January 19, 2018

O discurso do bispo


Marcus Faustini

Aliança conservadora quer transformar o espaço público em conflito de valores morais

As últimas investidas contra obras de arte, exposições e museus por parte da aliança de grupos políticos conservadores e religiosos, manipulando discursos sobre elas, são ataques à liberdade. Mas qual liberdade está sob ataque? É um ataque às diferenças, incentivado pelas lideranças fundamentalistas que sabem tirar proveito desse tipo de conflito.

Na coluna da semana passada, apontei que a censura à exposição “Queermuseu” e à performance “La Betê”, no MAM-SP, eram estratégias de aproveitamento da descrença na política para pautar os debates apenas em dimensões morais e esconder a falta de propostas desses grupos para as desigualdades do país. Com o ocaso da geração de governos do PT que colocaram, em parte, na centralidade do país o debate da inclusão e da mobilidade social a partir de um instável “pacto onde todos ganhavam”, grupos até então secundários passaram a enxergar a possibilidade de se tornarem maiores do que as tradicionais forças políticas brasileiras. Bolsonaro, MBL e bancada evangélica fundamentalista são exemplos de quem tem a ganhar com essas tensões.

Volto ao assunto para apontar outros elementos: essa aliança conservadora pretende transformar o espaço público num lugar de conflito permanente pautado pela guerra de valores morais. Não à toa o MBL, por exemplo, uma das maiores expressões da energia do projeto conservador, foi pra passeatas e espaços públicos pra gerar provocações como uma estratégia para ativar suas redes digitais — onde, hoje, se reforça a divisão do país.

Sobre a participação de políticos evangélicos nesta inflexão, há alguns aspectos a serem considerados:

O crescimento das igrejas evangélicas se deu, nas décadas anteriores, pelo acolhimento do sofrimento existencial e social e na promessa de prosperidade para aqueles que seguissem as leis da interpretação que fazem do Evangelho. Durante a aliança com o governo Lula, o trabalho social dessas igrejas cresceu, ocupando o campo da assistência social. Não faz muito tempo, Edir Macedo publicou um artigo na “Folha de S.Paulo”, numa edição de domingo, falando dos 40 anos da Igreja Universal. No artigo, com a consciência do público leitor daquele jornal, pontuou “o extraordinário trabalho social” da igreja ao longo desses anos. Estava colocado ali um flerte claro com elites, uma espécie de carta aos brasileiros, que pretendia posicionar seu projeto como uma possível alternativa de atendimento aos pobres no lugar de políticas sociais que sofrem de desmonte acelerado ao longo da ocupação de Temer no cargo de presidente. O artigo era seguido de várias matérias em outras páginas do jornal sobre o aniversário da trajetória dessa empreitada que começou com o bispo, solitário, pregando numa praça do Méier, subúrbio clássico da imaginação carioca.

As ideias de acolhida do sofrimento e da potencial prosperidade para quem aceita a versão do Evangelho foram se tornando expressões importantes da Igreja Universal que, em paralelo, manteve sua maior característica: a demarcação de espaço com outras religiões, alimentando a intolerância religiosa e o repúdio à diversidade de gênero e comportamento sexual. De fato, onde os políticos evangélicos ficam mais à vontade é no ataque às diferenças, muito mais do que no acolhimento das pessoas vulneráveis. Crivella, por exemplo, enche a boca para censurar uma exposição, que ele julga ferir a infância, mas faz silêncio sobre crianças em situação de rua — como escrevi na coluna anterior.

Agora, o projeto de poder desses grupos religiosos chegou a um ponto nevrálgico, com representantes no poder em esferas municipais, estaduais e federais. Para não mostrar a fragilidade de seu projeto político, sem propostas para reduzir desigualdades e desenvolvimento, a tentativa é de manter o debate no lugar de conforto para o seu discurso. “Tatuagem é de Deus?”, de 2011, é um dos textos mais lidos de Macedo, em que ataca quem tem tatuagens no corpo. Ao longo dos últimos anos, a igreja envolveu em torno de si uma classe média urbana, que vive a interação no espaço público buscando que ele tenha a sua cara e seus valores para confirmar a promessa de protagonismo dentro da sociedade. A demarcação de espaço com quem usa tatuagem é para impedir a interação dessa classe média evangélica com outros comportamentos. O espaço público seria apenas para conquista, sem encontro com as diferenças.

Alimentar a energia conservadora e de conflito com as diferenças não é só uma visão obscurantista. Ao abandonar um caminho progressista de ação social, os grupos evangélicos políticos flertam com grupos reacionários, racistas e autoritários para conseguir manter sua classe média gravitando em torno de seus valores e aumentar sua força política no meio da crise. Querer controlar o espaço público é chave para impedir a interação com as diferenças na sociedade. Toda vez que existe essa interação, o discurso do bispo se enfraquece. A arte e a cultura se tornam cada vez mais espaços de expressões da diferença no país. Eis uma das razões dos ataques.

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