February 5, 2022

Moïse e o homo sacer

 




Negros e pobres no Brasil vivem sem direitos civis e sem qualquer proteção legal, expostos à barbárie consentida

POR GUILHERME BOULOS

O assassinato do imigrante congolês Moïse Kabagambe foi um dos episódios mais bárbaros deste Brasil que vive tempos de muita violência. Ele foi cobrar o pagamento de seu salário aos donos de um quiosque na Barra da Tijuca. Como resposta, teve as mãos e os pés amarrados e foi espancado por 15 minutos até a morte. Seu corpo foi jogado numa rua. E a vida seguiu. Somente uma semana depois o crime veio a público, o que levou a polícia do Rio de Janeiro a procurar os responsáveis, identificados, aliás, por uma câmera de vigilância.  

Fico imaginando se a atrocidade fosse cometida contra um brasileiro branco e rico. Ou contra um imigrante norte-americano ou europeu. O Brasil teria entrado em polvorosa e a cena estamparia a capa de todos os jornais e tomaria horas nos telejornais. Haveria caminhadas no Leblon e na Avenida Paulista, com todos vestidos de branco, a pedir paz e leis mais duras contra o crime.

No Brasil, negros e pobres como Moïse

representam a figura do homo sacer. Na

antiga lei romana, o homo sacer era o ci-

dadão sem direitos civis, sem qualquer

proteção legal e que poderia ser morto a

qualquer momento, impunemente. O fi-

lósofo Giorgio Agamben retomou o con-

ceito romano para tratar de um regime

de anomia, onde o estado de exceção tor-

na-se regra. Ainda que fora das previsões

jurídicas, nossas sociedades mantêm o

homo sacer. Nos países do Norte, são os

imigrantes que podem morrer afogados

no Mediterrâneo, sem direito a socor-

ro, ou serem enjaulados no Texas. Aqui,

são negros e pobres, moradores de peri-

ferias, muitas vezes exterminados pelas

próprias forças de segurança do Estado.

Os casos são muitos e conhecidos. O so-

ciólogo Jessé Souza utilizou o conceito

de subcidadania para descrever os nos-

sos homines sacer, remetendo às raízes

escravocratas. Cidadãos têm direitos pe-

rante a lei, subcidadãos estão expostos à

barbárie consentida.


O caso de Moïse, além da enorme

crueldade e desumanização, traz tam-

bém outra particularidade, notadamen-

te carioca: o poder soberano das milícias.

Ao que tudo indica, o crime foi cometi-

do por milicianos, que comandam a Zo-

na Oeste do Rio. O livro A República das

Milícias, de Bruno Paes Manso, revela

com detalhes como esse poder armado

se instalou aos poucos nas comunidades

fluminenses, inicialmente como organi-

zadores de territórios abandonados pe-

lo Poder Público, imbricados com asso-

ciações de moradores, oferecendo “segu-

rança” em troca de uma taxa. A taxa paga

por comerciantes sempre foi maior que

aquela dos simples moradores, mas tra-

zia a garantia de atuação em defesa dos

estabelecimentos. Daí à barbárie contra

o congolês é apenas um passo.


As milícias tornaram-se, ao longo do

tempo, negócios extremamente lucrati-

vos. O monopólio da venda de botijões de

gás, de serviços de internet e tevê a cabo,

das linhas de transporte alternativo, che-

gando à especulação imobiliária e à cons-

trução civil informal nos bairros. Seu

grande trunfo sempre foi a proteção poli-

cial, pois a maioria dos milicianos é forma-

da por ex-policiais ou mesmo policiais da

ativa. Isso garante a impunidade, já que os

criminosos estão também do lado do bal-

cão que deveria investigar os crimes.

O salto maior foi, no entanto, sua en-

trada na política. A proteção deixou de

vir apenas de batalhões e delegacias e

passou a ser garantida em Câmaras Mu-

nicipais, na Assembleia Legislativa e no

Congresso Nacional. Desde 2018, tam-

bém está simbolicamente assegurada no

Palácio do Planalto. Paes Manso mostra

a relação umbilical entre as milícias, re-

presentadas por figuras como Queiroz e

Adriano Nóbrega, e a família Bolsonaro.

Se já se sentiam com salvo-conduto pela

proteção policial, imaginem como se sen-

tem com a proteção presidencial.


Por isso, o assassinato de Moïse é um

símbolo acabado do Brasil bolsonarista.

Discurso de ódio e estímulo à violência

vindos de um presidente com histórico

miliciano leva o famoso guarda da esqui-

na a expressar sua pulsão de morte a céu

aberto. Quem amarrou e torturou Moï-

se deve ser julgado e punido, mas é pre-

ciso dizer que quem autoriza diariamen-

te crimes dessa natureza – no Palácio ou

nos tribunais – e quem consente e repro-

duz a lógica do homo sacer brasileiro tam-

bém tem sangue nas mãos. Enquanto a

sociedade brasileira não tratar casos co-

mo este com a mesma régua que usa pa-

ra crimes contra homens brancos e ricos,

não teremos de fato uma democracia. •


CARTA CAPITAL 




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