February 2, 2022

Geração Mangá

 



É um triunfo absoluto. Desde que o mangá começou a se tornar conhecido na França, há aproximadamente três décadas, ele não parou de prosperar e de se diversificar. Se o país de Asterix é o segundo “consumidor” mundial do gênero – atrás do Japão –, ele desenvolve pouco a pouco um processo de criação específica

POR HUBERT PROLONGEAU*

Já se suspeitava que talvez nem

todos os jovens fossem correr

atrás dos livros de literatura clás-

sica, mas ninguém pensou que a

corrida em direção aos mangás ganha-

ria essa amplitude. O “vale-cultura”,

um cheque de 300 euros oferecido pelo

Ministério da Cultura a todos os jovens

de 18 anos, tornou-se um “vale-man-

gá”, aumentando ainda mais as vendas

em plena expansão. Isso legitima a Ja-

pan Expo, a grande vitrine anual da

cultura popular japonesa, que desti-

nará um grande espaço para o gênero

em sua edição de 14 a 17 de julho de

2022, no parque de exposições de Pa-

ris-Nord Villepinte.

 

No entanto, frequentemente os fãs

têm mais de 18 anos. O mangá surgiu

no Japão no século XVIII e só começou a

ganhar notoriedade na França, em 1996,

quando a Glénat publicou Astroboy, de

Osamu Tezuka, cujo primeiro exemplar

tinha surgido no Japão nos anos 1950.

Foram doze volumes. Cem milhões de

exemplares das aventuras de um peque-

no robô num mundo em que seus se-

melhantes coexistem com os humanos

foram vendidos no mundo. Os mangás

se instalam na paisagem com um suces-

so cada vez maior, triunfo impulsiona-

do pelo dos desenhos animados a eles

adaptados, exibidos em programas in-

fantis: desde 1978, Goldorak, a máquina

de guerra extraterrestre, faz furor; em se-

guida vieram Princesse Sarah, adaptado

de um romance inglês que se passa em

uma Londres vitoriana e, finalmente, de

1990 a 1996, Dragon Ball Z...

 

Com um desprezo comparável ao

de seus pais pelo rock e de seus avós

pelas histórias em quadrinhos, os baby

boomers durante muito tempo viram os

mangás como uma série de desenhos

feios, violentos, com personagens que

têm os olhos arregalados e geralmente

passam o tempo lutando e gritando...

“Há um grande fenômeno geracional

no sucesso do mangá”, explica Gilles

Mure-Ravaud, criador do festival Che-

risy Manga, no departamento Eure-e-

t-Loir. E ele prossegue: “As pessoas da

minha idade cresceram com isso, lendo

as mesmas revistas e assistindo aos de-

senhos animados adaptados delas. São

os personagens que tornam os mangás

interessantes. Eles mudam para nós os

heróis de nossos pais, como Tintin ou

Lucky Luke: mais independentes, mais

violentos, mais sensíveis a emoções

negativas, como a raiva ou a vontade

de brigar e, no entanto, portadores de

valores de solidariedade muito fortes...

Como os encontrávamos em milhares

de páginas, em pouco tempo eles faziam

parte da família”.

 

Como lembra Satoko Inaba, diretora

editorial dos mangás da editora Glénat:

“Não houve nada entre as HQ infantis

e as HQ adultas. Na década de 1980, os

adolescentes não eram considerados um

público específico. Os mangás, assim

como as coleções young adult, criaram

um mercado”. Isso confirma a afirma-

ção de Timothée Chaussat, de 26 anos,

leitor assíduo do gênero: “Eu escutava a

mesma música que meus pais, e gostá-

vamos dos mesmos filmes. Mas os man-

gás, assim como os videogames, ficavam

de fato sob meu domínio pessoal, o que

talvez me estimulasse também a gostar

tanto deles. Eu me identificava muito

com os personagens: era um bando de

amigos que tentavam com frequência se

superar, caíam e se levantavam, exata-

mente o que eu tentava fazer em minha

vida sem alcançar sempre meu objetivo.

 

Havia ali valores de camaradagem e de

solidariedade que me tocavam. Isso me

aproximou muito das pessoas. Os man-

gás tiveram um papel social. Fazíamos

noites de mangás, noites de videoga-

mes, entre grupos próximos”. Um gran-

de número de videogames se baseia de

maneira efetiva nas mesmas forças mo-

rais narrativas, que, aliás, se encontram

nos romances de aprendizagem: busca,

companheirismo, diversas provas de

iniciação das quais os heróis saem en-

grandecidos.

 

UM GÊNERO COMPLEXO E VARIADO

 

O que é o mangá, afinal? A palavra, com-

posta por dois ideogramas (man, que

significa “leveza”, e ga, que remete a

“desenho”), designa em sua origem um

“desenho de traço livre”. Hokusai (1760-

1849), autor da lendária Onda, foi o pri-

meiro a usá-la para designar suas cole-

ções de esboços. Hoje, no Japão, a pala-

vra designa qualquer história em quadri-

nhos. Portanto, o gênero é muito amplo,

mas se identifica bastante com o que, na

Europa, são consideradas as característi-

cas dos mangás, o que faz Satoko Inaba

rir. Segundo ela, “o mangá é, sem dúvida,

mais complexo do que isso, sobretudo

mais variado, mesmo que haja códigos

de desenho: os olhos não são puxados,

mas muito redondos; os personagens

são extremamente expressivos”.

 

Ele se decompõe em diversos sub-

gêneros, dos quais os apreciadores fa-

lam com a mesma voracidade que um

viticultor expõe as diferenças entre um

vinho Petrus e um Nuits-Saint-Georges.

O shonen, o mangá adolescente e mas-

culino, muitas vezes consagrado ao ca-

minho que o herói deverá seguir para se

tornar fundador do império ou salvador

do mundo, é com frequência o mais em-

blemático. Dragon ball, que conta, em

42 volumes, a busca de sete bolas mági-

cas por um jovem, One piece e Naruto

são exemplos desse subgênero. A versão

para garotas, o shojo, tem suas catego-

rias: “mágica”, quando põe em cena jo-

vens mulheres com poderes sobrenatu-

rais (Sailor moon); “romance”, quando

evoca os primeiros amores (Fruit bas-

kets). E existe o seinen, o mangá para

adultos, que, longe de se limitar ao gran-

de mercado do mangá pornográfico e

suas múltiplas declinações, acolhe, por

exemplo, Berserk ou o célebre Quartier

lointain, de Jiro Taniguchi, obra-prima

que vê por magia um adulto se tornar

adolescente de novo e, assim, influen-

ciar o destino de sua família

.

Tanigushi é também autor do man-

gá Le Sommet des dieux,2

recentemente

adaptado para o cinema. Segundo Lu-

divine Gouhier, diretora artística da edi-

tora H2T, essa ligação entre mangá e de-

senho animado está relacionada ao fato

desse estilo de história em quadrinhos

“mostrar tudo. É um pouco como um

storyboard. A ação é decomposta, e as

elipses são muito raras. A decupagem é

muito importante. A narração é diferen-

te daquela da história em quadrinhos

clássica, pois tem em vista uma maior

duração. Eu diria que existe a mesma

diferença entre um filme e uma série. O

mangá é a série. Alguns se estendem em

uma centena de volumes, com heróis

recorrentes e uma arte final no fim de

cada volume, que lembra o fim das tem-

poradas”. No entanto, as obras não são

anônimas. Mure-Ravaud salienta: “Os

mangás são sempre escritos e ilustrados

por autores específicos, como cenógra-

fos ou desenhistas, que têm seu nome

na capa. Não são criações industriais

de estúdio, mesmo que os desenhistas

mais conhecidos tenham assistentes

para aprimorar os cenários ou alguns

personagens secundários”.

 

“Os mangás são sempre

escritos e ilustrados por

autores específicos,

como cenógrafos ou

desenhistas, que

têm seu nome na capa”

 

VINTE E CINCO MILHÕES

DE MANGÁS VENDIDOS

Por incrível que pareça, a França é o se-

gundo país do mundo consumidor de

mangás, após o Japão. Segundo Mure-

-Ravaud, “há pontes inesperadas entre

as duas culturas: a França, assim como

o Japão, gosta das pequenas histórias do

cotidiano e tem uma tradição de roman-

ce de aprendizagem na qual se inscre-

vem as grandes séries shonen”. Encon-

tros surpreendentes parecem confirmar

essas afinidades. Assim, Maryse Alix,

responsável pelo Clos Lupin, em Étretat,

se lembra de ter visto chegar à Maison

Maurice Leblanc o desenhista Takashi

Morita, criador do mangá Lupin 3, que

põe em cena um descendente de Arsène

Lupin que veio visitar a casa com uma

dezena de turistas japoneses. Ela se lem-

bra de que “A viagem para acompanhá-

-lo foi vendida no Japão pelo equivalen-

te a 10 mil euros. Havia trinta lugares e

oitocentos candidatos...”.

 

De qualquer maneira, o mercado é

florescente. Embora tenha havido uma

lacuna nos anos 2010, ele deu um salto

desde então, e o confinamento o be-

neficiou. Entre janeiro e julho de 2021,

25,1 milhões de mangás foram vendi-

dos, por uma cifra total de 186 milhões

de euros, uma progressão de mais de

100% em um ano. O primeiro trimes-

tre de 2021 se traduziu na editora H2T

em um aumento de 30%. Por que essa

explosão impressionante? “A crise sani-

tária, sem dúvida, a extensão das séries,

que torna o público fiel, a transmissão

que começa a ser feita entre os primei-

ros leitores e seus filhos...”, analisa Mu-

re-Ravaud. O One piece, uma história

de aventuras, piratas e caças ao tesouro

em um mundo insular que, no Japão,

teve tiragens de 3 milhões de exempla-

res, é neste momento o mais popular

na França e acaba de alcançar o centé-

simo volume. Os títulos que mais ven-

dem são fruto de leilões disputados por

umas quinze editoras, que representam

90% do mercado: Glénat, a principal;

em seguida, Dargaud (integrada pelo

grupo Média-Participations no fim dos

anos 1980); depois, Hachette e Pika

(recomprada pela Hachette Livres em

2007). Às vezes, mesmo que tenha um

sucesso médio no Japão, a obra se tor-

na um best-seller na França, como Les

gouttes de Dieu, consagrado ao mundo

do vinho, que vendeu 70 mil exempla-

res. “Vimos diversos pequenos editores

se lançarem há poucos anos. Existem

ainda muitos mangás japoneses que

não foram traduzidos. Ao contrário da

HQ clássica, em que os projetos são ini-

ciados na França, o principal trabalho

dos editores de mangás é mergulhar

nesse maná”, constata Mure-Ravaud.

 

Por não se contentar com essa

compra de licenças, a editora H2T, por

exemplo, lança criações originais. “Há

mangás brasileiros, australianos, italia-

nos... Muitas vezes, eles veiculam outra

visão da sociedade, diferente da dos ja-

poneses, com mais ironia, mais humor.

 

As relações entre homens e mulheres ali

são muito diferentes. Lá, a atitude dos

personagens é mais realista”, explica

Ludivine Gouhier. Surgiu também uma

escola francesa, que nasceu em grande

parte da paixão de jovens leitores. Com

26 anos de idade, Hachin, proveniente

de Madagascar, chegou à França quan-

do tinha 10 anos. Habitante de Saint-Se-

ver-du-Moustier, cidade em que grafitou

os muros e as ruas, e diplomado em En-

genharia Civil, ele se dedica aos mangás,

que começou a ler quando criança. De

início, Hachin postava nas redes sociais

pequenas histórias, one shots, que de-

pois se transformaram em um livro. Um

editor o contatou. Hoje, ele desenha e

cria o cenário de trinta páginas por mês

para acompanhar o ritmo de publica-

ção. “Tenho uma vida de asceta.”3

 

Caly também começou a ler mangás

muito jovem, sobretudo as séries para

garotas jovens. Ela gostava da capaci-

dade que elas têm de se desenvolver em

vários volumes de histórias e de seguir

personagens em toda a sua extensão.

“Particularmente, o dinamismo do gra-

fismo me seduzia. O essencial é dito

com poucos traços.” Caly também pu-

blicou primeiro em seu blog e, depois,

se voltou para a autoedição, em uma

plataforma denominada The Book Édi-

tion. Atualmente, ela continua a série

em seis volumes, reconhecida pela mes-

ma editora, a H2T.4

 

“Os blogs são um

grande terreno fértil de talentos. A au-

toedição permite gerar a sós, o que me

agrada, mas também dá duas vezes mais

trabalho.” Como muitos autores, para

viver, ela tem necessidade de outras ati-

vidades: oficinas de redação, cursos e

desenha capas para livros juvenis. Caly

lembra que “o mangá francês tem uma

especificidade: utilizamos nossa cultura

por meio de códigos provenientes do ex-

terior”. Talvez isso explique por que Ra-

diant, do francês Tony Valente, quinze

volumes publicados pela editora Anka-

ma, tenha sido adaptado para desenho

animado no Japão...  

 

*Hubert Prolongeau  é jornalista.

 

1     Eiichiro Oda, One piece [Uma porção], Glé-

nat, Issy-les-Moulineaux. O volume 98 foi pu-

blicado em maio de 2021.

2     Taniguchi, Le Sommet des dieux [O pico dos

deuses], Kana, Paris, em cinco volumes.

3     Hachin, Skilledfast, H2T, Paris, 2021, três

volumes.

4     Caly, Nova, volume 2, H2T, Paris, 2021.

 

LE MONDE DIPLOMATIQUE

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