June 5, 2021

Cova América

 

 


ESCÁRNIO Bolsonaro ignorou por meses as ofertas de vacinas,
mas deu aval ao torneio de futebol em tempo recorde


POR VICTOR CALCAGNO 

Em agosto de 2020, a Pfizer
encaminhou ao Ministério
da Saúde três ofertas para
fornecimento de 70 milhões
de doses de vacina. Todas
elas previam entregas ainda no ano
passado, mas foram ignoradas pelo gover-
no. Em 12 de setembro, quando o CEO do
laboratório, Abert Bourla, encaminhou
carta ao presidente Jair Bolsonaro e seus
principais ministros, a indústria farma-
cêutica colecionava dez e-mails não
respondidos. Em depoimento à CPI da
Pandemia, o ex-secretário de Comunica-
ção da Presidência, Fábio Wajngarten,
confirmou que a missiva ficou sem res-
posta por outros dois meses. Apenas em
novembro a equipe de Jair Bolsonaro

começou a negociar com a Pfizer, e o acor-
do só foi celebrado em março deste ano. 

Aparentemente, o governo tinha – e
ainda tem – outras prioridades em meio
a uma pandemia que matou 460 mil bra-
sileiros. Para realizar uma competição
esportiva rejeitada por outros dois pa-
íses, a Conmebol não precisou de mais
que dois ou três telefonemas para obter
o aval presidencial. Na segunda-feira 31,
a entidade comunicou que o Brasil­ vai se-
diar a Copa América, com início previs-
to para 13 de junho. O anúncio foi feito
dois dias após dezenas de milhares de ci-
dadãos ocuparem as ruas das principais
capitais do ­País por mais vacinas e pelo­
impeachment de Bolsonaro, “mais pe-
rigoso que o vírus”, como bradavam os
Sem ter a quem recorrer e com ape-
nas duas semanas para organizar um
campeo­nato com patrocinadores e con-
tratos estabelecidos, a entidade pergun-
tou à CBF, na manhã da segunda-feira 31,
se o Brasil não poderia receber o torneio.

Originalmente planejada para ter jogos
divididos entre Argentina e Colômbia, a
Copa América foi descartada pelos gover-
nos de ambos os países, que alegaram ra-
zões diferentes. O governo colombiano pe-
diu que o torneio fosse adiado em decor-
rência dos violentos protestos que deixa-
ram ao menos 17 mortos desde as primei-
ras mobilizações contra as reformas do
presidente Iván Duque. Diante do pedido,
a Conmebol preferiu excluir de vez o país-
-sede e realizar todos os jogos em estádios
argentinos. No domingo 30, o governo de
Alberto Fernández anunciou, porém, que
não mais levaria a ideia adiante. O moti-
vo alegado é o aumento recente no núme-
ro de infecções e mortes por Covid entre
os argentinos – o país tem 80 mil óbitos
acumulados desde o início da pandemia.
começou a negociar com a Pfizer, e o acor-
do só foi celebrado em março deste ano.

Sem ter a quem recorrer e com ape-
nas duas semanas para organizar um
campeo­nato com patrocinadores e con-
tratos estabelecidos, a entidade pergun-
tou à CBF, na manhã da segunda-feira 31,
se o Brasil não poderia receber o torneio.
O presidente da confederação brasileira,
Rogério Caboclo, falou diretamente com
Bolsonaro. Com relação amistosa, a dupla 

aproximou-se quando o ex-capitão defen-
deu a retomada das partidas de futebol no
ano passado, mesmo com a pandemia fo-
ra de controle. Com a resposta positiva
em mãos, a Conmebol celebrou a decisão

“O Brasil receberá a Copa América 2021!
A Conmebol agradece ao presidente Jair
Bolsonaro e sua equipe”.

 A reação veio de imediato. O governo

de Pernambuco, que administra uma das
arenas que abrigaram partidas da Copa de
2014, foi enfático ao dizer em comunicado
que “o atual cenário epidemiológico não
permite a realização de eventos do porte
da Copa América”. Da mesma forma, o go-
verno do Rio Grande do Norte, onde está a
Arena das Dunas, disse que o estado não
tem “segurança epidemiológica” para os
jogos. No Rio Grande do Sul, a opção de
sediar a competição foi considerada “ino-
portuna e inconsequente” pelo governa-
dor Eduardo Leite, do PSDB. Parlamen-
tares da CPI da Pandemia também criti-
caram a decisão. O relator Renan Calhei-
ros, do MDB, chamou o torneio de “cam-
peonato da morte”, e o vice-presidente da
comissão, Randolfe Rodrigues, da Rede,
classificou a iniciativa como “afronta às
mais de 450 mil vidas perdidas”.


Argentina e Colômbia
rejeitaram o certame
que o ex-capitão
topa abrigar


Diante das exaltadas reações, o mi-
nistro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ra-
mos, foi rápido em afirmar, ainda na
noite da segunda-feira 31, que a realiza-
ção do evento não estava completamen-
te garantida. Destacou, ainda, que os jo-
gos não teriam torcidas e todas as dele-
gações deveriam ser vacinadas. Segun-
do a pasta, as negociações ainda estavam
em estágio inicial e a CBF nem havia en-
viado um pedido oficial para o governo,
solicitando a execução do torneio. Mas,
no dia seguinte, Bolsonaro bateu o mar-
telo e confirmou que quatro estados to-
param receber os jogos: Distrito Fede-
ral, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Goiás 

Com dez seleções a desembarcar no
País, a realização da competição também
preocupa pela adoção de protocolos sa-
nitários que mantenham esses profissio-
nais seguros em seus deslocamentos, ao
mesmo tempo que protejam os cidadãos
brasileiros. Com anúncio a toque de cai-
xa, não houve detalhamento de como es-
se planejamento sanitário será feito, ou
mesmo se seria realizado. O presiden-
te da Comissão de Esportes da Câmara­
dos ­Deputados, Felipe Carreras, protoco-
lou requerimento para que o ministro da
Saúde, Marcelo Queiroga, seja convoca-
do para prestar esclarecimentos sobre as
medidas sanitárias para o evento.


“É a medalha de ouro do desprezo à vi-
da que tem Bolsonaro, é mais um capítu-
lo no campeonato genocida do governo, a
continuação dessa gincana negacionista
em que vive o País”, afirma o deputado e
ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha,
do PT. Ainda na segunda-feira, o partido
apresentou ao ministro Ricardo Lewan-
dowski, do Supremo Tribunal Federal, pe-
dido para suspender a realização da Copa
América no Brasil, por meio de um aden-
do à Ação por Descumprimento de Precei-
to Fundamental (ADPF) das Va-
cinas contra a Covid. Segundo o
PT, a decisão de sediar o evento
foi “sem transparência”, “irres-
ponsável” e “põe em risco a saú-
de da população do País e das de-
legações estrangeiras”.


O documento ainda requer
a intimação de Bolsonaro e
dos ministros da Saúde, Ca-
sa Civil e Relações Exterio-
res, além do secretário nacio-
nal do Esporte, citados em co-
municado oficial da Conme-
bol. A mesma estratégia foi
adotada com os governado-
res, em ofícios que pedem pa-
ra os estados não receberem
o evento. O PSB também in-
gressou com um mandado de
segurança preventivo encaminhado ao
presidente do STF, Luiz Fux.


“Bolsonaro ignorou ofertas de deze-
nas de milhões de doses de vacinas en-
tre junho e novembro, mas aceitou a Co-
pa América em menos de 12 horas”, in-
digna-se Padilha. Segundo ele, a inten-
ção do governo ao aceitar a competição
é “a mesma desde o início da pandemia”:
deixar o vírus correr solto até que o País­
alcance a suposta imunidade de rebanho.
Além disso, “a atitude defensiva” do Pla-
nalto viria para “provocar mais divisão”
no momento em que se vê acuado pela
CPI e pelas ruas. “A Argentina desistiu
do evento pela grave situação sanitária
e a Colômbia pela instabilidade política:
o Brasil reúne as duas coisas.”


No sábado 29, atos contra o presidente
foram registrados em mais de 200 cidades

brasileiras, incluindo grandes mobiliza-
ções nas 26 capitais e no Distrito Federal,
além de protestos no exterior. Apesar da
tímida cobertura da mídia nativa, os pro-
testos tiveram ampla repercussão inter-
nacional. Além do Le Monde, mencionado
no iníciodo do texto, o britânico The Guar-
dian destacou que “dezenas de milhares”
foram às ruas para pedir o impeachment
de Bolsonaro, por sua “catastrófica res-
posta” ao vírus. O New York Times, por
sua vez, enfatizou que foram “os maiores
protestos desde o início da pandemia”. A
CNN Internacional, a rede árabe Al Jaze-
era, o jornal italiano Corriere Della Sera, o
espanhol La ­Vanguardia, a revista alemã
Der Spiegel e várias outras publicações es-
trangeiras deram destaque aos atos.
No Recife, a repressão policial aos
manifestantes foi responsável por ferir
permanentemente duas pessoas sem re-
lação com os protestos. Daniel Campelo e
Jonas Correia foram atingidos nos olhos
por balas de borracha e perderam parte da
visão. A Polícia Militar de Pernambuco­ se-
rá alvo de dois inquéritos, um para apon-
tar os responsáveis pela lesão corporal
gravíssima e outro para apurar a violen-
ta conduta dos agentes nos pro-
testos. Durante os atos, poli-
ciais também dispararam spray
de pimenta contra a vereadora
Liana Cirne, do PT, arrastaram
e prenderam o cantor Afroito e
atingiram Roberto Rocha, ad-
vogado e presidente da Comis-
são de Direito Parlamentar da
OAB de Pernambuco, com qua-
tro tiros de bala de borracha.
De forma previsível, Bolsona-
ro minimizou os atos. Segundo
o ex-capitão, eles tiveram “baixa
adesão” porque a Polícia Fede-
ral tem feito grandes operações
Recife. Dois atingidos por balas 

de borracha perderam a visão

De forma previsível, Bolsona-
ro minimizou os atos. Segundo
o ex-capitão, eles tiveram “baixa
adesão” porque a Polícia Fede-
ral tem feito grandes operações
para conter o tráfico de drogas.
“Faltou erva”, disse para apoia-
dores na porta do Palácio da Al-
vorada em tom jocoso. •

CARTA CAPITAL

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