June 26, 2023

Quem são e como são treinados os terapeutas psicodélicos no Brasil

 

A N I TA K R E P P

 Até há pouco tempo, não se
ouvia falar em psicodéli-
cos fora de determinados
círculos ou contextos, ha-
via uma capa de silêncio e
tabu que envolvia o tema. Esse tempo fi-
cou para trás e o assunto se tornou
mainstream no mundo. A velocidade com
que os psicodélicos invadiram da mídia
às rodas de conversa, por meio de livros,
séries e estudos nas universidades, faz
com que um número enorme e inédito de
cidadãos esteja interessado em tratar pa-
tologias mentais com essas ferramentas.
Nem todas, infelizmente, conseguem de
fato ser tratadas.

 
Um dos motivos é a legislação, ainda
muito restrita no Brasil, e o outro, o enor-
me gargalo na oferta de profissionais trei-
nados e preparados para atender a uma
demanda tão nova quanto avalassadora.

 
Esse tem sido um problema também no
Canadá e na Austrália, onde a partir de 1º
de julho a psilocibina e o MDMA, subs-
tância base das pastilhas de ecstasy, dro-
ga habitué de festivais de música eletrô-
nica, serão autorizados em contexto me-
dicinal. Nos Estados Unidos também há
apreensão em relação à quantidade de
profissionais disponíveis e a qualidade
de sua formação à medida que os trata-
mentos se aproximam da aprovação re-
gulatória nacional, coisa que deve acon-
tecer até o início de 2024 com a aprova-
ção do MDMA, em fase avançada de es-
tudos, e da psilocibina, logo em seguida.
A preocupação com a formação dos futu-
ros terapeutas psicodélicos é tamanha que
a Johns Hopkins junto com a Yale e a NYU
School of Medicine anunciaram sua cola-
boração para a criação de um programa
de educação psicodélica apoiadas por um
fundo de 1 milhão de dólares que recebe-
ram de um “grupo de generosos doadores”.

 
Apesar de o Brasil estar ao menos
meia década de distância da regulamen-
tação dos usos do MDMA e da psilocibi-
na em tratamentos médicos, o fato é que
o uso de outras substâncias psicodélicas
está em curso no País faz alguns anos.
São três, especificamente: a ayahuasca,
a ibogaína e a cetamina, também conhe-
cida como esquetamina.

 
A ayahuasca, regulada desde 1991, só
foi incorporada à legislação brasileira em
2010, pela Resolução nº 1 da Agência Na-
cional de Vigilância Sanitária, que per-
mite sua utilização em contexto reli-
gioso. A ibogaína, por sua vez, é regula-
mentada pela RDC 79/2014, também da
Anvisa, que estabelece as condições para
o uso terapêutico da raiz de origem afri-
cana, normalmente utilizada com altos
índices de êxito em casos de adição a opi-
áceos como o crack e a cocaína.

 
Anestésico de uso reconhecido, a ce-
tamina é uma substância controlada pe-
la Portaria SVS/MS 344/1998. Sua ad-
ministração está restrita a veterinários
e médicos, e, nos casos de tratamento de
saúde mental, são normalmente indica-
das para estresse pós-traumático, alcoo-
lismo, depressão refratária e ideação sui-
cida, por demover o paciente de tais pen-
samentos muito mais rapidamente do que
qualquer antidepressivo convencional.

Agora mesmo no Brasil algumas deze-
nas de clínicas, hospitais e espaços habi-
litados aplicam alguma dessas três subs-
tâncias a pacientes que sofrem de algum
transtorno mental refratário, aqueles re-
sistentes a outros tratamentos, e para as
quais as substâncias psicodélicas repre-
sentam uma última esperança. Não há da-
dos sobre quantos terapeutas trabalham
com substâncias psicodélicas hoje, mas
certamente há algumas centenas.

 
Normalmente, são psiquiatras e psicó-
logos que se interessam em formar-se co-
mo terapeutas psicodélicos. Cada vez mais
médicos de outras especialidades, entre
eles, médicos de família e paliativistas, se
aproximam, porém, do tema pelo cuida-
do com pacientes terminais, para os quais

os psicodélicos têm sido uma descoberta
à parte. Sabe-se que um dos grandes efei-
tos dessas substâncias é justamente dis-
sociar o ego do indivíduo, dando uma sen-
sação de integração com o todo. E quando
se é o todo, a morte não existe.

 
Para lidar com pacientes em um esta-
do expandido de consciência, os terapeu-
tas vão precisar de habilidades diferentes
daquelas que aprenderam em uma for-
mação clássica em psiquiatria e psicolo-
gia. São elas

habituar-se a sessões longas (que po-
dem facilmente durar entre 6 e 8 horas,
e em alguns casos, até mais);
estar presente e acompanhar os pacien-
tes de forma intensa, com momentos de-
safiadores, deixando o paciente ser o pró-
prio protagonista do seu processo, numa
postura não-diretiva;
observar outros estados de consciência
sem uma visão patologizante;
aprender a lidar com questões éticas,
por exemplo, sobre consentimento para
intervenções corporais, como segurar a
mão ou dar um abraço;
entender como lidar com a música, que
usualmente não desempenha um papel
tão importante, mas na terapia assistida
ganha muita relevância.

 
Trabalhar em dupla é outra prática
pouco comum no exercício da psiquia-
tria ou da psicologia, mas que se estabe-
lece nos protocolos de atendimento psi-
codélico. “Tem um propósito de seguran-
ça do paciente, em nenhum momento ele
fica desacompanhado. Em oito horas de
sessão, é normal que um da dupla quei-
ra ir ao banheiro ou comer alguma coisa”,
conta Thales Caldonazo, psicoterapeuta
que trabalha com psicodélicos há vários
anos. Desde 2019, Caldonazo é diretor de
planejamento e organizador dos cursos do
Instituto Phaneros, o primeiro a oferecer
uma formação a profissionais de saúde in-
teressados no assunto. “Primeiro conheci
o trabalho da respiração holotrópica, de-
pois fui conhecendo outras formações, o
trabalho da Maps. Fomos reunindo o me-
lhor que aprendemos em outros lugares,
juntamos várias dessas fontes e vamos la-
pidando essa formação.”

 
O modelo de atendimento em dupla
provavelmente nasceu nos protocolos
da MAPS, maior centro de investigação
e pesquisa psicodélica do mundo, e se es-
palhou como prática de alunos do mundo
inteiro que, como Caldonazo, viajaram
aos EUA para aprender com a organiza-
ção os detalhes da psicoterapia assistida
por psicodélicos. “É interessante sempre
que possível formar duplas com um ho-
mem e uma mulher, com idades diferen-
tes, e entre psiquiatras e psicoterapeutas,
que se complementam.”

 
Terapeutas, não é de hoje, trabalham
com elas no atendimento aos pacientes. É
o caso da dupla de xarás, o médico gastro-
enterologista Bruno Rasmussen (um dos
mais experientes no mundo na adminis-
tração da ibogaína) e do psicólogo com
foco em redução de danos, Bruno Ramos,
que trabalha em parceria há mais de uma
década. Seus pacientes viajam do Brasil
inteiro ou vem de outros países direto pa-
ra o interior de São Paulo para se tratar
com ele, que aplica o psicodélico cerca-
do dos protocolos de segurança, desde a
garantia de ao menos um mês de absti-
nência de qualquer droga antes da ses-
são, check-up completo da saúde, incluin-
do estudos detalhados sobre a saúde car-
díaca do indivíduo, até uma triagem mi-
nuciosa feita por Ramos.

 
Rasmussen e Ramos trabalham em
parceria desde o ano passado com a clí-
nica Beneva, que oferece tratamentos
com ibogaína e cetamina. “Pouco se co-

nhece sobre a cetamina, pouca gente fa-
la sobre ela, mas tem um monte de trata-
mento sendo desenvolvido, tanto em pes-
quisa quanto na prática clínica. O pacien-
te toma a cetamina em doses mais altas
ou mais baixas, e faz psicoterapia. É um
campo em expansão”, analisa Ramos.

 
Para além das substâncias autoriza-
das no País, os famosos cogumelos “má-
gicos” são bastante utilizados, ainda que
habitem uma zona cinzenta da legislação
onde os fungos, em si, não são proibidos,
mas a psilocibina, substância contida ne-
les, sim. O vazio legal tem estimulado a
venda desse cogumelo em ao menos 25
lojas virtuais que fazem delivery a qual-
quer lugar do Brasil. Inúmeras pesquisas
comprovaram que a psilocibina tem al-

as taxas de segurança e eficácia, em ou-
tras palavras, enquanto apresenta bai-
xíssimo risco à saúde e potencial aditi-
vo perto de zero, também tem tido êxito
em tratamentos de depressão refratária,
aqueles casos em que nenhum remédio
convencional funciona. No ano passado,
um estudo comprovou que os efeitos te-
rapêuticos de uma única dose de psiloci-
bina duraram por quase um ano.

 
É fácil comprar a psilocibina, mas a sua
psicoterapia ainda não está regulamenta-
da, tal fenômeno gera um movimento em
que diversos terapeutas atendem a pacien-
tes de psilocibina no underground, arris-
cando seu próprio registro profissional
para não deixar um paciente desassistido.
Para coroar uma fase inédita do nicho

o Brasil, a primeira turma da pós-gra-
duação em Psicoterapia Assistida por Psi-
codélicos do Instituto Alma Viva iniciou
no fim do mês passado o primeiro curso
a contar com o selo do MEC. “Queremos
formar novas lideranças, mas o princi-
pal é formar profissionais para a prática
do dia a dia do consultório”, conta Cesar
Camara, diretor científico do instituto.

 
Aluna da pós, a psicóloga Aline
Camargo procurou formação na área jus-
tamente para ganhar know how, mas só en-
contrava opções fora do Brasil. Sua prefe-
rência era, no entanto, estudar e atuar no
País “pela complexidade do tecido social
que temos diante de tantas misturas cul-
turais, o que permite observar os melho-
res processos de acompanhamento no pré
e pós-sessão”. Além de lidar com pacientes,
também pretende atuar em pesquisas em
órgãos públicos. “Quero me formar como
tripsitter e acompanhar a universalização
dos tratamentos que acontecem na clas-
se mais privilegiada da nossa sociedade.”
Com aulas online e encontros presen-
ciais não obrigatórios, os alunos que qui-
serem terão direito a orientação científi-
ca e a participar como terapeutas assisten-
tes nos protocolos de pesquisa aprovados
pelo Alma Viva no estudo da psilocibina e
da cetamina. “Vamos abrir o instituto pa-
ra acompanhar as sessões de supervisão,
vamos divulgar quem se formou, estamos
montando uma rede com as instituições
que aplicam ibogaína e cetamina para co-
nectar esses profissionais”, diz Camara.

 
O Instituto Phaneros também coloca
seus alunos para trabalhar nos protoco-
los de pesquisa que tem aprovados com
MDMA (1) e psilocibina (4), onde aten-
derão, ao todo, 220 pacientes. Indepen-
dentemente da possibilidade de partici-
par das pesquisas, Caldonazo sente que
grande parte dos alunos se interessa pelo
tema para, enquanto aguarda o momen-
to de regulamentação, “estar preparada
e ser pioneira quando esse caminho se
abrir legalmente”.


     

 

 

 

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