ANA CLARA COSTA
Desde que Lula assumiu a Presidência da República e apresentou sua pauta econômica, a reforma tributária tornou-se uma questão de vida ou morte – para Jair Bolsonaro. O assunto nunca despertou seu interesse pessoal, mas ele avaliava que sofreria um revés humilhante, caso o governo petista fosse capaz de construir um consenso mínimo no Congresso Nacional e ainda aprovar a reforma já no primeiro ano de gestão. Logo ele que vendeu ao mercado a promessa de que faria tudo – a reforma da Previdência, a reforma tributária, a reforma administrativa – e encerrou seu mandato aprovando apenas a previdenciária, e a duras penas. Bolsonaro mandou às favas os escrúpulos fiscalistas de seu ministro Paulo Guedes e furou o teto de gastos cinco vezes, mas, ainda assim, uma vitória do PT num tema tão complexo como tributos seria aviltante.
Tanto mais que o ex-presidente se empenhou no assunto durante seu governo. Como a reforma tributária mexia nos ganhos de grande parte da elite nacional, Bolsonaro chegava a despachar sobre o tema diretamente com seu primeiro secretário da Receita, Marcos Cintra, que se debruçara sobre os tributos desde a campanha eleitoral. Criou-se até uma distorção dentro do ministério de Paulo Guedes: havia dois grupos discutindo textos diferentes – um de Cintra e outro de Rodrigo Maia, então presidente da Câmara dos Deputados. Maia não tinha simpatia por Cintra e preferia a proposta de reforma desenhada pelo economista Bernard Appy, que hoje integra a gestão de Fernando Haddad.
O sentimento de humilhação de Bol-
sonaro, segundo o relato de alguns de seus
interlocutores, começou a tomar corpo no
início de novembro, quando uma primei-
ra versão da reforma passou no Senado – e
o texto-base era aquele de autoria de Ber-
nard Appy. Depois de um ano quase intei-
ro recluso em razão dos temores penais,
Bolsonaro decidiu encerrar a quarentena.
Em outubro, já estava articulando contra
a reforma discretamente, mas no mês se-
guinte ficou mais desinibido. Em 8 de
novembro, o jornal O Estado de S. Paulo
publicou uma mensagem em que Bolso-
naro cobrava o apoio do senador Nelson
Trad Filho (psd-ms): “Trad, você amanhã
será decisivo para derrotarmos a reforma
tributária.” Trad votou a favor.
Até então, as articulações da direita
contra Lula vinham sendo tocadas à meia-
luz nos bastidores por Arthur Lira (pp-al),
o presidente da Câmara. Lira é a melhor
encarnação do que o cientista político
Marcos Nobre chamou de “Centrão sem
medo”, no artigo Pega, mata e come
(piauí_204, setembro 2023) – o “Centrão
sem medo” é aquele bloco que, em nome
de seus interesses, está disposto a aderir a
qualquer lado, inclusive o da extrema di-
reita, mas anda cansado de exercer o papel
de coadjuvante. Agora e cada vez mais,
com a fome de um carcará, seu objetivo é
o poder – sem intermediários.
A reforma tributária em sua versão
definitiva foi aprovada em segundo turno
na Câmara por 365 votos a 118, no dia
15 de dezembro. “Um fato histórico”,
comemorou Lula. E Bolsonaro engoliu
o sapo. Mas sua volta ao jogo público, que
começou a tomar forma ainda antes das
articulações contra a reforma, animou o
presidente do Partido Liberal, Valdemar
Costa Neto. Até o canal do YouTube
de Bolsonaro estava sendo melancolica-
mente pautado por Lula. Sempre que o
presidente inaugurava uma obra, a equi-
pe corria para colocar um vídeo antigo
dizendo que tudo havia começado no
governo anterior. Agora, retomou a pos-
tagem de registros de suas andanças e
ataques ao governo, como no caso da in-
dicação de Flávio Dino para o Supremo
Tribunal Federal.
Na versão sem medo, Bolsonaro vol-
tou a organizar recepções na sua chega-
da em aeroportos do interior, apoiar
candidatos ao pleito de 2024 (como Ri-
cardo Salles, que quer ser prefeito de São
Paulo) e até voou de helicóptero sobre
cidades inundadas em Santa Catarina na
companhia do governador aliado. Tam-
bém deu para aparecer de surpresa nos
lugares – em eventos de Michelle e até em
encontros oficiais, como aconteceu na
reunião do embaixador de Israel, Daniel
Zonshine, com parlamentares da direita,
para discutir o conflito entre Israel e o
Hamas. Ali, era o puro suco de Bolsona-
ro, tentando faturar sobre uma tragédia.
Fabio Wajngarten, assessor informal
de Bolsonaro com alguma influência en-
tre os membros da comunidade judaica,
achou que seria uma boa ideia infiltrar
o ex-presidente na reunião na Câmara.
O embaixador Zonshine queria apresen-
tar vídeos dos ataques do Hamas aos
deputados, no intuito de pressionar indi-
retamente o governo Lula a marcar uma
posição mais crítica aos ataques. Wajngar-
ten articulou o encontro com o pl, e Bolso-
naro apareceu na última hora. A reunião
deve inviabilizar a permanência do em-
baixador no Brasil, sob a suspeita de ul-
trapassar os limites da diplomacia para
fazer política, mas reforçou a posição
pró-Israel de Bolsonaro, gerando simpa-
tia até em parte da comunidade judaica
que havia votado em Lula.
Os movimentos de Bolsonaro deixa-
ram o Palácio do Planalto em aler-
ta. Em parte por isso, o governo se
empenhou em promover um ato tão ba-
rulhento, com a presença de tantos mi-
nistros, para receber os brasileiros que
voltavam da Faixa de Gaza, resgatados
pela equipe do Itamaraty. Era uma for-
ma de evitar que Bolsonaro tentasse ca-
pitalizar a chegada do grupo ao país.
No final da disputa, ele ganhou a bata-
lha dentro de parte da comunidade ju-
daica, mas não levou a de Gaza. Logo,
voltou suas atenções para a Argentina,
que, naquela altura, se preparava para a
eleição presidencial.
O ex-presidente se envolveu pessoal-
mente na campanha do direitista Javier
Milei. Filmou a conversa em que parabe-
nizou Milei pela vitória e, depois, compa-
receu à posse do novo presidente (à qual
Lula não foi) e fez outra aparição de sur-
presa – desta vez, tentou se infiltrar na foto
oficial dos presidentes presentes à posse de
Milei. Foi barrado. O triunfo de Milei re-
força, na avaliação de Bolsonaro, que no
mundo de hoje não há mais lugar para a
“esquerda”. Ele está convicto de que Do-
nald Trump ganhará a eleição deste ano e
que, junto com Milei, ajudará de algum
modo a favorecer a extrema direita no Bra-
sil, ainda que ele próprio esteja fora do
páreo, já que inelegível até 2030.
A convicção do ex-presidente, ainda
segundo aqueles que o cercam, tem fun-
cionado como uma evitação mental do
que o futuro lhe reserva. Bolsonaro acre-
dita que, de fato, acabará sendo preso
por sua atuação golpista, mas acha que
precisa mostrar dentes e músculos. Já foi
alertado nos bastidores de que a delação
de Mauro Cid, seu ajudante de ordens
no governo, não deverá ter uma prova
substancial que o coloque como artífice
do 8 de janeiro, mas, mesmo assim, acha
que será condenado porque seu caso está
sendo avaliado por um “tribunal políti-
co”. Incensar a militância neste momen-
to, portanto, é providencial.
Na Justiça, afinal, as perspectivas efe-
tivamente não lhe são animadoras. As
primeiras condenações dos bolsonaristas
que participaram da intentona golpista
têm se aproximado dos vinte anos de ca-
deia. A expectativa é que essa dosimetria
seja ainda mais severa para o caso dos
artífices. O stf, neste momento, está ca-
librando o calendário: não quer uma
condenação tão rápida que transforme
Bolsonaro em vítima, nem tão lenta que
lhe dê tempo para fortalecer os múscu-
los e arreganhar os dentes.
PIAUI
ilustRAÇÃO allan sieber
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