April 14, 2019

O INVERNO ETERNO DA IRLANDA DE GAME OF THRONES

The Dark Hedges, o corredor de árvores sombrias em que se gravaram cenas de Game of Thrones, tornou-se um dos pontos mais visitados da Irlanda. Foto: Charles McQuillan / Getty Images

Juliana Resende, de Belfast

A produção televisiva mundial vive sua década de ouro. Tomou para si o papel de renovação da linguagem audiovisual que por muito tempo pertenceu ao cinema. Transmite agora para espectadores de todo o globo num mesmo instante. A competição se acirra com gigantes como HBO, Netflix e Amazon Prime Video somando quase 300 milhões de assinantes nos cinco continentes. A expressão “espectadores de todo o mundo” define com propriedade aqueles que acompanham a série Game of Thrones (GoT), cuja oitava e última temporada estreará em 14 de abril para 140 milhões de assinantes da HBO em mais de 170 países, incluindo o Brasil.
Durante a maior parte de sua história, a televisão foi um meio de alcance nacional. É certo que séries como Dallas e Os Simpsons atraíram grandes audiências globais, mas o comércio internacional de televisão sempre exigiu atrasos. Uma série de televisão poderia ser transmitida em diferentes países, mas frequentemente ocorriam atrasos de meses — até anos — em relação à transmissão inicial do país de origem.
A televisão paga e a internet alteraram radicalmente a experiência de ver TV mundo afora. Agora é possível que uma série lance novos episódios para espectadores de todo o mundo, com milhões compartilhando em tempo real os mesmos personagens e histórias. Coube a Game of Thrones, série produzida pela emissora de TV por assinatura HBO, a vanguarda desse fenômeno, do qual se aproveitam hoje serviços de streaming como Netflix ou Amazon Prime. GoT custou uma cifra gigantesca — especula-se que a produção de 88 episódios tenha passado dos R$ 5 bilhões — e o resultado é um produto de tirar o fôlego: fotografia impecável, roteiro inteligente, personagens sedutores.

O olho do dragão. A fábula monstruosa de GoT se passa em um continente incerto, o que torna a série atrativa para todos. Foto: Cortesia HBO / Divulgação
O olho do dragão. A fábula monstruosa de GoT se passa em um continente incerto, o que torna a série atrativa para todos. Foto: Cortesia HBO / Divulgação

O programa é inspirado em uma série de romances de relativo sucesso e com fãs aguerridos, escritos pelo americano George R. R. Martin e publicados a partir de 1991. O cenário de fantasia de GoT ocorre em um mundo que não é geográfica ou culturalmente preciso. A HBO estreou a série em 17 de abril de 2011 nos Estados Unidos, com transmissão direta para o Brasil. Naquela época, muitos países, como França e Austrália, exibiam o programa com atrasos que poderiam se estender de uma semana a meses. Em 2014, Game of Thrones já havia se tornado o maior sucesso da HBO.



As intricadas — e às vezes quase ininteligíveis — subtramas da série inspiraram a dissecação e a análise instantâneas nas mais diversas redes sociais, incentivando mercados de TV em todo o mundo. Para impedir a pirataria e a divulgação antecipada de trechos da trama, eliminar o atraso no acesso pareceu ser a solução mais adequada. Em 2015, pouco antes do início de sua quinta temporada, a HBO anunciou que tinha acordos em 170 mercados ao redor do mundo para exibir novos episódios simultaneamente com sua transmissão nos EUA.
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O que você precisa saber sobre Game of Thrones

Game of Thrones — O Jogo dos Tronos — é uma batalha situada nos continentes fictícios de Westeros e Essos. Segue um conflito dinástico entre as casas concorrentes por sucessão ao Trono de Ferro dos Sete Reinos, com famílias nobres lutando pela independência do trono. São clãs familiares como as casas Stark, Lannister, Baratheon e Targaryen, entre outros.
Enquanto todos nos Sete Reinos lutam pelo Trono de Ferro, um exército de mortos-vivos está lentamente aumentando sua força à medida que a guerra por poder se expande. A contê-los está um exército de apátridas, a Patrulha da Noite, comandado por Jon Snow, um dos principais personagens da série.



COMO COMEÇOU
A série se inicia com a saga de Lord Eddard Stark, o líder do Norte, um dos maiores reinos de Westeros. Ele é convidado por seu amigo, o rei Robert Baratheon, para ser seu braço direito. Eles têm uma longa história juntos, desde que lutaram na guerra em que Robert derrubou o Rei Louco, Aerys II Targaryen — que acumulara inimigos depois de ameaçar queimar todos os adversários —, e tomou o poder. É durante esse conflito que as linhas de batalha, alianças e ressentimentos em Game of Thrones foram criados.
Stark descobre que o rei Robert Baratheon está no centro de um segredo chocante envolvendo sua rainha, Cersei Lannister. Ameaça expor o escândalo que poderia derrubar ela e sua família. Então também acaba morto.
Depois de derrubar o Rei Louco, Robert Baratheon havia determinado a morte de todos os herdeiros Targaryen do trono, mas falhou porque os herdeiros da Casa Targaryen escaparam e foram mantidos em segurança, em exílio, em Essos. Crescidos, Daenerys e seu irmão Viserys Targaryen começam sua tentativa de recuperar o Trono de Ferro.
Como eles podem fazer isso sem um exército, apoio e finanças?
Com a ajuda de um povo feroz e nômade chamado Dothraki, Daenerys lentamente começa a acumular forças. O ponto de virada acontece quando ganha, como presente de casamento com o líder dos Dothrakis, três ovos de dragão. Ela se torna então a Mãe dos Dragões.



A LINHAGEM ADVERSÁRIA E JON SNOW
Depois de Eddard Stark ter sido assassinado e seus filhos terem sido forçados a se dispersar, Jon Snow se manteve a salvo porque era filho ilegítimo de Stark e não reconhecido publicamente.
Durante a maior parte do tempo, Snow serviu na Patrulha da Noite — uma antiga ordem de soldados que guardam a muralha que delimita as fronteiras do Extremo Norte dos selvagens — até assumir o comando do Norte.
Depois de ser capturado pelos selvagens, descobre que o exército dos mortos está prestes a invadir os reinos dos homens, que precisarão se unir e lutar contra eles.
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“O inverno está chegando.” A frase se tornou a máxima de Game of Thrones. A origem está em As crônicas de gelo e fogo (no original, A song of ice and fire), a série de livros criada por George R.R. Martin. Significa estar sempre alerta para os perigos que vêm dos dias frios e sombrios — ou das adversidades da vida, quando não a própria morte, metaforicamente falando. E faz todo o sentido na terra do Inverno Eterno. É desse lugar glacial que supostamente vêm os Outros, seres com aparência de peixes congelados há 8 mil anos, chamados de Caminhantes Brancos e cuja habilidade no manejo de lanças de gelo lhes deu uma outra alcunha, mais respeitosa: Deuses Gelados.



O continente imaginário no mapa de Game of Thrones se parece com a Irlanda do Norte. Viajamos cerca de 40 minutos do centro de Belfast até Toome, a vila onde foi construído Winterfell, o ancestral castelo localizado no meio da província nortenha e centro do poder da Casa Stark, a família principal da série. Erguido em 11 semanas — do desenho à construção — com madeira e compósito, Winterfell impressiona.
Adornado com objetos reais construídos para o cenário, como carroças de toras, baldes e lamparinas de ferro e flechas de bambu, Winterfell chafurda no lamaçal. Todos circulam em botas de borracha, menos o elenco, adaptado às condições rústicas do tempo norte-irlandês vestindo seus figurinos, portando suas armas e usando quase nenhuma maquiagem (os personagens ficam mais autênticos).
Pouco se sabia da oitava temporada quando ÉPOCA visitou o set de GoT, cerca de um mês após o início das filmagens. Estávamos em meados de novembro de 2017 e os produtores da série exigiram o compromisso de embargo até as vésperas da estreia, um ano e cinco meses depois.
Fotos não foram permitidas — nossas câmeras dos celulares foram lacradas por membros da produção — e nada que pudesse revelar o conteúdo da derradeira temporada foi dito ou insinuado nas dezenas de entrevistas com atores, com destaque para o casal de protagonistas Jon Snow (Kit Harington) e Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) — sim, eles se envolvem romanticamente —, produção e roteiristas. O clima no set era de vozes roucas e emocionadas relatando a leitura final do script, choro e almas desconcertadas vagando sob a neve daquele inverno que está sempre chegando também na Irlanda.


Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) e Jon Snow (Kit Harington) são os astros da última temporada. No set, os dois revelam cumplicidade, humor e certa preguiça. Foto: Cortesia HBO / Divulgação
Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) e Jon Snow (Kit Harington) são os astros da última temporada. No set, os dois revelam cumplicidade, humor e certa preguiça. Foto: Cortesia HBO / Divulgação

A garoa inclemente deixava tudo escorregadio. Nada que fizesse os diretores David Benioff e D.B. Weiss arrefecerem nas filmagens. Eles cumprimentaram com pressa os oito jornalistas presentes — ÉPOCA era o único veículo brasileiro — e voltaram ao trabalho. Acompanhamos as filmagens nos monitores e in loco, no cantinho de cada cena: Jon Snow e Daenerys chegam a Winterfell a cavalo. Há fogo de verdade e neve de mentira (papel); fumaça e lama, muita lama.
A cena, sem diálogos, é repetida cerca de dez vezes. Tudo porque, ao descer do imponente (e treinado) cavalo preto, a capa de Snow agarra na ponta da espada. É divertido ver Kit Harington atuando ao vivo — ele parece bem mais baixinho do que o 1,73 metro divulgado. Tudo a caráter e muito natural. O realismo é um dos grandes trunfos de Game of Thrones. E o cenário já “pronto” da Irlanda do Norte é a perfeita tradução desse mundo, tanto que o país se beneficiou muito economicamente por ter conseguido atrair a série aos condados de Antrim (onde está Belfast), Fermanagh e Londonderry.
Para Kit (apelido de Christopher) Harington, com 30 anos na data de nosso encontro (hoje ele tem 32), a fase “pós-Thrones” ainda era uma incógnita. “São oito anos de série, praticamente todos os meus 20 anos”, exagerou o ator. “Algo inesperadamente bem-sucedido para alguém que nunca havia trabalhado em televisão, que nunca esteve tanto tempo em uma instituição. Fiz amigos, aprendi muito e esta é a maior experiência de minha vida.”



“A TEMPORADA FINAL DE GAME OF THRONES REVELARÁ QUEM FICA COM A COROA DOS SETE REINOS FICTÍCIOS. MILHÕES PELO MUNDO ASSISTIRÃO SIMULTANEAMENTE AOS CAPÍTULOS FINAIS A PARTIR DE ABRIL — PARA EVITAR PIRATARIA”
Oito temporadas depois, Jon Snow ainda conserva aquele ar blasé que fez da fala indignada da guerreira Ygritte (Rose Leslie) — “You know nothing, Jon Snow” (“Você não sabe nada, Jon Snow”) — tornar-se um meme nas redes sociais. “Você chega a este set gigantesco e não tem a menor ideia do que poderá superar isso. Provavelmente, nada”, filosofou. Harington preferiu não ter acesso ao script da última temporada antes da leitura coletiva.
Emilia Clarke apareceu de supetão no trailer apertadíssimo onde nos amontoamos para trocar uma ideia com Jon Snow (quem perderia a oportunidade?) enquanto o ator fumava um cigarro. Clarke contou rindo as reações “impagáveis” do colega durante a leitura coletiva do texto da série. Harington se explicou: “Não queria estragar a surpresa. Fiquei muito, muito emocionado”. Depois, confessou: “OK, não li por pura vagabundagem (risos)”.
“Qual é a sensação depois de Jon e Daenerys irem para a cama? Podemos esperar cumplicidade entre ambos na disputa pelo trono?”, perguntei ansiosa. Emilia Clarke corou, apesar de parecer extremamente extrovertida. “O amor é algo petrificante para ambos os personagens, pois eles têm um histórico bem complicado nesse quesito”, disse ela, sem dar, claro, pistas de quem fica com o trono afinal.



Não é muito fácil explicar a disputa. Na série, Jon Snow e Dany (como Daenerys também é chamada) são parentes — ela é tia dele. Ninguém sabe, mas o irmão mais velho de Daenerys, Rhaegar, teve em segredo um filho com Lyanna Stark, que morre pouco depois de dar à luz. Antes, porém, ela revela o verdadeiro nome do menino — Argon Targaryen — a seu irmão Eddard “Ned” Stark, que acolhe o menino como seu filho bastardo — Jon Snow —, deixando-o para ser criado em Winterfell. Crescido, Jon se alista no exército da Patrulha da Noite, a qual passa a comandar antes de se tornar o Rei do Norte. Harington adianta que o relacionamento entre Snow e Daenerys vai dar a Game of Thrones “mais uma love story digna do épico”.
“O SET NA IRLANDA É FRIO E PARECE UMA CIDADE AFUNDADA NO PÂNTANO — TODOS ANDAM DE GALOCHAS. HÁ MEDIDAS EXTREMAS PARA EVITAR VAZAMENTOS: NADA DE FOTOS, NEM CELULARES, NEM DICAS SOBRE O DESTINO DA TRAMA OU DOS PERSONAGENS”
A determinação de Snow e a obsessão de Daenerys alimentarão a disputa pelo trono. Será uma briga em pé de igualdade entre gêneros. Vestida num casaco de “pele” branca ao estilo Dothraki (o povo nômade de Essos, outro continente em que a moça viveu exilada), que virou anúncio de uma loja de casacos de peles verdadeiras sem autorização da HBO, Emilia Clarke prova que é merecedora do poderoso título de A Não Queimada (“The Unburnt”), entre outros mais óbvios como Rainha do Dragão. A atriz reconheceu que a sorte bateu a sua porta quando conseguiu o papel (dado a outra colega no programa-piloto, dispensada por razões desconhecidas). Daenerys empoderou-se como heroína feminina ao longo das temporadas. “Ela ganhou uma escala que eu mesmo não percebi, estando muito presa em não estragar a oportunidade de interpretá-la.”



“Fui tendo a consciência de sua importância como uma mulher absolutamente forte quando ela foi ganhando terreno na mídia e conquistando a audiência. Resultado: aumentou a responsabilidade e também a honra.” A obstinada personagem desafia Jon Snow: “Fui vendida como esposa. Fui acorrentada e traída, estuprada e descartada. Você sabe o que me manteve de pé durante todos os anos no exílio? Fé. Não em quaisquer deuses, em mortos ou lendas. Em mim mesma. Nasci para governar os Sete Reinos, e eu vou”, resume uma das falas da personagem.
Aos 32 anos, a atriz se mostra divertida. Não apenas pelo nome, Clarke daria uma excelente Emília, a espevitada boneca do Sítio do Pica-Pau Amarelo, definida pelo Visconde de Sabugosa como “uma tirana sem coração. (...) A criatura mais interesseira do mundo” — só os fãs de GoT entenderão a comparação.
Em 2018, Clarke foi vista como Kira, em Solo: uma história Star Wars — filme da saga Guerra nas estrelas que mostra as andanças de Han Solo e Chewbacca antes de se juntarem à Rebelião. Falando em prequela — episódios com histórias anteriores à primeira temporada —, é sabido que GoT aderirá à fórmula. A HBO confirmou que está desenvolvendo cinco histórias. Bryan Cogman, roteirista e produtor executivo desde a primeira temporada, está encarregado de tocá-las. No entanto, não se sabe mais nada: atores, datas etc.



O fato é que se aproxima a hora de Emilia Clark dizer adeus a Daenerys e a suas madeixas oxigenadas. “É assustador”, sussurrou a atriz. E Harington, à cabeleira de Jon Snow (ele chegou a usar peruca no piloto da série e depois deixou o cabelo crescer).
Se o final era o que esperavam? “Não há outra forma mais magnânima de encerrar a saga”, definiu Clarke, elogiando o texto, como todos os demais atores. “Haverá lágrimas, isso eu posso garantir.” Fica a dica. “Sabemos que não haverá nada parecido a Game of Thrones em nossas vidas. Por isso, é bobagem esperar que algo assim se repita”, disse Harington, que, segundo o International Movie Database (IMDb), recebia US$ 500 mil por episódio na primeira temporada. Os cachês do elenco principal ganharam muitos zeros de lá para cá.

Lena Headey , que interpreta a rainha Cersei Lannister, livrou-se da peruca loira lisa com o fim de GoT e agora ouve reclamações de fãs contra seus cachos castanhos naturais. Foto: Cortesia HBO / Divulgação
Lena Headey , que interpreta a rainha Cersei Lannister, livrou-se da peruca loira lisa com o fim de GoT e agora ouve reclamações de fãs contra seus cachos castanhos naturais. Foto: Cortesia HBO / Divulgação

Foram dois dias em Belfast, acompanhando as filmagens, visitando cenários e entrevistando atores. Enquanto todo cuidado era tomado para que não houvesse spoilers nem pistas, a cada hora havia acesso a alguém do elenco, ora a caráter, ora sem figurino. As melhores conversas foram, paradoxalmente, com a gigantesca Gwendoline Christie — a intimidadora Brienne de Tarth na série —, e a pequena Bella Ramsey, que dá vida à geniosa e inteligente menina Lyanna Mormont. Ambas se tornaram personagens encantadoras, sem forçar a barra para agradar.



Atriz inglesa de 1,91 metro e 40 anos, Gwendoline Christie está completamente tomada pelo espírito guerreiro de Brienne. “Batalhei muito por este papel. Perdi peso, devorei os livros de R.R. Martin e chorei quando me chamaram”, orgulhou-se. “Estou muito chateada em ter de deixá-la.” Christie parecia inconsolável, porém ciente do poder que a personagem adquiriu ao longo das temporadas. Brienne começou tímida em 2012 e chegou a 2018 com ares de heroína. Só falta disputar o trono.
Há quem diga que, sim, Brienne vai para o trono, tamanho o sucesso da personagem — algo inesperado devido a seu visual e modos nada convencionais. Ela descreve a si própria como “a única criança que os deuses deixaram meu pai manter. A mais estranha, não apta para ser menina ou menino”. “Miss Tarth é forte, máscula, excelente espadachim e pró-comunidade, com um senso de justiça e uma coragem pouco aceitáveis numa mulher na Idade do Ferro. Brienne não imita os homens. É persuasiva e perspicaz. Sabe negociar e nesta temporada não vai decepcionar”, disse Gwendoline Christie. “Embora tenha dado tudo de mim para interpretá-la, nunca achei que seria um sucesso, pois Brienne está muito longe do que estamos acostumados a ver em personagens femininas no gênero capa e espada. O mais surpreendente é que todos parecem aprovar essa personagem”, afirmou a atriz.

Emilia Clarke (à direita) disse que driblou a timidez para protagonizar cenas na cama com Kit Harington. Foto: Cortesia HBO / Divulgação
Emilia Clarke (à direita) disse que driblou a timidez para protagonizar cenas na cama com Kit Harington. Foto: Cortesia HBO / Divulgação

Ex-ginasta e modelo, ela se destaca. Tem aparência natural de guerreira, à “paisana” ou vestindo aquela armadura que deixa seu look loiro-glacial-joãozinho (ela foi o rosto da campanha outono-inverno 2015 da estilista Vivienne Westwood) e seu grande porte ainda mais impressionantes. A atriz usa uma camisa preta e jeans. Tudo simples e elegante. Originalmente atriz de teatro, Christie colocou toda a energia e carga dramática que vivenciou na Royal Shakespeare Company em Brienne — a única filha e sobrevivente da Casa Tarth.
Com a mãe e os irmãos mortos, Brienne foi criada pela “septa” Roelle, que lhe ensinou que todos os homens mentem (se ela quiser a verdade, basta olhar no espelho todas as manhãs) e destruiu sua autoestima — só parcialmente recuperada quando passou a ser treinada para combate pelo mestre de armas da Casa Tarth, Sor Goodwin, destituindo — quando não duelando, esfolando, quebrando e vencendo — todos os pretendentes que seu pai, Lord Selwyn Tarth, arrumava. O amigo da família Sor Humfrey Wagstaff, por exemplo, exigiu que ela largasse a luta e as armas para que ficasse mais feminina, antes do casamento. Brienne disse que assim o faria — se ele a vencesse em combate. A luta resultou em três ossos — dele — quebrados, assim como a promessa de casório.


A ex-modelo Gwendoline Christie interpreta a guerreira Brienne.
A ex-modelo Gwendoline Christie interpreta a guerreira Brienne. "Perdi peso e devorei os livros de R.R. Martin", revelou. Foto: Cortesia HBO / Divulgação

“A cena mais intensa de todas que fiz até agora foi a da briga com Rory (McCann, ator que interpreta Sandor, o Cão)”, lembrou Gwendoline Christie. “Saímos na mão, sem armas. Mas a experiência não foi só física. Foi emocional”, contou. O nariz quebrado mais de uma vez não tira o brilho de seus olhos azuis. Sua aparência andrógina (conforme descrita pelo escritor George R.R. Martin) não deixa dúvidas: Brienne incorpora generosas porções da carga feminista de GoT — que não é pouca. Seu senso de honra e força a faz lutar de igual para igual com os cavaleiros. “É uma outsider num mundo hostil. Por fora, ela é dura e impenetrável; por dentro, uma romântica quixotesca. Sua metamorfose ao longo da série me fascina”, derreteu-se Christie. “Ainda mais porque não fizemos nada para aliviar sua complexidade. Vamos além das aparências e além das convenções.”
Como atriz, a estatura de Christie triplicou por causa de GoT — ela foi escalada para blockbusters como Star wars: o despertar da Força e Star wars: os últimos jedi, além de Jogos vorazes: a esperança — O final. Ainda assim, apesar de indicações a vários prêmios, só ganhou o Empire Hero Award 2015 por sua Brienne. “Fiz de tudo por ela — dieta, kickboxing, esgrima… Para alguém que só tinha feito uma ponta num filme de Terry Gillian e nada em TV, Brienne era muita areia…”, admitiu. O caminhão engatou a primeira e foi: “Por isso a transformação minha na personagem, e da personagem na série, ganhando confiança, é tão real”.



“A IRLANDA DO NORTE EXPLORA O POTENCIAL DAS LOCAÇÕES COM CASTELOS MEDIEVAIS E PAISAGENS NATURAIS ÚNICAS, NAS QUAIS GELO E SOMBRA DÃO O CLIMA ADEQUADO PARA A SÉRIE”
Autoconfiança é uma conquista comum às mulheres de Game of Thrones. E começa de menina. Bella Ramsey, de 14 anos, já se mostra uma grande atriz num corpinho esguio que vai arregimentando corações e mentes com sua incrível Lyanna Mormont. Na falta de uma espada, sua língua é afiada, suas frases cortantes e suas conclusões mortais. Lyanna é tão desafiadora para Ramsey quanto para todos que contracenam com ela em GoT. “Para entrar no clima, eu sempre pergunto ‘por que’ e não ‘como’.” Essa curiosidade faz Lyanna ser adorada pela audiência e respeitada pelo elenco, mesmo que sua mãe a acompanhe nas filmagens e que censure alguns episódios de GoT por serem “impróprios para sua idade”.
Pessoalmente, Ramsey é como Lyanna: sagaz e direta, só que com mais senso de humor. Ela acaba cada frase — ditas com aquela lucidez típica de Lyanna — com uma risadinha marota. A garota está vivendo dias atribulados. “Nunca imaginei que as pessoas me reconheceriam na rua e ficariam felizes por isso!” Ela contou que na primeira vez que foi reconhecida estava no banheiro da estação de trem St. Pancras International, uma das mais movimentadas de Londres. “Foi engraçado! Eu estava apertada! (risos)” O que mais mudou na vida de famosa? “Tudo! Agora vou à escola on-line e não tenho tanto tempo para jogar futebol — do que realmente gosto”, contou. Se Lyanna encoraja outras meninas a fazer — e dizer — o que querem e pensam? “Sim! Acho que ela ajuda as pessoas a perceber a importância de lutar pelo que acreditam.”



No set de Winterfell, agasalhada com um casaco maior que ela e usando galochas de borracha, Bella Ramsey parece viver num sonho acordada. “Aqui é tudo tão real que fica fácil atuar”, disse ela, que vem da mesma escola para atores que Joe Dempsie (outro ator da série): The Actors’ Workshop, em Nottingham, Reino Unido, uma das poucas que oferecem aulas a preços módicos no Reino Unido. GoT é o primeiro trabalho de Ramsey — “catapultou-me para outras coisas, o que é sensacional”, completou a atriz mirim, que estrela o curta Zero e pode ser vista em filmes como Judy (sobre a vida de Judy Garland, estrelado por Renée Zellweger).

Os figurinos de GoT exigem o trabalho de 80 pessoas, entre costureiras, alfaiates, aderecistas e artistas. Foto: Cortesia HBO / Divulgação
Os figurinos de GoT exigem o trabalho de 80 pessoas, entre costureiras, alfaiates, aderecistas e artistas. Foto: Cortesia HBO / Divulgação

Fãs apaixonados de GoT se multiplicam em viagens turísticas a locações na Irlanda que representam lugares-chaves na série, como Dark Hedges (nas regiões de Stranogum, Lough Neagh e Cushendun Caves), Blakes of the Hollow (Enniskillen) e Owens (Limavady). A capital Belfast — mais conhecida por ter sido o epicentro dos conflitos chamados The Troubles, a guerra civil entre o grupo separatista Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês), grupos paramilitares pró-anexação da Irlanda do Norte pelo Reino Unido e o Exército britânico, que durou 30 anos, até o final dos anos 90 — transformou-se num próspero hub da indústria criativa, formando mão de obra, atraindo talentos com oportunidades na carreira cinematográfica e ganhando expertise e a confiança necessárias para sediar qualquer produção, depois de oito anos dando conta de GoT. É uma injeção de capital (em cifras e humano) como jamais vista ou imaginada no setor e na região.



A Irlanda do Norte soube explorar seu potencial de locações com história medieval viva e as paisagens naturais por onde os celtas deitaram e rolaram. Tanto que há até um aplicativo gratuito para iOS e Android, Game of Thrones Filming Locations in Northern Ireland, que mostra em 360 graus onde acontecem as filmagens e conta um pouco sobre os locais. O mérito é da Northern Ireland Screen (NIS) e de sua diretora de marketing, Moyra Lock, experiente profissional do audiovisual que trabalhou em Hollywood e retornou à Irlanda do Norte para a produção da série.
“Não vou dizer que foi fácil convencer o governo a investir quase 16 milhões de libras (cerca de R$ 70 milhões) em GoT, por meio do Fundo de Produção da NIS”, admitiu Lock. “Mesmo porque ninguém poderia prever que a série teria todo esse sucesso”, ponderou. O retorno em gastos com bens e serviços no país é estimado em 206 milhões de libras, cerca de R$ 900 milhões, contando com a produção da oitava e última temporada da série.
A virada da Irlanda do Norte como centro de produção para o audiovisual deslanchou com o filme Cidade das sombras (2008). “A partir dele, fomos em busca de produções que pudessem se beneficiar das nossas locações e infraestrutura, somadas ainda a incentivos fiscais e em dinheiro”, descreveu Moyra Lock. “Agora, podemos competir em escala global.” Longas como Z: a cidade perdida (2016) e outras séries como The Frankenstein chronicles (2015), além de produções locais como The fall — estrelada por Jamie Dornan, ator norte-irlandês que também protagonizou 50 tons de cinza — e Line of duty, são algumas das produções sediadas em Belfast.



“O DEPARTAMENTO ARTÍSTICO MAIS ESPETACULAR É O QUE REPRODUZ ARMADURAS E ARMAMENTOS MEDIEVAIS DE INCRÍVEL SEMELHANÇA COM OS ORIGINAIS. O TREINAMENTO DE ATORES SEGUE MANUAIS DE GUERREIROS CENTENÁRIOS”
A Northern Ireland Screen agiu fazendo propaganda de suas facilidades e belezas ao mesmo tempo que tomou o antigo hangar de pintura de navios do estaleiro Harland and Wolf, que construiu o Titanic, como leasing e o transformou em parte integrante do Titanic Studios — um complexo com três estúdios grandes o suficiente para construir cenários como a fortaleza de Rochedo Casterly, assento de poder da Casa Lannister, uma das grandes casas nobres dos Sete Reinos e a maior, mais poderosa e importante das Terras Ocidentais de GoT.
“Estou há 30 anos na indústria e, apesar de minha experiência, posso afirmar que cada produção é um grande desafio”, disse Tom Martin, um marceneiro de formação que trabalhou em Londres em mais de uma centena de comerciais antes de fornecer seus préstimos ao cinema. Ele é gerente do Departamento de Construção de Game of Thrones, supervisionando um time de marceneiros, soldadores, moldadores, escultores e pintores, mais de 100 profissionais cuja tarefa é reproduzir os cenários imaginados pelo escritor George R.R. Martin. Tudo é desenhado antes no software de arquitetura AutoCAD e trazido ao mundo físico como “practical set” — cenário que pode ser habitado pelos atores e pela equipe de produção. Um colosso de trabalho braçal.



O Departamento de Construção é a aorta do Departamento de Produção, o centro nevrálgico do circo Game of Thrones. É de sua incumbência toda a logística e todos os serviços requeridos para que o diretor grite “ação”. Seu objetivo consiste em garantir o funcionamento de todos os departamentos: construção, locação (além de na Irlanda do Norte, GoT foi filmado em Malta, na Espanha, na Islândia, na Croácia e no Marrocos), figurinos (são milhares de peças, incluindo capacetes, armas e armaduras), equipamentos, pessoal, elenco, limpeza, provisões, compras, viagens e financeiro. Fica baseado em Belfast, enquanto as unidades móveis de filmagens rodam o planeta (embarcando toneladas de materiais em contêineres).

A coroa em disputa nos Setes Reinos. A rainha Elizabeth II declinou de experimentá-la ao visitar o set. Foto: Cortesia HBO / Divulgação
A coroa em disputa nos Setes Reinos. A rainha Elizabeth II declinou de experimentá-la ao visitar o set. Foto: Cortesia HBO / Divulgação

O mais fascinante dos departamentos, talvez por seu caráter inusitado, é o Departamento de Armamentos. “São de verdade?”, pergunta um dos jornalistas que me acompanham a uma mulher jovem e esguia que muitos duvidariam ser especialista em armamentos, muito menos em segurança marítima. Natalie Lee, australiana com ascendência polonesa, abre um sorriso generoso ao dizer que sim, as espadas enormes que estão numa redoma de vidro são réplicas muito idênticas a armas medievais usadas em decapitações. A maior espada feita em metal, madeira e pedra é muito pesada, mas ela faz questão de passá-la de mão em mão. “É uma reprodução de acordo com pesquisas históricas”, orgulhou-se.
Há centenas de espadas, de todo tipo — destaque para modelos em “aço Valeriano”, como as Lamento de Viúva, Veneno do Coração, Irmã Negra, Garralonga, Cumpridora de Promessas, Senhora Desespero vistas na série, só para citar algumas. Poucas são feitas em material pesado; a maioria é de fibra e borracha, incluindo as de “dragonglass” ou “fogo congelado” — nomes de GoT para obsidiana (vidro natural formado pela ação vulcânica, utilizado pela humanidade há milênios) —, as únicas armas que perfuram a armadura dos Outros, matando-os instantaneamente. Há também espadas de gelo utilizadas por estes seres, escudos, capacetes e outras armas medievais, como machetes, martelos, maças, lanças, arcos e flechas.
Natalia Lee é responsável por fazer o arsenal da série parecer o mais real possível. Tendo vasta experiência em outras produções de época, é ela quem supervisiona a reprodução de armas já existentes ou cria algumas, exclusivamente para GoT, como a Heartsbane. Ela também treina atores para manejá-las e foi até dublê em um dos episódios. Ela desenha as armas à mão antes de passar para a computação gráfica 3D e então para a fabricação por moldes.
É de sua responsabilidade também transportar os armamentos de uma locação para outra. “Nunca fomos impedidos de embarcar armas em contêineres, apesar de ser meio bizarro”, disse com ar jocoso. Cabe a ela catalogar toda a coleção, que foi aumentando ao longo das temporadas, e tirar de circulação armas de personagens mortos que são muito características deles para não haver erros de continuidade
No Departamento de Figurinos, a sofisticação e o artesanato são como casa e botão. A figurinista Michelle Clapton (também a cargo da série The crown) usa tecidos de diversos países, não economiza nos bordados, apliques e adereços, bem como delega tarefas administrativas a uma assistente que alinhava o trabalho de cerca de 80 pessoas — entre costureiras, alfaiates, aderecistas e artistas como o “maestro de armaduras” Giampaolo Grassi. O italiano domina a arte de fabricar armaduras com ferro e couro, utilizando uma técnica milenar passada de pai (que trabalhou no filme Ben-Hur) para filho. “Estamos há quatro gerações neste negócio. Tudo é feito à mão”, disse ele, em cujo currículo está a série Roma, também da HBO.
Só armaduras já são mais de 400. A supervisora de figurinos Kate O’Farrell perdeu as contas de quantas peças estão em estoque. Dado o volume de roupas e acessórios, a organização e estocagem das peças é impressionante: do elenco principal — todas numeradas e catalogadas de acordo com as cenas e os episódios —, aos figurinos dos extras, que geralmente compõem os exércitos. Roupas usadas num dia enlameado, como o que presenciamos no set de Winterfell, têm de ser limpas e secas durante a noite para utilização no dia seguinte. “Os atores vêm tirar suas medidas, e alguns começaram a gostar disso”, disse O’Farrell.

A ponte de corda liga a Ilha de Carrick-a-Rede, no condado de Antrim, ao continente. Hordas de turistas repetem a travessia de Jon Snow. Foto: LOCOG / Getty Images
A ponte de corda liga a Ilha de Carrick-a-Rede, no condado de Antrim, ao continente. Hordas de turistas repetem a travessia de Jon Snow. Foto: LOCOG / Getty Images

Michelle Clapton aproveita o largo orçamento para apostar na customização. Um exemplo é o tal casaco branco de pele usado por Daenerys no dia em que acompanhamos as filmagens. A peça é muito chique. A estilista vencedora do Emmy explica que o casaco é feito de falsas tiras de couro, longas tiras de pele falsa de alta qualidade e uma tira curta de pele falsa branca, além de peles de coelho para a bainha. Tudo é costurado e depois montado em uma base de espartilho. Uma corrente prateada, com a cabeça de um dragão esculpida como fecho, é transpassada pelo corpo de Daenerys. “A corrente é uma precursora da coroa. É uma joia simbólica que reflete a intenção. Ela ainda não é uma rainha, mas gosto da ideia de que veste tudo que pode para mostrar seu status.”
Cobiça máxima da série, nem todos querem sentar no Trono de Ferro. Ele está lá, à espera de seu ocupante. Vazio, gélido, aterrador, escuro e em tamanho real no set, exatamente como se vê na série. Em visita ao Titanic Studios, a rainha Elizabeth se permitiu fotografar ao lado do trono. Mas preferiu não se sentar nele.
Pode-se falar dos dragões, das batalhas, dos cenários, dos objetos de cena, dos atores, dos figurinos, das paisagens, dos efeitos especiais. Mas a graça de Game of Thrones, independentemente da superprodução, é a história.
Os roteiristas que transformam a saga de George R.R. Martin na maior série televisiva de todos os tempos sabem disso. E valorizam todas as camadas psicológicas contidas embaixo de cada capa e na lâmina de cada espada. “Este é um animal muito especial”, brincou Bryan Colman, coprodutor executivo e roteirista de 11 episódios ao longo de todas as temporadas de GoT (2011 a 2019).
Enquanto cabeças rolam, a série mostra que, sim, há espaço para um bom texto na televisão — ao contrário do que fora provado a Martin, que só começou a escrever As crônicas de gelo e fogo no começo dos anos 90, em decorrência de sua frustração com a falta de apetite, recursos e timing da indústria televisiva para histórias de fôlego.
Era 1991 e ele já era um escritor de ficção fantástica bastante rodado. Pagava as contas dando aulas de inglês e jornalismo em universidades, enquanto sua primeira história, With morning comes mistfall (1973), concorreu ao Nebula Awards e ao Hugo Award — prêmio que ele nunca ganhou e, por isso, organizou o Hugo Losers, uma festa meio de deboche, meio de consolação para os perdedores.
Nos anos 70, Martin escreveu muita ficção científica, gênero literário considerado menor por muitos. Mas esse era seu barato. Livro vai, livro vem, os anos 80 chegaram com um bem recebido trabalho sobre vampiros no Mississippi do século XIX, Fevre dream (1982), além de sua primeira obra com os direitos adquiridos para as telas: Nightflyers (1980).
Começava ali a relação de amor e ódio com o audiovisual. Nightflyers virou filme em 1987 (Martin detestou) e, apesar de não ter feito sucesso, mais tarde o escritor o reconheceu como um divisor de águas em sua carreira. Foi daí que ele arrumou um emprego de roteirista na série Twilight zone. Depois veio Max Headroom. Mas nenhuma das duas séries durou.
Martin então mergulhou de cabeça na onda dos RPG (Role Playing Games), um grande laboratório de personagens, e surfou com suas Wild cards, antologia que foi adaptada em série pela Universal em 2016. Ele já estava escrevendo As crônicas de gelo e fogo, inspirado em J.R.R. Tolkien e pouco se lixando se aquilo ia ou não servir para televisão (estava farto de cortar trechos, personagens e mudar finais de séries que não iam a lugar algum).
“A SÉRIE É INSPIRADA EM FATOS HISTÓRICOS COMO A GUERRA DAS ROSAS, A LUTA PELO TRONO ENTRE FAMÍLIAS DE LINHAGENS NOBRES QUE LEVOU O REINO UNIDO À GUERRA CIVIL DEVASTADORA NO SÉCULO XV”
O épico foi inspirado em fatos históricos, como a Guerra das Rosas — a luta de famílias em disputa pelo trono que levou a Inglaterra à guerra civil entre 1455 e 1487 (totalmente Game of Thrones) —, na série de livros Os reis malditos  — sete romances históricos escritos nos anos 50 por Maurice Druon, sobre as nobrezas francesa e inglesa do século XIV —, e em Ivanhoé, romance histórico de sir Walter Scott, publicado em 1820, que marcou a guinada do autor do realismo escocês para uma espécie de ficção passada na Inglaterra medieval e virou um clássico.
Começaram a chover prêmios. O primeiro livro do que originalmente seria uma trilogia, A Guerra dos Tronos, saiu em 1996. Em 2005, o já quarto livro da série, Festim dos corvos, se tornou o número 1 na lista dos mais vendidos do New York Times e do Wall Street Journal; um ano depois o mesmo livro foi indicado ao British Fantasy Awards, enquanto o quinto livro, A dança dos dragões, se tornou um sucesso internacional em 2011, voltando ao topo do ranking dos mais vendidos do New York Times, em que permaneceu por cabalísticas 88 semanas. A HBO comprou os direitos da obra em 2007. Enquanto participava ativamente da produção como produtor executivo associado e roteirista, Martin continou trabalhando nos outros livros.
Nas últimas temporadas, o escritor participou dos roteiros somente como consultor, sendo ouvido por um time de roteiristas capitaneado por David Benioff e D.B. Weiss — ambos também produtores, que assinaram os 73 episódios da série e levaram o Emmy por GoT em 2015 e 2016 —, do qual fazem parte Bryan Cogman e Dave Hill, também coprodutor e roteirista em quatro episódios (entre 2015 e 2018). “Claro que há um grande desafio numa criação coletiva desta escala. Mas é muito gratificante termos conseguido essa química”, disse Hill. Ele e Cogman estavam no set de Winterfell, onde conversaram com ÉPOCA
O trabalho deles consiste em fazer o contrapeso entre os recursos externos imensos de produção e os dilemas interiores de cada personagem. É uma grande responsabilidade e requer habilidade. Afinal, são o filtro entre a obra de Martin e o circo que virou Game of Thrones. “Procuramos ser fiéis ao texto de Martin. Mas é uma grande pressão fechar tudo com classe e veracidade. Sabemos que temos de honrar a audiência com um final satisfatório”, comentou Hill. “Acho que, nesta última temporada, depois de tudo que criamos e materializamos, estamos meio que voltando a aterrissar os pés no chão. As pessoas gostam da série e voltam a ela por causa da complexidade dos personagens”, disse Cogman.
Por complexidade, entendam-se melancolia, ambição, heroísmo e aquela falta de alegria típicos dos tempos sombrios da Alta Idade Média. Apesar da magia, do sexo e, claro, dos dragões, o moto de Martin é explorar os conflitos interiores que definem a condição humana, a qual, creditando inspiração em William Faulkner, “é a única razão para ler e fazer qualquer literatura, independenemente do gênero”.
EPOCA, abril de 2019 

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