mundial, que se baseia na dissemi-
nação da desinformação para formar o
caos informacional e anular a importân-
cia dos fatos analisados racionalmente.

 
O novo populismo de extrema-direita,
que prefiro nomear de neofascismo, bus-
ca, com a disseminação da desinforma-
ção, criar o caos informacional, uma si-
tuação em que não é possível confiar em
mais nada. Tudo deve estar sob suspei-
ção, principalmente as instituições im-
prescindíveis para a democracia. Apos-
tam tudo na disseminação dos valores

reacionários e das ideias de um passado
que nunca existiu, mas que acreditam ter
sido muito melhor para as classes domi-
nantes da sociedade.

 
Há um grande fortalecimento da extre-
ma-direita entre os empresários e investi-
dores do Vale do Silício. Estão preocupa-
dos em manter seu status quo e lutam com
todos os meios possíveis para manter suas
empresas desregulamentadas ou sob re-
gras mais suaves. Os dirigentes do Vale do
Silício eram conhecidos por seus vínculos
com os Democratas, mas esse cenário mu-
dou. Figuras como o CEO da Oracle, Larry
Ellison, um dos maiores financiadores
políticos da extrema-direita norte-ame-
ricana, não estão mais em franca minoria.
Musk, Thiel e até mesmo o ex-simpatizan-
te da esquerda Marc Andreessen, funda-
dor do Netscape, estão juntos na jorna-
da dos libertários contra a democracia.

 
Aregulamentação das platafor-
mas é urgente. A liberdade não
pode ser confundida com po-
der econômico. Se as regras
de respeito à liberdade de ex-
pressão das Constituições de-
mocráticas, se a proteção dos direitos e ga-
rantias individuais não forem aplicadas
pelas plataformas, quais preceitos, man-
damentos e determinações elas deverão
seguir? As regras e os interesses de Musk,
Thiel e outros líderes da extrema-direita?

 
Não existe convivência social, nem mes-
mo nas redes de relacionamento social,
sem regras. Os sistemas algorítmicos que
organizam os conteúdos que vemos, lemos
e ouvimos nas redes são definidos pelas
plataformas. Nada pode ser feito dentro
do X, do Facebook ou do YouTube sem que
essas plataformas concordem. As plata-
formas têm um verdadeiro moderador das
condutas sociais. Esse poder precisa estar
submetido às democracias. Sem isso, te-
remos apenas o totalitarismo digital que
Zuboff nomeou de instrumentarismo. 

 

CARTA CAPITAL 

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