April 12, 2019

A mão esquerda da escuridão

Reinaldo José Lopes

Quem conhece este escriba sabe que sou ligeiramente obcecado por uma passagem do extraordinário romance de ficção científica “A Mão Esquerda da Escuridão”, da americana Ursula Kroeber LeGuin (1929-2018). O que tenho a dizer hoje, portanto, envolve alguns “spoilers”. Espero que valha a pena.
No fundo, a narrativa é a história de um evento de especiação e suas consequências. “Especiação”, devo esclarecer, é o termo que os biólogos usam para designar o que acontece quando duas populações do mesmo tipo de animal/planta/micróbio/etc. se separam e acabam dando origem, na plenitude do tempo, a novas espécies.
A escritora Ursula K. Le Guin lê páginas em sua mão e apoia a outra mão sobre uma mesa
A escritora Ursula K. Le Guin - Gorthian/Wikimedia Commons
Ora, parece que foi isso o que aconteceu em Gethen, o planeta chamado Inverno. Incontáveis eras antes do presente do livro, seres humanos colonizaram Gethen e, por motivos desconhecidos, ficaram isolados do resto da civilização galáctica que existia então. Sua biologia reprodutiva se transformou (também não se sabe bem como): tornaram-se hermafroditas, que se revezam entre os papéis de macho e fêmea a cada fase de “cio”, equivalente ao ciclo menstrual das mulheres.
Esse isolamento é enfim rompido pela chegada de um enviado da civilização galáctica, um nativo da Terra, que quer reintegrar Gethen aos demais descendentes do Homo sapiens espalhados pelo Cosmos. O enviado apresenta a ideia ao monarca de uma das nações do planeta, o qual, intrigado, pergunta: para quê?
Eis a resposta (a tradução é minha).
“Lucro material. Aumento do conhecimento. O incremento da complexidade e intensidade do campo da vida inteligente. O enriquecimento da harmonia e a maior glória de Deus. Curiosidade. Aventura. Deleite.”
Assim que responde, nosso diplomata estelar percebe que, justamente por dizer a verdade, colocou sua missão em risco. “Eu não estava falando a língua falada por aqueles que governam os homens”, pensa consigo, “os reis, conquistadores, ditadores, generais; nessa língua, não havia resposta para a pergunta dele.”
A força das narrativas de Le Guin brota precisamente do casamento amoroso entre conhecimento científico e imaginação —vale dizer, entre a capacidade racional para escrutinar os fatos do Universo e a possibilidade de usá-los para sonhar com outros mundos. Ademais, a resposta corajosa —ou temerária— do enviado deixa claro que não precisamos escolher entre “curiosidade, aventura, deleite” e “a maior glória de Deus”. Ambos podem fazer parte da “intensidade do campo da vida inteligente”, o que alguns de nós ainda chamamos de dignidade humana.
Não é à toa que, como temos visto nos últimos tempos no mundo e no Brasil, o poder escolheu a ciência e os cientistas como alvo.
Que o leitor não se deixe enganar: a ciência está sob fogo porque se recusa a falar a língua do poder. Está sob fogo porque é seu papel olhar
o Universo e o ser humano de frente e dar às coisas os nomes que elas realmente têm, e não os que nós, em nossa insensatez e nossa soberba, gostaríamos que eles tivessem.
Reis e generais sempre ansiaram por dominar a arte de dar às trevas o nome de luz, pela licença para rachar cada crânio dos que, discordando deles, insistem que o céu ainda é azul, e não verde, como proclama o poder.
Reis e generais podem triunfar por uma estação do ano, ou por décadas, mas é justamente por sua incapacidade de falar a única língua realmente universal —a da curiosidade, da aventura e do deleite— é que não triunfarão para sempre.

Reinaldo José Lopes
Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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