June 16, 2020

Brasil já teve presidente em hospital público

No Brasil, o último presidente a se tratar na rede pública foi João Baptista Figueiredo. Foto: Otávio Magalhães / Agência O Globo

Guilherme Amado

Quando Boris Johnson foi à televisão britânica no domingo de Páscoa para contar que estava curado da Covid-19 e encher de elogios o Serviço Nacional de Saúde (NHS), no qual se tratou, foi inevitável lembrar de nosso Sistema Único de Saúde (SUS), muito maior e mais abrangente do que seu equivalente britânico, e me perguntar: que presidente brasileiro se internaria em um hospital do SUS?

Pois houve um tempo, não muito distante, em que era na rede pública que o chefe do Executivo se tratava, porque era lá que estava a medicina de ponta. Aos 72 anos, o Hospital Federal dos Servidores do Estado (HSE), o maior federal do Rio de Janeiro, internou e tratou cinco mandatários: José Linhares, Café Filho, Juscelino Kubitscheck, João Goulart e João Baptista Figueiredo. Todos, portanto, antes da criação do SUS, em 1988. O que houve de lá para cá? Por que os presidentes hoje preferem o Einstein ou o Sírio-Libanês e não o HSE, adornado com mármore carrara e com uma exclusiva ala presidencial, com baixelas de prata, louça fina e a privacidade que permitia que Golbery do Couto e Silva levasse até sua gaiola de passarinho quando era internado? Claro que o HSE e diversos outros hospitais se deterioraram, mas, paradoxalmente, o SUS não deixa de ser uma vitória. Especialistas da saúde pública e privada são unânimes: sem ele, a pandemia no Brasil seria uma hecatombe. Com todos os problemas, foi ele que conseguiu universalizar o acesso à saúde. É com o SUS que 75% da população conta. E é dele que deveria ser o maior legado do combate ao vírus.

O NHS é um sistema público de saúde que há 72 anos é mantido com impostos de 66 milhões de britânicos para atender todo o país, sem nada a ser pago pelo usuário na ponta. Era discutido desde o começo do século passado, mas só em 1948, com um Reino Unido devastado pela Segunda Guerra Mundial, saiu do papel. É o segundo maior sistema de saúde pública do mundo, perdendo apenas para o SUS, que nasceu exatos 40 anos depois e guarda algumas diferenças que devem ser sublinhadas.
O SUS recebe cerca de R$ 105 bilhões por ano e atende 75% da população brasileira, o equivalente a 153 milhões de pessoas — o restante recorre aos planos de saúde. O NHS atende menos da metade disso e recebe anualmente US$ 170 bilhões de investimento.

Políticos e críticos do SUS costumam destacar a corrupção e a má gestão como as principais causas para as deficiências do sistema, mas há um indiscutível subfinanciamento, mesmo se a comparação se restringir ao Brasil. A saúde suplementar, que atende só 25% dos cidadãos, investe cerca de R$ 90 bilhões por ano. Ou seja: os gastos por paciente são, em média, três vezes mais altos na saúde privada do que na saúde pública. E todo ano há milhares de pacientes de planos que recorrem ao serviço público, sem que as operadoras reembolsem devidamente o Estado.
“A relação da sociedade inglesa com seu sistema de saúde também é diferente. O NHS é visto como parte da identidade britânica”
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O país tem orgulho de seu sistema de saúde e o próprio Johnson foi acusado durante sua jornada para chegar a primeiro-ministro por ter defendido cortes — um dos momentos mais tensos de sua campanha foi quando ele, candidato, foi confrontado com o vídeo de um menino deitado no chão de um hospital, devido à falta de leito. Entretanto, no domingo de Páscoa, fez uma defesa apaixonada do serviço e de seus profissionais.

“O NHS salvou minha vida, sem dúvida. É difícil encontrar palavras para expressar minha dívida. Estamos progredindo na luta nacional porque o povo inglês formou um escudo humano em torno do maior ativo do país: nosso Serviço Nacional de Saúde. Entendemos e decidimos que juntos poderíamos manter o NHS seguro, se conseguíssemos impedir o NHS de ficar sobrecarregado. (...) É graças a essa coragem, devoção, a esse dever e amor que nosso NHS tem sido imbatível”, rasgou-se.
A rainha Elizabeth fez o mesmo, em seu quinto discurso na TV em 70 anos (breve registro: Bolsonaro fez dez em um ano e três meses), e outdoors estão espalhados pelas ruas do país com agradecimentos aos profissionais de saúde.

O NHS, entretanto, não é perfeito. Há uma demora grande na marcação de consultas, baixos salários, e, mesmo sendo um país rico, financiamento insuficiente. E tampouco o SUS é o horror que muita gente pinta. O sistema sofre com críticas em parte justas, porque de fato tem problemas graves, mas também por interesses em desmantelá-lo, com uma agenda de privatização que ganha espaço pouco a pouco, especialmente do governo Michel Temer para cá.


Boris Johnson agradeceu ao NHS, o SUS britânico, por ter salvado sua vida. Foto: Pippa Fowles / 10 Downing Street / AFP
Boris Johnson agradeceu ao NHS, o SUS britânico, por ter salvado sua vida. Foto: Pippa Fowles / 10 Downing Street / AFP
Em 2017, Ricardo Barros (PP), então ministro da Saúde de Michel Temer, defendeu o que chamou de Projeto de Plano de Saúde Acessível. O programa, que não emplacou, tinha o objetivo de ampliar a cobertura de planos de saúde à população, por meio do barateamento. Entre as propostas, estavam a de exigir que os pacientes passassem em clínicos antes de especialistas e a coparticipação do beneficiário no pagamento dos serviços usados. Seria o maior golpe ao SUS em sua história, vendendo a ilusão de qualidade no serviço privado, que todos que têm plano de saúde sabem que não é garantida.

E falta dinheiro no SUS, muito dinheiro. Roberto Medronho, epidemiologista, chefe da Divisão de Pesquisa do Hospital Universitário da UFRJ (HU), aponta o que o subfinanciamento representa na ponta: hoje, há 120 leitos a menos no HU, em comparação com 1978, quando foi aberto. E a população fluminense, neste período, claro, aumentou.

O Ministério da Saúde informou à coluna que os investimentos para enfrentar o novo coronavírus e que ficarão de legado para o SUS representam R$ 12 bilhões. Sem entrar no mérito de que a cifra desmente a propaganda da Secom, que fala em R$ 15 bilhões, houve erros por parte da pasta, conforme apontou o próprio Medronho: “Está acontecendo uma corrida internacional por insumos para combater a pandemia. O Ministério da Saúde sabia há semanas da epidemia. Por que não comprou antes? Agora, estão sendo gastos bilhões com material alugado, que depois não ficará para o SUS”.

Nada indica, entretanto, que tenha mudado a percepção da sociedade e muito menos do governo sobre a importância de aumentar repasses e melhorar a gestão do SUS. E também não parece provável que Jair Bolsonaro e outras autoridades topem trocar o Einstein pelo HSE.

Com Eduardo Barretto e Naomi Matsui

REVISTA ÉPOCA 

 


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