April 14, 2024

Agora Ziraldo tornou-se imortal

 

 

Você pode não gostar das pernas do Garrincha, dos edifícios do Niemeyer, da prosa de Guimarães Rosa, do cinema de Glauber Rocha, do pensamento de Celso Furtado, ou dos traços do Ziraldo. Mas nunca poderá dizer que viu algo semelhante.

Não se trata apenas de afirmar que se trata de “gênios”, lugar-comum movediço utilizado para classificar o inclassificável. Melhor seria tentar entender a originalidade de talentos que ganharam o grande público mais ou menos no mesmo período histórico, ali ao redor dos anos 1960, quando o Brasil aparecia como singularidade histórica, no auge do nacional-desenvolvimentismo.

Com todas as amarras de uma econo-
mia que preservava marcas do período
colonial, o País era, entre todos os da pe-
riferia, o que parecia levar mais longe –
ainda que aos trancos e barrancos – um
projeto de desenvolvimento viável.
“Sem ter feito 30 anos ainda, eu estava
vivendo dentro da redação de uma gran-
de revista nacional, no meio do Brasil,
no centro dos acontecimentos, os anos
mais fascinantes da história da cultura
brasileira, onde tudo era novo, o cinema,
a bossa da música, o teatro nas praças,
o pensamento, a esperança, as palavras.

O Pererê nasceu no meio dessa euforia”,
escreveu Ziraldo há 50 anos.
Morto aos 91 anos, no sábado 7, o pro-
vinciano de Caratinga que literalmen-
te ganhou o mundo era tudo, menos sau-
dosista. Aliás, era quase tudo: cartunis-
ta, quadrinhista, chargista político, ilus-
trador, designer, editor, jornalista, escri-
tor, dramaturgo, roteirista, publicitário,
locutor, jurado de televisão e – ufa! – ator.
Sim, ator: procure no YouTube Es-
se Mundo É Meu (1964), filme de Sérgio
Ricardo, no qual nosso herói faz um im-
provável papel de padre. E ainda se gaba-
va de cantar boleros com a competência
de um Gregório Barrios.

 
Ziraldo criou a primeira série de qua-
drinhos do mundo a ter como protago-
nistas um menino negro com deficiên-
cia – o Saci – e um membro dos povos ori-
ginários – Tininim, num tempo em que
tais coisas não eram valorizadas. Era a
Turma do Pererê, que mesmo publicada 

 sparsamente nos últimos 65 anos, não
tem comparação à altura. No mundo.
Os personagens centrais e suas namo-
radas – Boneca de Pixe e Tuiuiú –, con-
viviam com a onça (Galileu), o macaco
(Allan), o jabuti (Moacir), o tatu (Pedro
Vieira) e um coelho estranhamente ver-
melho (Geraldinho) – tudo supervisio-
nado por Mamãe Docelina. Os nomes to-
dos vinham de amigos de infância. Entre
1959 e 1964, o gibi vendeu como água. Saiu
de circulação no mesmo mês do golpe.

 
O Pererê é uma espécie de fase “ci-
nema novo” de Ziraldo. Ali ele inven-
tou seu modo de narrar quadrinhos,
com sequências cinematográficas, cor-
tes abruptos, diálogos em ricochete, ao
mesmo tempo que moldava uma sínte-
se visual que amadureceria plenamente
duas décadas depois. Foi um desenho que
bebeu nas fontes do humor gráfico euro-
peu do pós-Guerra – calcado em Sempè,
André François e Saul Steinberg – e se
consolidou com influências de Portinari,
Di Cavalcanti e Aldemir Martins.

 
Para além da estética, o Pererê ex-
pressava o ocaso do Brasil rural e a emer-
gência de uma sociedade que aspirava a
modernidade urbana. O País realizava,
naquele momento, a transição demográ-
fica e, nas páginas do gibi, os problemas
sociais eram mostrados sem cacoetes aca-
dêmicos, por meio de infindáveis peripé-
cias num incerto ponto do “Brasil central”,
defendendo seu modo de ser, sua flores-
ta e recebendo novidades como a televi-
são, a luz elétrica e modismos litorâneos.

 
Ziraldo foi também o mais popular
autor de livros infantis brasileiros das
últimas quatro décadas. Sua estreia se
deu com Flicts (1969), ousadia gráfica
não figurativa, produzida em três dias e
que mudou a percepção do que seria a li-
teratura para crianças – até então mar-
cada por personagens fofinhos e cheios
de lições de moral. Flicts é pura ideia,

 conceito que puxa pela sensibilidade de
quem o lê. Segue a ser reeditada, mais de
meio século depois.

 
O seu O Menino Maluquinho (1979) já
passa de 4 milhões de exemplares vendi-
dos, sendo convertido para teatro e cine-
ma, além de gerar uma série de outros pro-
dutos. No lugar da turma do interior de 20
anos antes, temos o garoto urbano a con-
viver com o divórcio dos pais e dilemas da
passagem do tempo. São dois Brasis e dois
alter egos de um autor que sempre buscou
públicos amplos. Ziraldo era uma espécie
de antibolha. Talvez seja esse o motivo por
nunca ter se dado bem na internet.

 
Durante a ditadura, Ziraldo colocou-se
claramente como um homem de esquerda.
Nunca chegou a ter uma militância parti-
dária, mas aproximou-se do PCB, nos anos
1970-80, tendo atuação marcante na luta
pela democracia, em especial nas campa-
nhas da Anistia (1979) e das Diretas (1984).

Um dos mais bem pagos artistas gráfi-
cos do País, desenhou incontáveis carta-
zes, ilustrações e logotipos para entida-
des populares, sem cobrar um tostão. Foi
um dos pilares do Pasquim (1969-1991),
em sua fase áurea, quando vendia mais
de 100 mil exemplares por semana, es-
cala astronômica para um jornal quase
de fundo de quintal, que o levou à cadeia
por três vezes no auge dos anos mais du-
ros do regime.

 
O pai do Pererê foi candidato a uma ca-
deira na Academia Brasileira de Letras,
em 2008. Não chegou lá. O escritor e
membro da ABL Zuenir Ventura declarou
no início da semana: “Ziraldo será o único
brasileiro de sua geração a continuar sen-
do lido no ano 3000”. Pois é. O filho mais
ilustre de Caratinga (MG) jamais preci-
sou de fardão para se tornar imortal. 

CARTA CAPITAL

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