March 9, 2020

Linchar Suzy não nos protegerá


Suzy Oliveira, detenta trans que foi entrevistada por Drauzio Varella

Thiago Amparo

Deixa-me te contar um segredo: já tentamos linchamento e não funcionou. Lá no Século 17, chamava-se suplício. Ordenança na França de 1670, que vigorou até a Revolução Francesa, já previa penas corpóreas. Ali, num espetáculo público, em geral assistido por centenas de pessoas.

Eis a descrição de Soulatges, no livro “Traité des crimes” de 1762, com o perdão do aspecto gráfico: “A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte: por crimes mais graves, [podem ser condenados] a serem rompidos vivos e a expirarem na roda, depois de lhes terem arrancado os membros; outros a serem rompidos até à morte natural, outros a serem estrangulados e depois rompidos, outros a serem queimados vivos, outros a serem puxados por quatro cavalos, outros a serem decapitados e outros, por fim, a terem a cabeça partida.” Um espetáculo de horror.

Conta Foucault em “Vigiar e Punir” que prisão como conhecemos hoje nasceu, entre séculos 18 e 19, como uma forma de racionalizar a pena: punia-se com privação da liberdade ao invés de dilacerar corpos. Mesmo vivendo em tempos onde o controle disciplinar perpassa a todas as esferas da vida humana, muito além da prisão, e mesmo vivendo em tempos de complexos industriais prisionais nunca dantes vistos, persiste em nós o desejo pelo horror explícito.

Internet é hoje a grande praça pública onde linchamentos ocorrem. Eu te vejo, leitor: na luz dos olhos teus refletem os olhos dos transeuntes franceses do século 17. O prazer que te sentes com o horror do espetáculo público de linchamento. Percebes, leitor, com quem teve a falsa inocência retirada à força, que pessoas presas como Suzy Oliveira possam ter realizado um ato barbárico como foi o ato por ela cometido e que por lei corretamente hoje paga.

Pensarás que o cárcere – que hoje abriga mais de 700 mil pessoas – está repleto de pessoas que tenham cometido atos como esse. Não está. Pensas que, se Drauzio a tivesse rompido a cavalos como um juiz francês que não é, seria feita a justiça. Não seria. A humanidade de Drauzio diante de Suzy te incomoda porque guardas em ti a espera do linchamento físico que não virá e guardas no linchamento digital a última esperança.

O problema com linchamento, embora sedutor, é que ele é invariavelmente hipócrita. Da violência horrenda contra uma criança, ministros e deputados armam uma plataforma política que pouco tem de solidariedade real com a família da vítima. Quem hoje clama por linchamento público lavará suas mãos de sangue diante do presidente cujo ídolo (Ustra) torturara mulheres grávidas, e cujo estadista preferido (Stroessner) estuprara crianças em série? Quem dera pudéssemos olhar a nós mesmos no espelho e percebermos que à violência do crime de Suzy nos cabe impor a lei e não igual violência.
Outro problema com linchamento é que, enquanto estamos nele inebriados, a nós escapa a razão. Multidões aplaudem quando corpos são dilacerados, não quando se estende o abraço a quem cometeu a barbárie.

Linchamento digital te fará esquecer, meu caro leitor, que a maioria das mulheres transexuais e travestis presas hoje está presa por crimes patrimoniais ou de drogas, não crimes sexuais. Te fará esquecer que, até decisão do STF que facultou a mulheres transexuais ocupar “espaços de vivência específicos” em unidades prisionais femininas em julho de 2019, violência, inclusive sexual, contra elas era uma constante no cárcere – e em certa medida ainda é.

Te fará esquecer que pesquisas sérias estão repletas de histórias de violência contra pessoas trans no sistema de justiça - como revelam os livros “Pessoa Afeita ao Crime: Criminalização de Travestis e os Discursos do Tribunal de Justiça de São Paulo” de Victor Siqueira Serra e “Captive Genders” de Eric Stanley e Nat Smith. Te fará esquecer que a expectativa de vida das pessoas trans no Brasil é de 35 anos, metade do resto da população.

Em momentos como esse, é a fúria do linchamento que impera. Que ele não turve nossas visões. Não confundamos linchamento com punição, tampouco confundamos tratar o outro humanamente com condescendência pelo ato que tenha cometido. É por trás da turbidez que o linchamento impõe à nossa visão que habitam as reais questões.

O que momentos de linchamento como esse requer de nós é que sejamos os poucos a não o aplaudir. Aí mora nossa humanidade.

Thiago Amparo
Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito
SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.

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