July 27, 2021

Churrasquinho de Borba Gato

 

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 RAFAEL CARDOSO  

Esta é uma coluna incendiária, escrita no calor da hora. Ainda é quente a notícia do ataque ao monumento a Borba Gato, em São Paulo, hoje, 24 de julho de 2021. Um restinho de fumaça deve estar subindo da argamassa chamuscada, defumando a tarde de inverno em Santo Amaro. O palavreado pode dar a impressão que estou me divertindo com o ocorrido. Pois, não é que estou? Bem feito! Estátua feia de um sujeito que, reza a lenda, começou a vida como assassino e a terminou como juiz ordinário, aproveitando o intervalo para extrair minério e escravizar gente, é boa mesmo para ser depredada. Meu único lamento é que ela deve vir a ser restaurada, certamente a um custo elevado para os contribuintes de São Paulo.

Mas, que horror, senhor colunista! Logo o senhor, historiador da arte, professor doutor, defensor e amigo do patrimônio histórico, dando aval para o vandalismo! Ora, é justamente por conhecer um pouco a História da Arte que posso asseverar que o iconoclasmo esteve sempre conosco. Desde a Antiguidade até a presente onda de monumentos derrubados, passando pelo declínio e queda do império romano, pela expansão do Islã, por uma reforma protestante, duas ou três revoluções francesas e uma russa, guerras mundiais, guerra fria, talibãs e mais uma penca de ditaduras derrubadas. Melhor dizendo: os iconoclasmos, já que são vários e de variado teor. O terrorismo de um é a guerra santa do outro. O vandalismo de um é a manifestação política do outro. Ou você que me censura nunca vibrou com uma queda de estátua de Stalin ou Ceauşescu ou Saddam Hussein?

Para quem ama a arte da estatuária, esse monumento nunca devia é ter sido erguido. Nem tanto por sua temática, que provocou o ataque de hoje. No início da década de 1960, quando foi construído, poucos se opunham ao mito dos bandeirantes como fundadores e heróis. Não havia clima de opinião que impedisse erguer uma estátua a Borba Gato. Havia, contudo, excelentes razões para não construir um monumento tão tosco. Numa época em que os exemplos de Victor Brecheret, Celso Antônio, Alfredo Ceschiatti e Bruno Giorgi, entre outros, ainda estavam fresquinhos na memória coletiva, aquele boneco gigantesco, duro e mal-ajambrado, é um acinte à arte escultórica. No disputadíssimo páreo de monumento mais pavoroso do Brasil – categoria na qual ele concorre com pérolas como a estátua ao laçador em Porto Alegre, a do Padre Cícero em Juazeiro do Norte e o cabeção de Getúlio Vargas no Rio de Janeiro – o Borba Gato de Santo Amaro merece fácil ser distinguido como hors concours.

Vamos deixar de lado, portanto, as lágrimas de crocodilo pela perda de uma grande obra de arte. Que nunca foi. Até porque não se perdeu. Interessante reparar que os políticos que mais enchem a boca para condenar o vandalismo a monumentos costumam ser os mesmos que cortam verbas para a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural. Derrubar estátua, não pode. Mas pode demitir funcionários, achatar orçamentos, fechar órgãos de fiscalização e relaxar regras de tombamento, fazendo com que o patrimônio seja arruinado ou incendiado por negligência. Isso se chama lei do mercado e responsabilidade fiscal. Nem vem que não tem, senhores bolsodórias, sabemos o que vocês fizeram no verão passado.

Quanto aos defensores da propriedade privada, da moral e dos bons costumes, os que temem que o próximo alvo seja seu clube ou sua igreja, queria saber onde vossas senhorias guardam sua ira santa quando o alvo é um terreiro depredado. Sem esquecer das viúvas do patrimônio cultural, aquelas que se indignam quando o monumento às Bandeiras é aspergido com tinta vermelha, mas não dão um pio quando o monumento a Zumbi dos Palmares amanhece com uma suástica na testa. Num país onde monumentos são depredados todos os dias, mesmo que seja apenas para roubar uma placa de bronze, o clamor por ordem e justiça é curiosamente seletivo.

Precisamos rediscutir com urgência o processo de monumentalização. Para quem são erguidos os monumentos? Em nome de quem? Com dinheiro de quem? Para qual finalidade e com que prioridade? Foi consultada a comunidade? Foram ouvidos especialistas? Houve um mínimo de abertura para o debate artístico ou histórico? Quase sempre no Brasil, a resposta para essas perguntas é que foram feitos para poucos, malversando o dinheiro de muitos, geralmente com intuito eleitoreiro e sem transparência alguma no processo decisório. Está aí a proliferação de bonecos fundidos em bronze que virou praga nas cidades brasileiras. Só na orla da Zona Sul do Rio de Janeiro, temos Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Tom Jobim e Zózimo Barroso do Amaral imortalizados em caricaturas tridimensionais que não servem outra função senão figurarem de selfie... e serem depredadas.

Como exemplo contrário, vale citar um episódio tirado das disputas políticas e culturais do século retrasado. Em 1866, em plena efervescência da Guerra do Paraguai, um dos mais destacados escultores da época, Francisco Manuel Chaves Pinheiro, concebeu a Estátua equestre do imperador na batalha de Uruguaiana, obra de tamanho monumental que participou da Exposição Universal de 1867, em Paris (e cuja versão em gesso está preservada no Museu Histórico Nacional). Após o final da Guerra, em 1870, foi feita uma subscrição pública para custear a transformação dessa estátua em monumento a D. Pedro II. A campanha foi insuflada por notáveis do comércio, da política e da imprensa, gente que se atropelava para bajular o imperador. A surpresa veio quando o homenageado pediu que se revertesse o dinheiro arrecadado para a construção de escolas públicas. Assim foi feito, e no mesmo ano de 1870 o imperador lançou as pedras fundamentais das primeiras escolas públicas do Rio de Janeiro.

Essa história, um dos testemunhos mais eloquentes do espírito público do período imperial, foi resgatada por Paulo Knauss em artigo publicado em 2005 nos Anais do Museu Histórico Nacional. Será demais pedir aos políticos, aos jornalistas e aos comentaristas de plantão nas redes sociais que leiam artigos sobre nossa história? Que estudem o iconoclasmo e busquem compreender o contexto e os debates em torno da questão antes de sentenciarem que isso ou aquilo é vandalismo ou barbárie ou terrorismo? É crime atear fogo a um objeto na via pública? Então que a polícia investigue, o Ministério Público emita parecer e os juizes julguem. Mas, não vamos erigir subitamente a estátua do Borba Gato em emblema da civilização e da arte. É o cúmulo do ridículo.

Estátuas não são intocáveis e invioláveis, simplesmente pelo fato de terem virado monumento. (Aliás, a arte não é sagrada. A quem serve esse mito? Certamente não aos artistas.) Ao contrário, justamente por ocuparem o espaço público, os monumentos são fruto de um pacto social e, portanto, sujeitos às mudanças de maré política. São propriedade coletiva, e a coletividade deve decidir o destino que se dará a eles. No Brasil, onde o que é de todos costuma ser de ninguém, esse destino é o abandono, no mais das vezes. Uma sociedade que se preza tem a responsabilidade de incluir também as vozes marginalizadas na discussão sobre os bens coletivos. Caso contrário, aos que se sentem excluídos, restará a violência.

Querem saber mesmo o que eu, como estudioso do tema, gostaria de ver agora? Que a prefeitura de São Paulo iniciasse um debate amplo a partir da estátua de Borba Gato. Que se ouvisse a população de Santo Amaro, desde as associações de comércio até os que cuidam dos moradores de rua. Afinal, a comunidade é o melhor guardião do patrimônio, como já ensinava Aloísio Magalhães. Que fossem consultados especialistas em arte e patrimônio, para propor alternativas e encaminhamentos. Restauração? Remoção? Ressignificar a obra por meio de intervenções? Que se promovesse uma campanha de educação pública, esclarecendo a história e o sentido desse e de outros monumentos. O que o povo precisa é de educação, não de símbolos de opressão impostos em nome da arte, do patriotismo ou mesmo da gratidão. Quem deu esse recado, há 150 anos, foi aquele comunista do D. Pedro II. Talvez esteja mesmo na hora de erguer mais um monumento a ele – de preferência na forma de mais verbas para as escolas públicas.

revista PESSOA 

 

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