April 21, 2020

Isolados, ilustradores desenham além de suas janelas;



Mesmo quem trabalha sozinho, como os ilustradores, está sentindo a ansiedade subir na quarentena.
Um não vê a hora de voltar ao futebol de fim de semana, especialmente ao terceiro tempo de cerveja com amigos. Outra está se aperfeiçoando no ioiô e irritando os vizinhos com a caneta laser. O terceiro reclama que, com a família em casa, o reino encantado do cartunista egoísta erudito foi invadido pela anarquia e leveza de um jardim de infância improvisado.

Dois deles estão cuidando das mães idosas. A preocupação aumenta quando pensam que mundo vão encontrar quando essa pandemia passar.

Enquanto isso, a pedido da Folha, desenham o que veem de onde estão.



    Daniel Kondo, 49, em Punta del Este (Uruguai)
    “Temos enfrentado a quarentena com muita paciência. A divisão das tarefas domésticas e as alternativas para evitar o tédio estão em alta. O trabalho está bastante inspirador, porque é um momento de profundas
    reflexões e de produções de conteúdo mais maduras e contundentes. Tenho o privilégio de olhar o mar e o horizonte infinito, o que não significa que ele não seja povoado por personagens da literatura e seres fantásticos.”




    André Dahmer, 45, em Nova Friburgo (RJ)
    “Fui pego de surpresa. Vim buscar minha filha para voltar ao Rio, mas meus pais, que já estavam na quarentena, julgaram que seria mais seguro ficarmos na serra, onde estou há 16 dias. O comércio fechou e eu só tenho 300 folhas de papel para desenhar. Quando acabar, terei que ir para outra cidade comprar material. Estou passando uma quarentena, dentro do possível, tranquila, com as crianças correndo pelo jardim do sítio.”​



    João Montanaro, 23, no Bom Retiro, São Paulo (SP)
    “Da janela da casa da minha namorada, vejo o Bom Retiro. Famoso pelo seu comércio popular, o bairro agora tem as ruas vazias e apenas mercados e farmácias permanecem abertos. Foi improvisado um espaço para eu desenhar. Dentro do escritório dela, colocamos uma mesa inclinada, uma cadeira da sala e um tablet. Quando não estamos trabalhando, cozinhamos, limpamos a casa e, entre uma ou outra briga, tentamos terminar um quebra-cabeça de duas mil peças.”





    Angelo Abu, 45, em Santo André (BA)
    “Há alguns anos eu vinha exercendo um modelo de vida seminômade que minha profissão permitia. Com o sedentarismo repentino que as circunstâncias impuseram, acabei optando por ficar perto de quem precisaria mais de mim. Minha mãe, de 72 anos, vive no sul da Bahia e aluga quartos para turistas no fundo do quintal. Ocupei um deles e hoje cumpro a função de ser seu intermediário com o mundo externo. A natureza ao redor às vezes dá a ilusão de que tudo segue como era antes se não fossem as janelas sempre abertas dos meios de comunicação, que a todo instante não me deixam esquecer de onde estamos: não apenas isolados, mas também mais voltados para nossas discrepâncias sociais, para a comunidade em que vivemos, para nossos pais e principalmente, para dentro de nós mesmos.”




    Benett, 46, em Curitiba (PR)
    “Percebi que a minha ansiedade aumentou consideravelmente. Meus dois filhos e a minha esposa invadiram minha solidão silenciosa. Enquanto leio notícias, a trilha sonora de fundo é Peppa Pig. O reino encantado do cartunista egoísta erudito e politizado foi invadido pela anarquia e leveza de um jardim de infância improvisado. A vida acelerou dentro de casa, apesar de que, vendo pela janela, o mundo parece se mover em câmera lenta.”




    Galvão, 42, em Florianópolis (SC)
    “Tenho a sorte de morar numa casa com quintal. Ao mesmo tempo em que esse espaço parece diminuir com o passar dos dias, alguns medos tomam forma e aparecem sorrateiramente entre os arbustos. Tem sido um exercício uma rotina com as crianças e a sanidade para seguir acreditando que lá fora o mundo voltará ao normal algum dia. Tenho produzido bastante. É uma maneira de desafogar as paranoias e tirar alguma risada em meio ao fim do mundo.”




    Fabiane Langona, 35, em Santos (SP)
    “Gosto de ver os idosos passeando com seus cães (ou os cães passeando com seus idosos). Também temos um céu enorme, irritantemente azul. Irritante porque me inclino da janela do 11º andar para sentir a brisa gostosa do mar, que entra como um convite, sacudindo as cortinas e plantas. O que se vê da janela vai além dos sentidos. O mais solitário numa quarentena é não ter imaginação para ver além da matéria, do exposto logo em frente.”



    André Stefanini, 30, em Itapevi (SP)
    “Estou bem sobrecarregado e isso tem sido muito ruim porque acabo não tendo um respiro. Fico o dia todo no quarto, trabalhando ou dormindo. Não estou com tanta facilidade de produzir porque a criatividade não está fluindo tão bem quanto antes. Está bem mais desgastante. Estou encarcerado, não tenho contato com o mundo afora, mas ao mesmo tempo temos a internet e a produção ainda
    continua muito ativa.”




    Adão Iturrusgarai, 55, em Villa Carlos Paz (Argentina)
    “De certa forma minha vida mudou pouco. Trabalho em casa, caminho pelo pátio, me exercito e, às vezes, com todo o cuidado, vou às compras. Só sinto falta do futebol semanal com os amigos e na sequência o ‘terceiro tempo’ regado a vinho ou cerveja. As ideias e o vírus estão no ar dividindo o espaço, o que afeta a inspiração. Eu preferia estar fazendo piadas da Aline, mas, neste momento, a coisa perdeu um pouco a graça.”




    Claudio Mor, 39, em Itaim Paulista, São Paulo (SP)
    “Estou isolado com a minha mãe, que tem 75 anos, para cuidar dela na quarentena. Onde moro não falta alimento, mas juízo nas pessoas, que parecem estar de férias e enxergam a pandemia como uma grande piada. No momento tenho conseguido pagar minhas contas, mas e amanhã? No mundo pós-pandemia, com a economia mundial em frangalhos, o quão essencial será ter um cartunista ou ilustrador na sua folha de pagamento? O que me deixa mais assustado é não saber se haverá um mundo lá fora para
    o qual eu poderei voltar.”




    Lucas Viotto, 33, em Santa Cecília, São Paulo (SP)
    “Fui impactado pelo coronavírus, pois trabalho principalmente com cartazes para divulgação de festas e artes para DJs e músicos. Como tudo parado, fico sem clientes. No desenho, estão minhas filhas Elisa, 1, e Nina, 4. Às vezes, digo para a mais velha contar quantas pessoas estão na rua ou quantas estão de máscara porque ela está aprendendo matemática. As duas estão livres para ficarem nuas em casa, mas presas e com essa vista horrível, sem conseguir enxergar muita coisa além de prédios e janelas.”




    Estela May, 19, em Santa Cecília, São Paulo (SP)
    “As músicas que eu escuto têm determinado o que eu sinto, que muda aproximadamente a cada três minutos. Só tenho assistido filmes com personagens que tem meu nome, assim eu finjo que faço parte de algum plot maior. Eu era ruim no ioiô, mas agora sei fazer ele subir e descer por dois minutos ininterruptos. Tenho a sensação estranha que os vizinhos me odeiam. Usei minha caneta laser pra irritar alguns. A inspiração continua surgindo em pequenos detalhes, tipo a maçaneta feia do quarto da minha irmã. No mais, tá uma merda.”




    Luciano Salles, 45, em Araraquara (SP)
    “Geralmente passo bastante tempo dentro de casa, no estúdio, mas o fator pandemia afetou meu trabalho, aumentou a ansiedade. Traçar linhas sempre foi natural pra mim, mas o desenho tem exigido muito esforço e percebo uma sutil diferença na peça final. Estava desenhando meu novo trabalho em quadrinhos e, desde a reclusão, não consegui dar continuidade. Procuro me controlar com meditação e me concentrando na respiração.”

    folha de são paulo

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