Partido da Lava Jato
DEPOIS DE CORROMPER O SISTEMA DE
JUSTIÇA E SEMEAR O BOLSONARISMO, SERGIO
MORO E DELTAN DALLAGNOL RETORNAM À
DISPUTA ELEITORAL, AGORA SEM DISFARCE
p or M AU R Í C IO THUSWOHL E RODR I GO MA RT I N S
Brasil pra frente! Moro presidente!” Depois da acusação de plagiar um slogan da campanha de Lula, o
ex-juiz deve ter acha-o melhor recorrer
ao surrado grito de guerra entoado na
cerimônia de filiação ao Podemos, a reu-
nir 400 convidados no Centro de Conven-
ções Ulysses Guimarães, em Brasília, na
quarta-feira 10. A plateia numerosa é para
iludir os incautos. Sem nenhuma aliança
substanciosa no horizonte, o presidenciá-
vel limitou-se a reencontrar o general da
reserva e ex-ministro Carlos Alberto dos
Santos Cruz, que também saiu do governo
de Jair Bolsonaro pela porta dos fundos,
e dois deputados-youtubers do MBL, ani-
mados com a possibilidade de a terceira
via, quem sabe, enfim decolar. Da mesma
forma, pôde rever alguns de seus subor-
dinados da força-tarefa da Lava Jato em
Curitiba, a exemplo do procurador Carlos
Fernando dos Santos Lima, aquele que no
segundo turno das eleições de 2018 viu-se
“entre o diabo e o coisa-ruim”, e não hesi-
tou em digitar 17 e confirmar, para “evi-
tar a volta da corrupção”.
É a mesma desculpa usada por Moro
para justificar a sua passagem pelo
Dallagnol tinha extensa ficha-corrida no CNMP
Ministério da Justiça de Bolsonaro.
“Queria combater a corrupção, mas, pa-
ra isso, eu precisava do apoio do gover-
no e esse apoio me foi negado”, discur-
sou. Balela. O cargo foi uma retribuição
ao formidável trabalho como cabo eleito-
ral do ex-capitão. Moro não apenas reti-
rou da disputa o ex-presidente Lula, favo-
rito em todas as pesquisas de 2018, como
também divulgou trechos da delação do
ex-ministro Antonio Palocci a seis dias
do primeiro turno, exatamente quando o
petista Fernando Haddad esboçava uma
reação nas pesquisas. A delação não tra-
zia qualquer novidade, apenas requenta-
va velhas acusações contra integrantes
do PT e, pouco depois, a própria Polícia
Federal admitiu que se tratava de uma
acusação fraudulenta, inventada a par-
tir de notinhas de jornal. Incomodado
com a possibilidade de o superministro
lhe fazer sombra, Bolsonaro tratou de li-
mitar o seu raio de atuação, inclusive pa-
ra proteger familiares. Moro desembar-
cou do governo porque sempre teve am-
bição política, embora tenha negado is-
so repetidas vezes, muito mais do que as
três ocasiões em que Pedro negou conhe-
cer Cristo, após a prisão do seu Messias.
Agora sem o disfarce da
toga, o ex-magistrado
veste o figurino de um
candidato convencio-
nal. Diz defender o li-
vre mercado e dar novo impulso às pri-
vatizações, ao mesmo tempo que prome-
te erradicar a pobreza e combater a cor-
rupção. Não se cansa de repetir os lou-
ros da Lava Jato. “Mais de 4 bilhões de
reais foram recuperados dos criminosos
e tem uns 10 bilhões previstos ainda pa-
ra serem devolvidos. Isso nunca aconte-
ceu antes no Brasil”, diz o ex-juiz, agora
candidato – alguém notou a diferença?
Evidentemente, o presidenciável esque-
ceu-se de mencionar o estudo do Dieese
que estimou o impacto da operação na
economia. Para recuperar esses valo-
res, a Lava Jato dizimou 4,4 milhões de
empregos e fez o Brasil perder 172,2 bi-
lhões de reais em investimentos de 2014
a 2017, sobretudo na construção civil e
no setor de petróleo e gás. “O bolsona-
rismo é filho legítimo do lavajatismo”,
observa o advogado Marco Aurélio de
Carvalho, coordenador do grupo de ju-
ristas Prerrogativas, que desde o início
denuncia os abusos cometidos na ope-
ração. “Sob pretexto de combater a cor-
rupção, a Lava Jato corrompeu o nosso
sistema de Justiça, deixando um rastro
luminoso de pobreza e miséria no País.”
Moro não estará, porém, sozinho nes-
ta caminhada. Poderá ter a companhia
de outros quadros do “Partido da La-
va Jato”, como o ex-procurador Deltan
Dallagnol, que acaba de deixar o Minis-
tério Público Federal e não esconde suas
ambições políticas, e o ex-PGR Rodrigo
Janot, que acena com a mesma possibi-
lidade. Após o vazamento das conver-
sas da turma pela “Vaza Jato”, a explici-
tar o conluio entre o juiz e os procurado-
res, o figurino de “herói anticorrupção”
talvez não caiba mais nos novos postu-
lantes eleitorais. Mas, apesar das pedra-
das que certamente receberão nos pró-
ximos meses, Moro e Dallagnol contam
com o eleitorado visceralmente antipe-
tista para ocupar o tão sonhado – e ain-
da interditado – espaço da terceira via.
O futuro dirá se conseguirão,
mas, a julgar pela pesquisa
da Genial/Quest divulga-
da no dia em que se filiou
ao Podemos, Moro apare-
ce em terceiro lugar com 8% das inten-
ções de voto, empatado com Ciro Gomes
(7%), do PDT, dentro da margem de erro,
e à frente de outros nomes aventados para
a terceira via, como o governador paulis-
ta João Doria, do PSDB, e o presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco, recém-chegado
ao PSD. “Quando Moro oficializar sua can-
didatura, ele tende a ter um aumento em
suas intenções de voto. O quanto vai cres-
cer é difícil de dizer. Mas muitos eleitores
podem estar dispostos a votar nele, mas
não o consideram, porque a candidatu-
ra não estava colocada”, analisa o cientis-
ta político Cláudio Couto, da FGV de São
Paulo. Como a margem de crescimento do
ex-juiz no eleitorado de Lula é próxima de
zero, ao que tudo indica ele deve avançar
sobre a base desiludida com Bolsonaro: “O
presidente é potencialmente o maior pre-
judicado pela entrada de Moro na dispu-
ta. Há uma parcela do eleitorado que hoje
ainda está, em boa parte, com Bolsonaro,
mas pode migrar. Eu apostaria numa re-
dução das intenções de voto no ex-capitão
nas próximas pesquisas”.
Moro apresenta-se como um neófito no
ramo. “Não tenho carreira política e não
sou treinado em discurso político”, disse.
Em momento quase cômico, o ex-juiz dis-
se saber que “criticam minha voz” e saiu-
-se candidamente: “Se, eventualmente, eu
não sou a melhor pessoa para discursar,
posso assegurar que sou alguém em quem
vocês podem confiar”. O discurso foi en-
dossado pelo senador paranaense Álvaro
Dias, candidato a presidente pelo Pode-
mos em 2018. Ele lembrou que a legenda
foi fundada “há apenas quatro anos”, disse
que o ex-juiz representa essa “renovação”
e que vai “refundar a República”.
A fantasia da “nova política” parece
um tanto desbotada, mas o ex-juiz con-
ta com o inestimável apoio de amplos se-
tores da mídia. “Moro, na verdade, nunca
perdeu a capa de herói. Ele vem com tu-
do. E vem em versão 2.0., com o apoio da
mídia mainstream”, diz Tarcis Prado Jú-
nior, doutor em Comunicação e Lingua-
gens e autor do livro Moro: O Herói Cons-
truído pela Mídia . “O fato de ter sido des-
moralizado pelo STF ao ser considerado
parcial no julgamento do Lula não cria fis-
suras suficientes para muita gente que se
desiludiu com Bolsonaro, mas não quer o
PT nem pintado de cor-de-rosa. A pauta
do combate à corrupção será revigorada
com o apoio da mídia tradicional”, apos-
ta. A avaliação é compartilhada por Cou-
to: “Parte dos barões da mídia, que ain-
da conservam sua crença no lavajatismo
acompanhada de um antipetismo visce-
ral, embarcaria sem problema algum nu-
ma candidatura de Moro”.
Conquistar a simpatia da mídia
talvez seja mais fácil para Moro do que
exercer papel de líder no Podemos. Em
sua primeira tentativa, ao pregar voto
contrário à PEC dos Precatórios, viu
metade da bancada do partido na Câmara
– que abriga, inclusive, defensores da can-
didatura de Lula – ignorar sua sinalização.
Procurada pela reportagem, a presiden-
te do Podemos, deputada Renata Abreu,
não retornou o contato até o fechamento
desta edição. Em todo caso, a aposta do
partido é crescer com Moro. “Sua candi-
datura possui forte potencial de cresci-
mento dentre os brasileiros de bem, inde-
pendentemente de correntes ideológicas.
Estamos fartos de corrupção e dos maus
hábitos que dilapidam os recursos e, in-
felizmente, se encontram tão difundidos
em nosso país”, diz o senador Flávio Arns.
Ex-petista, Arns rechaça qualquer con-
flito ideológico no seio da legenda. “Seja de
direita ou de esquerda, o partido que al-
meje o poder deve oferecer respostas ade-
quadas aos anseios da sociedade. Todos
desejamos um Brasil próspero, onde haja
bem-estar para o povo e paz social”, des-
pista. “Considero que ele esteja preparado
para conduzir o País e enfrentará o bom
debate de campanha com propriedade.”
O “bom debate” poderá, no entanto, ser
pesado para o ex-juiz: “Moro é muito cin-
tura dura e deve se ressentir disso nos de-
bates mais quentes, onde será atacado por
sua parcialidade como juiz e pela partici-
pação no governo Bolsonaro, além de ter
ido trabalhar, mesmo que indiretamente,
para a Odebrecht que ele mesmo conde-
nou”, diz Cláudio Couto. “É difícil saber o
que ele pensa sobre outros temas que não
a corrupção e a defesa ‘da lei e da ordem’,
numa linha autoritária e à margem do Es-
tado de Direito. O que pensa da economia,
política externa, dos programas sociais?
Moro tem algo a dizer sobre isso tudo?”
Prado Júnior, por sua vez, considera
“perigoso” subestimar Moro: “Descre-
denciá-lo porque não é eloquente no dis-
curso ou porque tem uma voz específica é
bobagem. Alckmin nunca foi um gênio da
oratória, sempre foi o chamado ‘picolé de
chuchu’ e, no entanto, governou São Paulo
por três mandatos”, lembra. Não será fá-
cil, porém, se desvencilhar da sombra do
atual presidente nos debates: “Moro não é
terceira via, é a segunda via do B. Ele tem
o mesmo projeto do Bolsonaro”.
Num sentido, a tarefa de Deltan Dalagnol talvez
seja mais fácil do que a do
ex-colega de Lava Jato,
uma vez que o ex-procu-
rador provavelmente concorrerá a uma ca-
deira legislativa pelo Paraná, onde é prati-
camente uma celebridade pop. “Dallagnol,
se concorrer ao Parlamento, passará abai-
xo do radar dos grandes debates, embora
os ataques a Moro possam respingar nele”,
diz Couto. “Parece jogo fácil para ele con-
quistar o cargo de deputado federal num
estado como o Paraná.”
Dallagnol pediu exoneração do cargo
de procurador da República em meio a
uma avalanche de denúncias contra ele no
Conselho Nacional do Ministério Público.
Ele era alvo de 14 reclamações disciplina-
res, uma sindicância e um pedido de pro-
vidências, além de ter sido punido com ad-
vertência, em 2019, e com moção de cen-
sura, em 2020. Parece pouco plausível,
porém, a tese de que ele decidiu disputar
as eleições por temer punições. O CNMP
sempre foi leniente em relação aos abu-
sos da Lava Jato. Somente em meados de
outubro, o órgão impôs uma sanção mais
dura, determinou a demissão do procur
ador Diego Castor de Mattos, que enco-
mendou um outdoor na capital paranaen-
se para promover o trabalho da força-ta
refa curitibana. “Sejam bem-vindos à Re-
pública de Curitiba”, dizia o painel, com
uma foto da equipe e uma velha bravata:
“Aqui a lei se cumpre”. Ainda assim, a pu-
nição deu-se em um contexto bem especí-
fico, quando a Câmara dos Deputados es-
tava prestes a votar um projeto que alte-
rava a configuração do CNMP, com a in-
clusão de representantes da sociedade ci-
vil indicados pelo Parlamento, uma forma
de evitar o julgamento de comadres que
costuma marcar as sessões do conselho.
Mas os candidatos
do Partido da Lava
Jato não estão imu-
nes aos questiona-
mentos éticos – e a
eventuais acertos de contas com a Justiça.
O Tribunal de Contas da União acaba de
determinar, por exemplo, que os procu-
radores da Lava Jato devolvam os recur-
sos de diárias e viagens que receberam
quando trabalhavam na força-tarefa que
investigou desvios na Petrobras. O moti-
vo? Em vez de remover os procuradores
para Curitiba, onde de fato passaram a
morar, estes continuavam lotados em ou-
tros estados, enquanto recebiam diárias
e gastavam passagens todas as vezes que
se deslocavam para a capital paranaense.
O valor total a ser ressarcido passa de 1,8
milhão de reais, e Dallagnol terá de res-
ponder solidariamente.
“A lista de abusos cometida pela tur-
ma é interminável. Eles grampearam
escritório de advocacia, esconderam
provas, divulgaram diálogos de
conversas interceptadas sem autoriza-
ção judicial, fizeram tudo o que um juiz
e um integrante do Ministério Público
não podem fazer”, observa o advogado
Lenio Streck, que atuou como promo-
tor de Justiça por mais de 20 anos e tem
pós-doutorado em Direito Constitucio-
nal pela Universidade de Lisboa. “Quan-
do Moro e Dallagnol anunciam a inten-
ção de disputar as eleições, vejo uma vio-
lação do princípio jurídico do nemo potest
venire contra factum proprium, que veda
a possibilidade de um indivíduo se bene-
ficiar de atos contraditórios. Esse princí-
pio foi usado nos EUA, em 1895, para im-
pedir o acesso de um neto à herança do
avô que ele havia matado. À época, não
havia uma lei que proibisse o neto de rei-
vindicar a herança, assim como hoje não
há lei alguma que impeça Moro e Dallag-
nol de se candidatarem. Mas uma coisa é
fato: eles estão se beneficiando de um ce-
nário que eles próprios construíram, de
criminalização da política. Eticamente,
é bastante reprovável.”
A avaliação é compartilhada pelo ad-
vogado Antonio Carlos de Almeida Cas-
tro, o Kakay, um dos mais reconhecidos
criminalistas do País. “Desde o início da
operação sustento que Moro e Dallag-
nol tinham um projeto de poder e ins-
trumentalizaram o Poder Judiciário e o
Ministério Público para atingir os obje-
tivos desse projeto. Isso ficou muito cla-
ro quando eles vazaram o diálogo de Dil-
ma Rousseff com Lula, interceptado pe-
la Polícia Federal fora do período autori-
zado judicialmente, para impedir a no-
meação do ex-presidente como ministro
da Casa Civil e dar fôlego ao processo de
impeachment”, avalia. “Agora, vejam só,
a dupla quer disputar eleições no meio do
caos que eles próprios produziram. E, se
não tomarmos cuidado, ainda vão posar
de paladinos do combate à corrupção,
sendo que foram eles que corromperam
o sistema de Justiça.” •
carta capital
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