April 7, 2019

’Isso não se faz, Ernesto!’

Ernesto Araújo na posse de Bolsonaro no dia 1º de janeiro. Ele virou chanceler por contar com o aval de Olavo de Carvalho Foto: UESLEI MARCELINO / REUTERS

Juiana Dal Piva e Guilherme Evelin

Dois casamentos ajudaram a pavimentar o caminho do diplomata Ernesto Henrique Fraga Araújo, de 51 anos, ao posto de chanceler do governo Jair Bolsonaro. O primeiro foi a união estável com a colega Maria Eduarda de Seixas Corrêa, na época em que serviu, durante os anos de 1999 a 2002, na embaixada do Brasil na Alemanha. O casamento com a filha mais velha do prestigiado embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, duas vezes secretário-geral do Itamaraty (1992 e 1999-2001) e bisneto de Honório Hermeto Carneiro Leão, marquês de Paraná, importante político e diplomata do Império, rendeu a Araújo o ingresso no patriciado da carreira diplomática. As novas conexões familiares valeram ascensão rápida na carreira e boas colocações, sempre em postos no circuito Elizabeth Arden, como os diplomatas se referem às embaixadas nas capitais dos países mais desenvolvidos. Como fazia sempre referências públicas ao parentesco com Seixas Corrêa, Araújo foi logo apelidado como o “genro do sogro” pelas línguas venenosas que proliferam no serpentário do Itamaraty.
A segunda união providencial foi com as ideias do polemista ultraconservador e autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, guru ideológico dos bolsonaristas e avalista da nomeação de Araújo para o comando do Ministério das Relações Exteriores. No Itamaraty, atribui-se a entrada de Araújo no universo do olavismo ao diplomata Nestor Forster, ministro-conselheiro da embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Fã do autor de Jardim das aflições desde a década de 90 e descrito pelos colegas como um “catolicão conservador”, Forster teria apresentado Araújo a Carvalho quando o atual chanceler serviu em Washington entre 2010 e 2014. Hoje, Forster, que já foi cotado para ser o chefe de gabinete de Araújo, é considerado um nome para ter um cargo importante na cúpula do Itamaraty em breve.
Como prova de um bom faro para o poder, atributo necessário numa carreira onde a bajulação costuma ajudar a subir os degraus da hierarquia, Araújo, de volta ao Brasil, passou a cultivar relações com os bolsonaristas, enquanto Bolsonaro despontava como candidato à Presidência da República em meio à derrocada do governo Dilma Rousseff. Araújo descobriu os artigos publicados, a partir de 2016, no site Senso Incomum por Filipe Martins, em que o discípulo de cursos “on-line” de Olavo de Carvalho e aluno de relações internacionais na Universidade de Brasília (UnB) difundia as críticas olavistas ao “marxismo cultural” e ao “globalismo”. Os dois passaram a se corresponder. Pessoas próximas a Araújo e Martins, que tem 31 anos e não possui carreira diplomática, dizem que os dois começaram a trocar textos, além de discutir desde mitologia grega até a “Iniciativa do Cinturão e Rota”, estratégia de investimentos em infraestrutura em países da Europa, Ásia e África adotada pela China para aumentar a sua influência global. Martins passou a elogiar Araújo para o “mestre” Olavo de Carvalho.

Martins foi o responsável também por introduzir Araújo no entorno de Eduardo Bolsonaro, o filho do presidente que atua como “chanceler informal” do pai e faz a ponte com os movimentos internacionais da “alt-right”, a direita alternativa, liderados por Stephen Bannon, ex-chefe da campanha eleitoral de Trump nos Estados Unidos. Martins ganhou ascendência sobre o clã Bolsonaro depois que ele acertou a previsão de vitória de Trump sobre Hillary Clinton nas eleições presidenciais americanas em 2016, projetada em análises em seu site. Martins passou a encontrar o grupo de Eduardo Bolsonaro uma ou duas vezes por mês para discutir cenários. Nas reuniões, defendia a tese de que Bolsonaro poderia repetir o êxito de Trump nas eleições presidenciais americanas. Em novembro de 2017, Martins publicou um texto em que dizia que os analistas não entendiam a identificação do brasileiro médio com Bolsonaro e, por isso, não davam peso para ele na corrida pela Presidência. “Seja qual for o desfecho que nos aguarda, Bolsonaro já é uma força política e eleitoral que não pode ser ignorada, cujo impacto provavelmente mudará o cenário político brasileiro para sempre”, escreveu.
Depois da vitória eleitoral de Bolsonaro, Martins foi escolhido para ser o assessor internacional do presidente. Durante o período de transição de governo, enquanto o grupo de generais próximos a Bolsonaro defendia uma política externa mais ou menos nas linhas tradicionais seguidas pelo Itamaraty nas últimas décadas, Martins, Olavo de Carvalho e Eduardo e Carlos Bolsonaro tinham outros planos para o Ministério das Relações Exteriores: queriam alguém para tocar a agenda “antiglobalista” defendida por eles. Na semana posterior à vitória nas urnas, Martins levou Araújo, discretamente, à casa de Bolsonaro na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Os dois se conheceram. Mesmo diante de indicações, pelos generais, de diplomatas mais experientes, o nome de Araújo, um embaixador júnior, recém-promovido ao posto mais alto da hierarquia do Itamaraty e sem passagens por comando de embaixadas no exterior, prevaleceu.

As ligações olavistas de Araújo só começaram a aparecer, convenientemente, depois do impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e com os novos ares do governo Michel Temer. Após a eleição de Trump, Araújo participou de um debate dentro do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), órgão do Itamaraty, sobre as perspectivas do novo governo nos EUA. Foi a primeira vez que ele esboçou em público as ideias depois sistematizadas no texto “Trump e o Ocidente”, publicado, depois de ficar algum tempo na gaveta, na edição do segundo semestre de 2017 da revista Cadernos de Política Exterior , do próprio IPRI.

Ernesto Araújo com Olavo de Carvalho (de bege), nos EUA. Ao centro, o diplomata Nestor Forster (de azul), que teria apresentado o chanceler ao polemista Foto: Reprodução
Ernesto Araújo com Olavo de Carvalho (de bege), nos EUA. Ao centro, o diplomata Nestor Forster (de azul), que teria apresentado o chanceler ao polemista Foto: Reprodução
Nesse texto, Araújo defende a tese de que “somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação — inclusive e talvez principalmente a nação americana”. No final, ao relacioná-lo a Trump, disse que só o presidente dos EUA “pode salvar o Ocidente”. Ali, o chanceler se vale da visão histórica do alemão Oswald Spengler, autor de A decadência do Ocidente . A obra, que serviu de inspiração aos regimes autoritários europeus no período do entreguerras, propõe como solução para injetar vitalidade na combalida cultura ocidental a rejeição da democracia liberal e o advento de governos autoritários, liderados por figuras carismáticas. No debate no IPRI, os argumentos de Araújo foram considerados “muito primários” por intelectuais presentes, mas o texto “Trump e o Ocidente” foi amplamente compartilhado entre os grupos próximos a Bolsonaro e elogiado por Olavo de Carvalho.

A aproximação de Araújo com os bolsonaristas ficou escancarada quando ele criou o blog Metapolítica 17, em 22 de setembro, pouco antes do primeiro turno da eleição presidencial. No blog, o chanceler tornou públicos os textos que discutia com Filipe Martins. Os escritos incluíam ataques ao PT, identificado como o “Partido Terrorista”, e um relato da participação de Araújo em uma manifestação a favor do então candidato do PSL. Eles foram alvo de uma reportagem pela Folha de S.Paulo , e o nome do diplomata foi, de vez, associado ao clã Bolsonaro. A revelação do blog espantou os integrantes do Itamaraty. Militância partidária escancarada entre diplomatas da ativa é coisa inédita — e Araújo chegou a publicar no blog um agradecimento à administração do Itamaraty no governo Temer por não ter sofrido nenhuma censura. Duas pessoas próximas do sogro de Araújo, o embaixador Seixas Corrêa, disseram que ele ficou tão estupefato com o texto quanto o resto do corpo diplomático. “Eu lamento muito, mas é meu genro”, disse Seixas Corrêa a alguns amigos.

Araújo com Filipe Martins, assessor internacional de Bolsonaro. De Sorocaba, Martins, de 31 anos, é chamado de Sorocabannon, em alusão a Stephen Bannon, ex-assessor de Donald Trump Foto: Reprodução
Araújo com Filipe Martins, assessor internacional de Bolsonaro. De Sorocaba, Martins, de 31 anos, é chamado de Sorocabannon, em alusão a Stephen Bannon, ex-assessor de Donald Trump Foto: Reprodução
A virada olavista de Araújo surpreendeu muita gente que o conheceu anteriormente. Apesar das citações recorrentes a Deus, ele não é do tipo que vai à missa. Não chega a ter sequer uma religião. Um amigo do chanceler, que não quis se identificar, o definiu como um “religioso cultural”, para quem a ideia de Deus está constantemente na cabeça. Até a publicação do texto “Trump e o Ocidente”, Araújo era conhecido pelos colegas como um diplomata discreto, cordato, competente e de temperamento introvertido. O embaixador aposentado Roberto Abdenur, que o chefiou na embaixada na Alemanha, lembra de Araújo como um diplomata de comportamento bastante reservado e “extremamente ágil com telegramas e relatórios”.

“Eu não o estou reconhecendo”, admitiu a ÉPOCA o embaixador aposentado Sérgio Florêncio, um dos primeiros professores de Araújo, quando o hoje ministro chegou na década de 90 ao Instituto Rio Branco para o início da carreira no Itamaraty. Sentado em um café no Plano Piloto de Brasília, Florêncio, vestido com camisa azul e branca quadriculada, jeans e uma armação de óculos escuros que não tirou do rosto, completou: “Cada dia que passa, eu me vejo procurando um Ernesto que não existe mais”. Segundo o embaixador, Araújo sempre foi o mais retraído entre seus alunos, mas se destacava na agilidade da escrita e surpreendia profissionalmente.
Florêncio recordou que ele ficou encarregado do trabalho em torno da tarifa externa comum (TEC) do Mercosul, tema bastante complexo, pois envolvia o comércio de quatro países com necessidades e negócios completamente distintos. Como era bacharel em línguas neolatinas e francês pela UnB, ninguém esperava que Araújo dominasse temas econômicos de modo tão pronto. Ele, porém, se tornou um profundo conhecedor do assunto e em determinado momento se tornou a pessoa que mais sabia de TEC. Segundo Florêncio, tudo ocorreu em menos de um ano. “Talvez isso tenha a ver com a introspecção”, disse o embaixador. Mais tarde, os dois trabalharam juntos na divisão de Mercosul e fizeram muitas viagens juntos para Montevidéu, capital do Uruguai e sede administrativa da entidade. O entusiasmo pelo trabalho rendeu o livro Mercosul hoje, escrito por Florêncio e Araújo entre 1995 e 1998 e bastante elogiado pelos demais “itamaratecas” — termo popular usado para se referir aos diplomatas e odiado por eles.

Fora do trabalho, Araújo, gaúcho de Porto Alegre, era conhecido também por ter escrito três romances no gênero fantástico (A porta de Mogar, Xarab fica e Quatro 3), publicados por uma editora especializada em autores de esquerda e teoria crítica marxista, a Alfa Omega, e pelo entusiasmo pelo Internacional, seu time do coração. Quando o assunto é futebol, ele costuma deixar a timidez de lado. Em novembro de 2005, quando 11 jogos do Campeonato Brasileiro foram anulados por causa da descoberta de uma máfia do apito, o que acabou tirando o título nacional dos colorados, Araújo apontou publicamente uma conspiração contra seu time. “Existe claramente um complô para dar o campeonato ao Corinthians”, escreveu ele no blog do jornalista Juca Kfouri.

Bolsonaro anuncia Araújo para o Itamaraty. O chanceler não era o preferido dos militares, mas Eduardo Bolsonaro (ao lado do pai) convenceu o presidente
Na foto, Eduardo Bolsonaro fala ao ouvido do presidente eleito durante o anúncio, ao lado do ministro anunciado.
Foto de Jorge William / Agência O Globo Foto: Jorge William / Agência O Globo
Bolsonaro anuncia Araújo para o Itamaraty. O chanceler não era o preferido dos militares, mas Eduardo Bolsonaro (ao lado do pai) convenceu o presidente Na foto, Eduardo Bolsonaro fala ao ouvido do presidente eleito durante o anúncio, ao lado do ministro anunciado. Foto de Jorge William / Agência O Globo Foto: Jorge William / Agência O Globo
A paixão pelo Internacional é dividida com o novo secretário-geral do Itamaraty, o embaixador Otávio Brandelli, também gaúcho. Quando deu posse a Brandelli, Araújo fez um trocadilho. “A nossa bandeira jamais será vermelha, exceto se for a do Internacional”, brincou. Brandelli, que muitos no Itamaraty creem que poderá agir como um elemento moderador de Araújo, era ligado aos petistas Tarso Genro e Aloizio Mercadante, assim como muitos dos diplomatas que ascenderam a postos de chefia no Itamaraty com o novo chanceler.

O furibundo discurso anti-PT proclamado por Araújo, que prometeu fazer uma devassa na gestão de Celso Amorim, o chanceler de Lula, para encontrar supostas irregularidades, foi outra guinada surpreendente do ministro das Relações Exteriores. Durante a ditadura, seu pai, Henrique Fonseca de Araújo, foi assessor do Ministério da Justiça durante o governo do marechal Castelo Branco e, depois, procurador-geral da República, de 1975 a 1979, nomeado pelo então general-presidente Ernesto Geisel. No período à frente da Procuradoria, Henrique Araújo encampou a defesa da censura prévia, feita ao jornal católico O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, então dirigida por Dom Paulo Evaristo Arns. Apesar desses vínculos familiares com os militares no passado, Araújo fazia discursos públicos laudatórios dos governos petistas.
Ao defender, em 2008, sua tese Mercosul — Negociações Extrarregionais no Centro de Altos Estudos do Itamaraty, uma etapa necessária para os diplomatas que pretendem ser promovidos a embaixador, Araújo mostrou-se claramente alinhado à política externa do governo do ex-presidente Lula. Refutou, inclusive, que a preferência por relações Sul-Sul, com os países mais pobres, tivesse fundamento ideológico, uma crítica recorrente dos opositores ao PT. “A visão segundo a qual o Brasil é ideológico nas negociações extrarregionais do Mercosul é ela mesma ideológica, pois fundamenta-se na concepção de que ampliar os laços com países ricos nos fará também ricos, graças a uma espécie de contato mágico”, escreveu.

O vice-presidente Hamilton Mourão recebe diplomatas estrangeiros. Ele está fazendo diplomacia paralela para contornar inquietações com o novo Itamaraty Foto: Reprodução
O vice-presidente Hamilton Mourão recebe diplomatas estrangeiros. Ele está fazendo diplomacia paralela para contornar inquietações com o novo Itamaraty Foto: Reprodução
Durante o governo Dilma Rousseff, o embaixador do Brasil nos EUA, Mauro Vieira, que havia sido chefe de gabinete do sogro Seixas Corrêa na secretaria-geral do Itamaraty, chamou-o para ser seu braço direito na embaixada em Washington, onde Araújo atuou como ministro-conselheiro. Na capital americana, em abril de 2011, ao participar do programa Global Model of Democracy and Development, do Akron Council on World Affairs (ACWA), entidade que organiza eventos diplomáticos, o chanceler defendeu a atuação da ex-presidente Dilma Rousseff como guerrilheira no combate à ditadura militar.
“Especialmente entre os jovens não havia esperança de ver a democracia restabelecida por meios pacíficos. A impressão era que o governo militar ia ficar para sempre. Então muitas pessoas, a despeito das instituições, decidiram pegar em armas. Ela ( Dilma ) foi parte disso”, contou Araújo, em inglês. Depois disse que não foi a guerrilha que deu fim à ditadura e que os militares saíram do poder por suas próprias contradições. “Então não foi a luta direta com armas que derrubou os militares. Mas é claro que essa luta ( guerrilha ) foi importante como parte de um movimento geral em direção a mais democracia, que era basicamente um movimento pacífico”, afirmou. Em seguida, Araújo completou que “todos que lutavam em paz ou não tão em paz se sentem parte desse processo de redemocratização” do Brasil.

Quando Vieira foi chamado por Dilma para assumir o comando do Itamaraty no período de 2015 a 2016, Araújo o acompanhou no retorno a Brasília. Ele assumiu, então, a função de subchefe do gabinete do ministro das Relações Exteriores. A ligação do chanceler de Bolsonaro com o círculo mais íntimo da diplomacia petista somente encerrou-se com o episódio do impeachment. A derrocada do governo Dilma foi inclusive prejudicial a Araújo, cujo nome constava na lista dos diplomatas que seriam promovidos a embaixador em junho de 2016. Sem o PT no poder, a lista foi refeita sem o nome de Araújo. Ele só virou embaixador em junho de 2018, na gestão do tucano Aloysio Nunes Ferreira como chanceler.
Não é apenas por causa dessas reviravoltas que a breve gestão do chanceler Ernesto Araújo está causando estupor entre os “itamaratecas”, de A a Z, numa união poucas vezes vista na casa do barão de Rio Branco. Em seu discurso de posse, no dia 2 de janeiro, o ministro voltou a repisar, com fervor de cruzado, as ideias olavistas contra o “globalismo” — embaladas por uma retórica empolada em que misturou citações em grego, tupi, latim e português, com alusões ao mesmo tempo a Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Renato Russo e Raul Seixas.

Sob os olhares de Dom Bertrand Maria José de Orleans e Bragança, da família imperial brasileira e integrante da ultraconservadora Sociedade Brasileira de Defesa da Família, Tradição e Propriedade (TFP), Araújo atacou o “globalismo” como causa dos dois males do mundo: a oikofobia (fobia do próprio lar) e a teofobia (fobia de Deus). Araújo repreendeu também publicamente os diplomatas e disse que eles deveriam estar mais próximos do povo e “ler menos a Foreign Affairs (publicação dedicada às relações internacionais) e mais José Alencar”. Por causa dessas referências místicas, Araújo passou a ser chamado de Beato Salu do Itamaraty, numa referência ao personagem de Roque Santeiro, novela de sucesso dos anos 80. Outros diplomatas acham que ele parece mais Policarpo Quaresma, o personagem clássico de Lima Barreto, um patriota exaltado que achava que ou o Brasil acabava com as saúvas, ou as saúvas acabavam com o Brasil. Procurado por ÉPOCA, Araújo não respondeu aos pedidos de entrevista.
A frustração dos diplomatas pode ser sentida pela ovação ao ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira, que se despedia do cargo, e pelos tépidos aplausos ao novo chefe. “Revelação e epifania, como parece ser o caso do Ernesto, não comporta críticas ou racionalidade”, disse um graduado embaixador do alto de seus 80 anos ao resumir a reação dos diplomatas às mudanças anunciadas pelo novo chanceler que rompem com algumas tradições, quase centenárias, da política externa brasileira (leia mais no editorial na página 4). O ânimo estupefaciente parece ser compartilhado também pelo sogro Seixas Corrêa, um homem cordato, leve, intelectualizado e muito discreto.

Todas as segundas-feiras, Seixas Corrêa tem almoço marcado com antigos colegas em um restaurante tradicional no Leblon, no Rio. Desde que o genro assumiu o ministério, ele jamais foi perguntado sobre o assunto pelos amigos de mesa. “Ele está tão perplexo quanto todos nós”, disse um embaixador sob anonimato. “A neta dele é filha do Ernesto. Ele jamais falará nada contra ele. Jamais”, disse. Muitos colegas e amigos do embaixador dizem que evitam o assunto para “não constrangê-lo”. A filha Maria Eduarda, também diplomata, depois da nomeação do marido, pediu transferência para uma área de menos visibilidade no Itamaraty: a divisão de treinamento e aperfeiçoamento. Com Ernesto, ela teve uma filha, hoje com 12 anos. Cada crítica ao marido é como uma facada em seu peito. Quem a conhece diz que ela jamais compartilharia das ideias do chanceler.

Araújo com a mulher, Maria Eduarda, também diplomata Foto: Reprodução
Araújo com a mulher, Maria Eduarda, também diplomata Foto: Reprodução
No centro, Araújo (sem barba) com colegas do Rio Branco Foto: Reprodução
No centro, Araújo (sem barba) com colegas do Rio Branco Foto: Reprodução
O sogro de Araújo, Seixas Corrêa, que foi embaixador de destaque Foto: ANA DE OLIVEIRA, AIG / MRE

O sogro de Araújo, Seixas Corrêa, que foi embaixador de destaque Foto: ANA DE OLIVEIRA, AIG / MRE




A reação a Araújo está ligada também ao sentimento entre muitos diplomatas de que o ministro está promovendo uma caça às bruxas — que, no caso, seria todo mundo que pensa diferente dele ou quem, mesmo reservadamente, emitiu alguma opinião contrária ou crítica a suas ideias. Foi o caso do embaixador Julio Bitelli, que estava em Bogotá, a quem foram oferecidas duas posições: ou no Congo ou na Mauritânia — lugares considerados péssimos pelos diplomatas, por serem postos menos prestigiados na carreira. Outro caso: o embaixador Achiles Zaluar, um dos mais entendidos em Oriente Médio, teve uma conversa com Ernesto Araújo, na qual fez observações críticas sobre a política para a região e a transferência da embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Ele foi relegado ao chamado DEC — o departamento de escadas e corredores, como é apelidado sarcasticamente quem fica sem posto no Itamaraty.
O caso que envolveu a embaixadora Gisela Padovan, ex-diretora do Rio Branco, se tornou também emblemático. Ela organizou uma palestra do ex-presidente Fernando Collor, que comanda a Comissão de Relações Exteriores do Senado, para os alunos do Rio Branco. Em sua fala, no dia 13 de dezembro, Collor fez algumas críticas às ideias de Araújo. O chanceler pôs a culpa na embaixadora, que foi afastada do cargo. “É muito violento o constrangimento que o Ernesto está fazendo os diplomatas passar”, disse um diplomata em ascensão. “O discurso dele não é de chanceler, é de um líder messiânico, espiritual.” No total, atualmente estão na geladeira do DEC mais de 20 embaixadores que voltaram recentemente ao país depois de dez anos em missão no exterior.

O ex-chefe Sérgio Florêncio acha que Araújo erra mais na “substância do que na forma”. “É admirável ele ter falado em tupi-guarani”, disse, batendo no peito ao afirmar que, nesse quesito, não está com outros colegas que criticam o chanceler. “Vou contra essa corrente, porque o Itamaraty precisava desse choque de estilo”, pontuou, ao mencionar que a instituição é muito conservadora. O outro ex-chefe, Roberto Abdenur, na sala de seu amplo apartamento em Ipanema, no Rio, adornada com objetos africanos e orientais e com vista para o Corcovado, avaliou que a gestão de Araújo já está causando estragos.
Para Abdenur, a recusa do Brasil em sediar a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP 25, e a retirada do país do Pacto Global para Migração, cuja adesão foi negociada pelo governo Temer, “representam um sério golpe na credibilidade do Brasil”. “Política externa deve ser feita com coerência, continuidade e credibilidade”, disse Abdenur. Na visão dele, o país vai passar por muitas situações vexatórias se as medidas anunciadas desde o fim do ano passado saírem do papel. “Se a esses dois gestos vier a se somar a transferência da embaixada em Israel, vai ser outro golpe. Vai ser o rompimento de 70 anos de uma posição objetiva, imparcial, de equilíbrio entre Israel e os árabes”, criticou.

Para evitar mais danos, os militares estão fazendo uma espécie de cordão sanitário em torno de Araújo. Numa sexta-feira recente, o vice-presidente Hamilton Mourão estava às voltas com despachos internos em seu gabinete no anexo 2 do Palácio do Planalto, quando confirmou a ÉPOCA que tem recebido a maioria dos embaixadores para despachos. Foi assim com o da Argentina, Rússia, Ucrânia, Holanda, França, entre outros. A rigor, Araújo deveria estar presente nos encontros. Mas como escreveu o colunista Celso Rocha de Barros, na Folha de S.Paulo , “enquanto o novo chanceler fazia seu discurso de posse, Mourão se reunia com representantes do governo chinês. E mais: tuitava que estava na reunião, como se dissesse ‘Ó, não se preocupem não, tem adulto nesse negócio’”.
Mourão estava sentado numa poltrona de couro quando deu detalhes sobre o encontro com o embaixador francês. “Nossa relação com a França caiu muito. Vamos retomar isso.” Ele se disse preocupado com as notícias negativas sobre o Brasil, sobre a confusão na nomeação feita por Araújo para a presidência da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex) — primeira demissão do governo Bolsonaro — e com o recuo de falar em construir uma base militar no Brasil — coisa que é contra. “Está faltando prudência. Não podemos falar qualquer coisa e depois desfalar. Agora é tempo de analisar. Não é tempo de sacar soluções da cartola. A palavra é prudência”, disse. Mourão manifestou a esperança de que o discurso de Bolsonaro em Davos, que “será escrito a várias mãos”, seja uma inflexão na péssima imagem que vem sendo construída do Brasil no exterior, principalmente em editoriais de grandes publicações, como o jornal The New York Times e a revista The Economist .

O vice-presidente não conhece e nunca leu Olavo de Carvalho, o guru intelectual do chanceler, mas tem opinião sobre ele. “Olavo ocupou um espaço no imaginário do país num momento em que não havia ideias novas, não é nada mais do que isso.” Naquela manhã, ele havia conhecido Filipe Martins, que, como assessor internacional da Presidência, ocupa uma sala no terceiro andar do Planalto, o mesmo do gabinete de Bolsonaro. Quando foi mencionada a estranheza de alguém tão jovem e de fora da carreira diplomática ocupar posto tão poderoso, Mourão deu risada, balançando os ombros. “Poderoso? Ah, não, menos, vai”, disse. Depois comentou não ter nada “contra pessoas”, mas que em alguns cargos — como juiz e psiquiatra, por exemplo — não dá para ser inexperiente.
Quando se despedia, ele deu uma sugestão de chamada de capa para a reportagem de ÉPOCA. Segundo disse, a pergunta era o que todo mundo gostaria de saber — o que atrairia muitos leitores. “Acho que uma boa seria: ‘Terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?’. Porque ele não falou o que pretende fazer”, disse Mourão. “Vai todo mundo virar israelense desde criancinha? Vai todo mundo virar fã dos americanos de qualquer jeito?”, indagou em tom de troça. Depois, emendou, sério. “A diplomacia são métodos e objetivos, não um fim. É preciso inserir conceitos claros, não interferir em assuntos de outros países. E ainda não está claro”, disse.

Apesar da blindagem da política externa que os militares querem fazer, ela pode ser insuficiente. Entre os embaixadores mais experientes, há a avaliação de que Araújo não é tão importante quanto parece ser. Ele seria apenas o porta-voz com patente (embaixador) de um projeto que é de Eduardo Bolsonaro, de Filipe Martins e, por consequência, de Olavo de Carvalho. Mesmo que ele deixe o cargo, as ideias vão continuar a ser colocadas em prática. Araújo é uma figura menor nesse jogo.
A desenvoltura com que Filipe Martins se movimenta no Planalto parece confirmar essa avaliação. Natural de Sorocaba, no interior de São Paulo, Martins estudava relações internacionais na Universidade Federal de Pelotas em 2011. Em 2013, pediu transferência para a UnB e no ano seguinte foi levado por amigos ao gabinete de Eduardo Bolsonaro quando ele se preparava para estrear como deputado. Nessa época, Martins era estagiário no Tribunal Superior Eleitoral. Na UnB, produziu uma monografia com título O papel do forecasting nas relações internacionais, um estudo sobre previsões. Não entregou, porém, o trabalho quando se graduou. Amigos dizem que ele guardou para um mestrado.
Mesmo sem currículo expressivo, ele teorizava bastante. Virou assessor internacional do PSL e agora ganhou o apelido de Sorocabannon, por ser comparado a Steve Bannon, estrategista de Trump. Confrontado com as críticas na imprensa à pouca idade e experiência, Martins se compara a gigantes do passado da diplomacia. Ele lembra a interlocutores que, com sua idade, o barão do Rio Branco era cônsul-geral em Londres, Oswaldo Aranha era ministro da Justiça e Santiago Dantas representava o Brasil no exterior. Nada menos do que isso.


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