June 22, 2023

Os reais invasores

 

  Dossiê elaborado pelo site De Olho
nos Ruralistas expõe as digitais políticas
e corporativas na grilagem de terras

BR U N O S TA N K E

 V I C I U S B A S S I E 

A LC E U LU ÍS C A S T I L H O, 

D O  D E O L H O N O S R U R A L IS TA S

Comissão Parlamentar de
Inquérito sobre o Movi-
mento dos Trabalhado-
res Rurais Sem Terra
realizou em 29 de maio
uma diligência ao Pontal do Paranapa-
nema, no oeste paulista. O requerimen-
to do deputado bolsonarista Gustavo
Gayer, do PL de Goiás, visava obter “in-
formações de primeira mão nos estados
que tiveram invasão de terras pelo MST”.
Um vídeo divulgado pelo portal Metró-
poles na terça-feira 13 mostra o deputa-
do Ricardo Salles (PL-SP), relator da
CPI, a invadir sem mandado judicial o
barraco de uma família acampada na Fa-
zenda Santa Mônica, em Rosana. O tre-
cho em que o ex-ministro do Meio Am-
biente força a entrada e filma o interior
da casa viralizou nas redes. “Isso não é
uma residência”, desdenha.

 
Salles e o colega Luciano Zucco (Repu-
blicanos-RS) integram a Frente Parla-
mentar da Agropecuária. A bancada ru-
ralista comanda a mesa diretora da CPI
e detém 28 das 55 cadeiras da comissão.
A Fazenda Santa Mônica está sob penho-
ra. Mas a mulher que acompanhava o
deputado falava com as assentadas de ci-
ma para baixo, enquanto elas debulhavam
feijão: “Tem dono aqui, tá. Vai juntando a
malinha que aqui vocês não vão ficar”.

 
A devastação do Pontal do Paranapa-
nema, causada por fazendeiros em terras
devolutas, não é alvo da CPI. Tampouco
os milhões de hectares invadidos por gri-
leiros, dentro e fora da Amazônia. Mui-
to menos as invasões criminosas de ter-
ras indígenas, quilombos e unidades de
conservação. Só entra o que ruralistas e
bolsonaristas consideram “invasão de
propriedades produtivas”. Por trás des-
sa criminalização existe um jogo de cena.

 
Em 19 de abril, Dia dos Povos Indíge-
nas, o De Olho nos Ruralistas publicou o
relatório “Os Invasores”, radiografia da
face corporativa por trás de 1.692 sobre-
posições de fazendas em TIs homologa-
das ou em processo de demarcação. As
áreas foram identificadas a partir de da-
dos do Instituto Nacional de Coloniza-
ção e Reforma Agrária e da Fundação Na-
cional dos Povos Indígenas. As sobrepo-
sições ocupam 1.187.214,07 hectares em
213 TIs, área do tamanho do Líbano. Do
total, 53.601 hectares incidem sobre ter-
ritórios homologados.

 
A trading estadunidense Bunge ven-
deu em 2022 um imóvel incidente sobre
a TI Morro Alto, no Porto de São Fran-
cisco do Sul, em Santa Catarina. A pro-
dutora de agrotóxicos Syngenta possuía
uma fazenda de soja sobreposta à TI Por-
quinhos dos Canela-Apãnjekra, no Ma-
ranhão. E um dos sócios do grupo Bom
Futuro, cunhado de Eraí MaggiScheffer,
o “rei da soja”, é dono de uma fazenda que
invade 20,15 hectares da TI Enawenê
Nawê, em Mato Grosso. Existem ainda
sobreposições diretas de fornecedores
do frigorífico JBS, da comercializado-
ra de grãos Cargill, de empresas do se-
tor madeireiro e de exportadores de ca-
fé e frutas. Todas essas empresas par-
ticipam da cadeia de financiamento do
Instituto Pensar Agro, braço logístico
da FPA. O IPA é responsável por captar

verbas de 48 associações patronais que
sustentam o lobby ruralista em Brasília,
em mecanismo detalhado no dossiê “Os
Financiadores da Boiada”, recém-publi-
cado pelo De Olho nos Ruralistas (mais
detalhes em www.deolhonosruralistas.
com.br). Fundos bilionários de investi-
mento participam tanto da cadeia quan-
to das sobreposições.

 
O Kinea, do grupo Itaú, investe em
uma empresa de serviços agropecuários
cujo sócio é dono de um imóvel que avan-
ça em 53,4 dos seus 715,7 hectares sobre
a TI Guyraroká, no Mato Grosso do Sul.
A Gávea Investimentos possui partici-
pação em duas empresas com sobreposi-
ções: a Terra Santa Propriedades Agríco-
las, em Mato Grosso, e a Garça Azul Em-
preendimentos Turísticos, na Bahia. E o
fundo XP Infra III, da XP Investimentos,
tem 52,5% da OXE Energia, proprietária
da GFP Empreendimentos, cuja unidade

de produção de biomassa em Roraima in-
cide na TI Malacacheta, lar da presiden-
te da Funai, Joênia Wapichana. O capital
que avança sobre os territórios dos po-
vos originários é o mesmo que financia
a investida anti-indígena no Congresso.

 
A CPI do MST busca também crimina-
lizar as retomadas indígenas na Bahia e
no Mato Grosso do Sul. Enquanto isso,
os ruralistas aprovaram na Câmara o PL
490, do Marco Temporal, como se antes
da Constituição de 1988 indígenas não
tivessem sido expulsos por fazendeiros.
Segundo dados do Tribunal Superior
Eleitoral, empresários e fazendeiros com
imóveis identificados no dossiê “Os Inva-
sores” doaram 3,64 milhões de reais às
campanhas de 18 integrantes da banca-
da ruralista. A face política das sobrepo-
sições em terras indígenas é o tema da se-
gunda parte do documento, lançada na
quarta-feira 14 em São Paulo. Entre os
agraciados estão doze dirigentes da FPA,
entre eles o presidente Pedro Lupion
(PP-PR), os vices Arnaldo Jardim (Cida-
dania-SP) e Evair Vieira de Melo (PP-ES),
e os coordenadores políticos na Câmara,
Fábio Garcia (União-MT), e no Senado,
Tereza Cristina (PP-MS).

 
Ex-ministra da Agricultura de Bolso-
naro, Tereza Cristina obteve 50 mil reais
de dois fazendeiros cujas terras confli-
tam com a área reivindicada pelos Gua-
rani Kaiowá para criação da TI Doura-
dos-Amambaipeguá I. Um deles, Rena-
to Eugênio de Rezende Barbosa, dono da
Fazenda Campanário, era até 2019 um
dos acionistas majoritários da sucroalco-
oleira Cosan. O deputado Evair de Melo
foi financiado por Adelar Jacobowski, só-
cio do grupo Jacó Agro e titular de uma
fazenda com 2,58 hectares sobrepostos
à TI Menkü, reivindicada pelos Myky em
Mato Grosso. Outros três deputados da
comissão são financiados por invaso-
res, integram a FPA e o bloco bolsona-
rista: Domingos Sávio (PL-MG), Mar-
cos Pollon (PL-MS) e Rodolfo Nogueira

(PL-MS). Durante a diligência no Pon-
tal, Nogueira viu um cartaz com Nelson
Mandela, que batiza o acampamento da
Frente Nacional de Luta Campo e Cida-
de, e não teve dúvida: chamou o ex-pre-
sidente sul-africano de “bandido” e o as-
sociou à “igreja do diabo”.

 
Em sua primeira campanha política,
o senador Jaime Bagattoli (PL-RO) rece-
beu no ano passado 3,34 milhões de re-
ais em financiamentos - 2,98 milhões fo-
ram doados por seu irmão, Orlando, de
quem é sócio na Transportadora Giomi-
la. A empresa de logística é titular da Fa-
zenda São José, imóvel de 1.118,25 hec-
tares dedicado à pecuária bovina, em
Corumbiara (RO), dos quais 0,26 hectare
incide na TI Rio Omerê. Os dois são do-

 nos de um dos maiores grupos empresa-
riais de Rondônia, que reúne a transpor-
tadora, a Rede Catarinense de postos de
combustíveis e fazendas de soja e gado.
Integrante da FPA, contrário à demar-
cação de terras indígenas, o senador ad-
quiriu a área em 2011, por meio da penho-
ra de uma dívida contraída pelos antigos
proprietários. Em novembro de 2007,
um ano após a homologação, a empresa
São José Jacuri Agropecuária, então ti-
tular da área, protocolou novo registro
do imóvel invadindo 2.591,76 hectares
da terra indígena. A investida fundiária
aparece até hoje nos registros do Incra.
Bagattoli não declarou o imóvel em sua
prestação de contas à Justiça Eleitoral.

 
Dois deputados têm sobreposições
em TIs. O mineiro Newton Cardoso Jr.,
MDB, é sócio do pai, o ex-governador
Newton Cardoso, na Companhia Side-
rúrgica Pitangui, dona de duas fazendas
inteiramente sobrepostas à TI Kaxixó,
em Martinho Campos, que somam
834,04 hectares. De volta à Câmara após
quatro anos, Dilceu Sperafico (PP-PR)
e seus familiares possuem a Fazenda
Maracay. Segundo o Incra, ela tem 3,09
de seus 4.418,30 hectares sobrepostos à
TI Iguatemipeguá, em Amambai (MS).
As 1.692 sobreposições em terras indí-
genas abarcam múltiplas esferas de po-
der. A família do governador paranaen-
se Ratinho Jr., do PSD, possui uma so-
breposição no Acre. Cenário de confli-
tos com os povos Guarani Kaiowá, Gua-
rani Nhandeva e Terena, o Mato Grosso
do Sul tem ex-secretários de estado, pre-
feitos, líderes de associações do agrone-
gócio e servidores públicos na lista dos
fazendeiros com sobreposições. E dois
deputados estaduais: Pedrossian Ne-
to (PSD) e Zé Teixeira (PSDB). O dossiê
lista ainda outros cinco prefeitos e vice-
-prefeitos em atividade e 23 ex-prefeitos
com sobreposições dessa natureza.
 

*Colaboraram Luma Ribeiro Prado,
Tonsk Fialho e Hugo Souza.

 

CARTA CAPITAL


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