April 17, 2020

Como Jekyll e Hyde, Mandetta também contribuiu para voo cego na crise




Fernando Canzian

Diante da inépcia agressiva do presidente Jair Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta ganhou ares de herói racionalista na condução da crise da Covid-19. Por trás de sua aparente calma e segurança, no entanto, não foram pequenas as derrapadas do ministro da Saúde.

O aspecto mais imperdoável foi a demora em acordar para a necessidade de massificar testes de casos suspeitos. Além de não permitir saber por onde o vírus anda, essa falha custará caro ao país, que estará mais infectado do que poderia quando decidir relaxar o isolamento.

A pasta também foi lenta na mobilização para comprar equipamentos de segurança às equipes médicas e não se moveu para tentar normatizar as regras de confisco desses materiais pelos estados e municípios —gerando arbitrariedades em que hospitais chegaram a perder máscaras até para porteiros de edifícios por decisão da Justiça do Trabalho.


O ministério também não soltou uma regra única para as 47,7 mil equipes de agentes de saúde informarem casos suspeitos, levando a uma subnotificação gigantesca. Por último, foi só nesta semana que decidiu criar uma plataforma única onde os hospitais deverão informar a ocupação de leitos de UTI.

Muitos desses aspectos foram levantados antecipadamente por especialistas e em reportagens nesta Folha, mas o atraso nas medidas ainda mantém o país numa espécie de voo cego, e sem que tivesse aproveitado a chegada em câmera lenta da epidemia para acelerar providências técnicas.
O primeiro caso de infecção pelo coronavírus no Brasil foi detectado no dia 25 de fevereiro, de um homem que viajou para a Itália, país que tinha então cerca de 400 casos confirmados e duas dezenas de mortos.

Na época, China e Coreia do Sul já eram modelos acabados em que o Brasil poderia se espelhar para lidar com a crise, fazendo, por exemplo, lockdowns regionalizados e a massificação de testes para casos suspeitos.

A compra maciça de testes pelo Brasil só seria anunciada em 21 de março, quase um mês após o primeiro caso, embora ninguém ainda saiba exatamente onde esses kits se encontram. Como comparação, Chile e Peru hoje fazem mais testes que o estado de São Paulo, tanto em números relativos à população quanto absolutos.

Quando o Brasil entrou em isolamento, ele também atingiu igualmente cidades distantes sem casos confirmados e os grandes centros urbanos —de onde pessoas não testadas puderam viajar livremente, espalhando rapidamente o vírus.

Por fim, numa variação de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, o ministro médico que desempenhou seu papel de forma irretocável em bons momentos acabou dominado pelo político que se escondia em Mandetta.
Em vez de reforçar sua altivez e técnica e deixar Bolsonaro brincado sozinho com a cloroquina, o ex-deputado federal do DEM entrou no jogo do presidente, com idas e vindas para medir sua força política diariamente.

Quando chamou de “sórdidos” os meios de comunicação no fim de março para agradar Bolsonaro, Mandetta já dava sinais de confundir o seu papel e de subestimar o caráter do presidente, que finalmente acabaria criticado pelo ministro no horário nobre do Fantástico.

Ainda assim, e para a grande sorte de Mandetta, a bomba da falta de testes, das UTIs lotadas e das mortes às centenas agora explodirá na cara de Bolsonaro.

FOLHA

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