January 17, 2024

Inimigo X

 

 
EIS O PROBLEMA: O BOLSONARISMO
CONTINUA A SER O SUJEITO
INDETERMINADO DA TRAMOIA GOLPISTA
 p o r C L Á U D I O C O U T O *
 
E difícil afirmar cate-
goricamente agora,
mas o dia 8 de janei-
ro de 2023 pode ter
sido o fechamento de
um ciclo iniciado em
junho de 2013, quan-
do as jornadas de protesto começaram
a tomar as ruas País afora, com a direi-
ta saindo do armário e sua franja extre-
mista emergindo do esgoto. Franja esta,
aliás, muito maior do que se poderia ima-
ginar até então.
 
O possível fechamento de ciclo não
concerne, contudo, ao fim da presença
da extrema-direita na política brasileira,
mas ao ponto culminante de sua emer-
gência, quando o autoritarismo, a intole-
rância e a virulência extremistas toma-
ram corpo da forma mais palpável.
 
A comemoração de um ano da inten-
tona bolsonaresca é muito reveladora
do significado que esse episódio tem em
nosso presente e pode vir a ter futura-
mente. Lembrando que o significado de
“comemorar” não se restringe a “feste-
jar”, como no uso mais habitual do ter-
mo. “Comemorar” quer dizer “memorar
junto”, recordar coletivamente. A impor-
tância de nos lembrarmos juntos de algo
transcende a ideia de festejo e, por vezes,
tem a ver justamente com o oposto dis-
so: lembrarmo-nos de algo para lamen-
tar, frequentemente para evitar que tal
coisa se repita. Eis o sentido de memo-
riais e museus de genocídios e da resis-
tência a ditaduras.
 
A comemoração do último dia 8 foi
muito reveladora do que a intentona
ainda representa: pelos presentes e au-
sentes, pelo que foi e pelo que não foi di-
to. Falou-se na necessidade de superar a
polarização, de buscar a união do País,
de assegurar a democracia como o único
jogo político possível. Cabe questionar:
de que polarização se trata? Que divisão
é essa que flagela o País? Quem se colo-
ca contra a democracia?
 
A maioria das intervenções da soleni-
dade falhou em sanar tais dúvidas, pois
elas tinham um sujeito indeterminado
– o bolsonarismo –, cuja nomeação per-
mitiria respostas claras. Com exceção do
presidente da República, nenhum dos de-
mais oradores chamou a coisa pelo nome.
E há razões para isso, elas próprias indi-
cadoras do problema que precisa ser su-
perado para que o 8 de Janeiro efetiva-
mente se encerre.
 
Ao mesmo tempo que perpetrou as
barbaridades na Praça dos Três Pode-
res, o bolsonarismo segue como partíci-
pe regular do jogo político brasileiro: dá
as caras em bancadas legislativas, em go-
vernos estaduais e municipais, integran-
do partidos, disputando eleições, sem que
precise se disfarçar. Ora, se atua como
ator legítimo no palco democrático, de
que maneira o nominar como aquilo que
a própria democracia deve combater em
sua defesa? Eis por que ministros do STF,
o procurador-geral da República e a go-
vernadora que representou seus pares ali
presentes não puderam dizer claramen-
te de quem falavam. Se o fizessem, o ato
cívico de rememoração do 8 de Janeiro
seria tachado de evento partidário. Pior,
atores de quem se exigem posturas isen-
tas (como juízes e promotores) seriam
acusados de partidarismo. E, com isso,
eles é que perderiam a sua legitimidade.
 
Trata-se de uma cilada, do mesmo ti-
po que Bolsonaro, na Presidência, utili-
zou para enredar o Judiciário: transgri-
de, gera reação judicial, ataca o Judiciá-
rio pela reação, o Judiciário defende-se
do ataque, acusa o Judiciário de partida-
rismo por se opor a ele. O incrementa-
lismo e a dissimulação desse tipo de so-
lapamento da democracia permitem ao
sujeito autoritário apresentar-se como
se fosse apenas mais um partícipe legí-
timo da democracia que ele mesmo ata-
ca. Assim, a defesa da democracia contra
seus assaltos é denunciada por ele como
uma tentativa antidemocrática de repri-
mi-lo. Insidioso.
 
A polarização extremada e assimé-
trica que vivenciamos não se encerrará
enquanto houver sujeito indetermina-
do, mas vociferante e ativo, perseveran-
do no assalto à democracia e ao mesmo
tempo dela se valendo para dissimular o
ataque. É kafkiana a necessidade de se fa-
lar o tempo todo contra a ameaça à demo-
cracia sem, contudo, poder nominá-la.
Até que seja possível, o 8 de Janeiro se-
gue em aberto. Sua superação só ocorre-
rá quando diferentes instâncias institu-
cionais puderem tratar de um sujeito de-
terminado, o bolsonarismo, abandonan-
do referências genéricas que pairam no
ar – fascismo, extremismo, autoritaris-
mo – sem um ator concreto a encarná-
-las. Assim, o combate a tal ameaça tor-
na-se mais difícil, se não inglório.
A dificuldade ficou clara em um ato
falho do ministro do STF, Luís Roberto
Barroso, que em julho de 2023 falou em
“derrotar o bolsonarismo” e depois teve
de se corrigir, dizendo que, na realidade,
se referia ao “extremismo golpista e vio-
lento que se manifestou dia 8 de janeiro”.
Ora, de fato o malogro do 8 de Janeiro foi
a derrota de quem o perpetrou, o bolsona-
rismo, e não de um extremismo, fascismo
ou autoritarismo abstratos ou genéricos.
E que fique bem claro, não foi um ma-
logro completo. Houvesse sido, seria do
bolsonarismo que até mesmo juízes po-
deriam falar e não o teríamos como su-
jeito indeterminado de discursos. Mas de
que forma tal derrota completa poderia
ocorrer, de modo que pudéssemos cha-
mar a coisa pelo nome?
 
Asolução só se dará quan-
d o o 8 de Janeiro, como
sinédoque do bolsona-
rismo, tiver como conse-
quência a punição judi-
cial (e não só política) de seus artífices. A
construção da intentona não foi produto
de um improviso de última hora. Ela foi
instigada e diligentemente construída ao
longo de quatro anos de governo, com as
reiteradas investidas deslegitimadoras
contra o Poder Judiciário, o Congresso,
a legalidade, a imprensa, a oposição leal
e o processo eleitoral.
 
Individualizando condutas, identifi-
cando e sentenciando responsáveis pelo
golpismo, determinar-se-á o sujeito. Cla-
ro que o ator principal nessa história é
o ex-presidente, que dá nome ao movi-
mento extremista que lidera. Enquanto
não pudermos falar de “bolsonarismo”
da mesma forma que hoje falamos de fas-
cismo, nazismo e autoritarismo, perma-
neceremos numa situação de ambiguida-
de: seguiremos tratando de ataques à de-
mocracia no Brasil sem apontar o seu au-
tor. E é muito complicado defender a de-
mocracia de um sujeito indeterminado.
CARTA CAPITAL
 

 

 

 

 

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